segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Venezuela, México, imigração: as semelhanças e diferenças entre propostas de Kamala e Trump sobre a América Latina

A América Latina não é prioridade para os candidatos à presidência dos Estados UnidosKamala Harris e Donald Trump.

Mas a região apresenta desafios que precisarão ser enfrentados, seja quem for o vencedor das eleições americanas de 5 de novembro: desde como reagir ao novo mandato de Nicolás Maduro na Venezuela até como reduzir o fluxo de imigrantes e a crescente influência da China perto das fronteiras dos Estados Unidos.

E a chegada de imigrantes latino-americanos à fronteira com o México é um dos principais temas desta campanha.

Da mesma forma que nas eleições de 2016, quando foi eleito, Trump definiu a imigração como tema prioritário da sua campanha eleitoral. A questão serve de argumento para criticar o atual governo democrata e para acusar a vice-presidente Harris de "incompetente".

O candidato republicano prometeu deportação em massa dos imigrantes sem documentos, assim que assumir a presidência. Esta medida traria consequências humanitárias e econômicas para o país, mas as dificuldades legais e logísticas colocam em dúvida sua viabilidade.

Ex-funcionários do primeiro mandato de Trump afirmam que o plano não é só deter e deportar, mas gerar um clima de medo, aplicando a lei de forma indiscriminada e imprevisível. A intenção é fazer com que os imigrantes deixem de ir a lugares públicos e seus filhos tenham medo de frequentar a escola, fazendo, com isso, que eles próprios decidam deixar o país.

Trump promete fechar a fronteira e relacionou a chegada de imigrantes à criminalidade, ao aumento do custo da moradia em algumas partes do país, à entrada de fentanil – uma droga extremamente nociva – e à perda e deterioração de empregos para os americanos. Todas estas ideias serviram para que Trump pudesse conquistar eleitores, oito anos atrás.

Uma das frases da campanha do ex-presidente foi a acusação infundada, durante o debate com Harris na TV, de que os haitianos comem animais de estimação em Springfield, uma pequena cidade do Estado de Ohio, onde muitos imigrantes se estabeleceram.

Os republicanos acusam o governo de Joe Biden e Kamala Harris de ter facilitado a entrada de imigrantes.

De fato, a quantidade de cruzamentos na fronteira aumentou significativamente no governo Biden. Mas, nos últimos meses, o presidente restaurou políticas rígidas, similares às de Donald Trump, para reduzir esses números.

Entre dezembro de 2023 e 2024, o número de imigrantes sem documentos detidos pela patrulha da fronteira caiu em 77%. Esta redução se deveu às medidas mais rigorosas do governo do México e de outros países da região para impedir o cruzamento da fronteira para os Estados Unidos, ao lado das restrições à entrada de imigrantes, impostas pelo governo Biden.

Trump chama a vice-presidente Harris de "czar da fronteira" porque Biden outorgou a ela a tarefa de combater as causas da migração nos países da América Central.

Harris liderou um plano de investimentos de US$ 5 bilhões (cerca de R$ 29,3 bilhões) para promover o desenvolvimento da região, mas sua missão nunca foi de cuidar da fronteira sul dos Estados Unidos.

Trump pretende suspender o programa de refugiados e restabelecer o plano "permanecer no México", exigindo que os solicitantes de asilo esperem no país vizinho, enquanto seus casos são processados. Paralelamente, o governo encaminharia possíveis solicitantes de asilo a outros países que estejam dispostos a aceitá-los.

Já a candidata democrata rejeita as deportações em massa. Sua proposta é agir com muita firmeza, para criar uma "fronteira segura". Harris é respaldada pela sua experiência como procuradora-geral da Califórnia, em causas contra o crime organizado, e pelo seu apoio a um projeto de lei de segurança na fronteira, que também recebeu o apoio de legisladores republicanos.

Este processo acabou sendo bloqueado por Trump, para evitar o que seria uma conquista de Biden pouco antes das eleições presidenciais.

A quantidade de pessoas da região que desejam emigrar para os Estados Unidos aumentou na última década.

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), houve na região "23 milhões de pessoas deslocadas à força em 2023, um aumento de um milhão e meio em relação a 2022, impulsionado por situações de deslocamento na Colômbia, Venezuela, Haiti, norte da América Central, México e Nicarágua".

A imigração é uma questão importante nos Estados Unidos, já que 88% dos eleitores registrados acreditam que o reforço da fronteira é uma prioridade do país e que Trump pode administrar este tema melhor do que Kamala Harris.

Além disso, o voto dos latinos, que é tradicionalmente democrata, começou, pouco a pouco, a se voltar aos republicanos, desde a presidência de Barack Obama (2009-2017). E estes eleitores podem definir o resultado da eleição, já que 36 milhões de latinos estão habilitados a votar em 2024.

Tudo isso fez com que a crise política na Venezuela, a economia cubana e as questões de segurança no Haiti e no Equador, entre outros temas, acabassem entrando nas agendas de Trump e Harris, além das decisões internas sobre a admissão de imigrantes.

Para todos estes pontos, as relações entre os Estados Unidos e o México serão fundamentais.

Trump tinha boas relações com o ex-presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, durante seu primeiro mandato (2017-2021). Agora, seria preciso fazer o mesmo com sua sucessora, Claudia Sheinbaum.

O candidato republicano voltou a dizer que estaria disposto a bombardear grupos de narcotraficantes no território mexicano e que pretende renegociar o tratado de livre comércio entre os Estados Unidos e o México. Ele acredita que este tratado prejudica os interesses norte-americanos.

Seu discurso encontra ressonância entre os eleitores de Estados fundamentais para a eleição, como Michigan, Wisconsin e a Pensilvânia.

"Vamos chegar a um acordo", declarou Sheinbaum. Ela é considerada conciliadora e defende o acordo comercial atual.

"Eles estão em campanha, obviamente também existem muitos clamores em um ou outro sentido, mas eles sabem e nós sabemos que o acordo é indispensável para a nossa soberania."

Se a vencedora das eleições americanas for Kamala Harris, os dois países serão governados por mulheres. A vice-presidente destacou que, quando era procuradora-geral da Califórnia, trabalhou com seus colegas mexicanos em temas como o tráfico de armas, drogas e pessoas praticado pelos cartéis.

·        Dilemas sobre a Venezuela

Outra questão complexa para o próximo governo será o que fazer sobre o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela.

Espera-se que Maduro assuma um novo mandato no dia 10 de janeiro – 10 dias antes da posse de Harris ou Trump. Mas muitos países não reconhecem sua anunciada vitória nas eleições de 28 de julho, incluindo os Estados Unidos.

Durante seu primeiro mandato, Trump ameaçou intervir militarmente na Venezuela. Ele impôs sanções e reconheceu o governo no exílio do opositor, Juan Guaidó.

O governo Biden reduziu as tensões e levantou uma série de sanções contra o país, para que a Venezuela pudesse exportar petróleo.

Mas, considerando as últimas eleições venezuelanas (em que a oposição publicou as atas que demonstravam o triunfo do adversário de Maduro, Edmundo González), Washington voltou a promover restrições à mobilidade internacional de membros do governo venezuelano.

Os Estados Unidos delegaram ao Brasil e à Colômbia as negociações para uma transição entre Maduro e a oposição, sem sucesso.

É de se esperar que Harris, se ganhar a eleição, não reconheça Nicolás Maduro e imponha sanções ao governo venezuelano. Mas estas sanções aumentariam as pressões migratórias e as críticas dos republicanos.

Pesquisas de opinião recentes indicam que até quatro milhões de venezuelanos pretendem abandonar o país, se Maduro continuar no poder.

O novo governo também poderia manter certo nível de pressão, sem tomar este tipo de medidas. Mas esta postura também geraria críticas republicanas, como sinal de fraqueza e cumplicidade com Maduro.

"Não vamos usar as Forças Armadas", descartou a vice-presidente, em recente entrevista ao canal de TV americano em língua espanhola Telemundo.

"Mas também gostaria de ser muito clara: devemos nos manter firmes como Estados Unidos e respeitar a vontade do povo naquelas eleições", prosseguiu Harris. "E fui muito clara em relação às eleições que ocorreram na Venezuela. A vontade do povo deve ser respeitada. Por isso, também emitimos sanções."

E Trump, o que faria?

O ex-presidente vem falando pouco sobre Maduro nos últimos tempos. Ele só se referiu, sem provas, ao esvaziamento de prisões do país para que supostos criminosos chegassem aos Estados Unidos.

As futuras relações entre a Casa Branca e Nicolás Maduro dependerão da retórica do governo venezuelano e do aumento ou diminuição dos vínculos que o país sul-americano mantém com a China e a Rússia, segundo o professor de relações internacionais Juan Gabriel Tokatlian, da Universidade Torcuato di Tella, na Argentina.

·        As relações com a região

Além dos fatos concretos, Trump e Harris oferecem formas opostas de enfrentar temas preocupantes para a América Latina. Por isso, a relação do novo governo com os líderes da região será muito diferente.

A vice-presidente da ONG Escritório de Washington sobre a América Latina (WOLA, na sigla em inglês), Maureen Meyer, acredita que o Partido Democrata "tem interesse em continuar apoiando programas para fortalecer o Estado de direito e os direitos humanos na América Latina, o processo de paz na Colômbia e uma resposta regional à migração e à crise climática".

"Já os republicanos desconfiam, por exemplo, do passado de esquerda do presidente Gustavo Petro, da Colômbia", afirma Meyer.

"Eles não se interessam pelos programas de direitos humanos, nem sobre a crise climática, e querem suspender o apoio às organizações que promovem a educação sobre direitos reprodutivos, acesso ao aborto e fundos de apoio à igualdade de gênero, diversidade racial e identidades LGBTQI."

Estas questões fazem parte das "guerras culturais" próprias da política doméstica, mas foram também incorporadas pela política externa.

Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), o ex-presidente Trump e seu círculo mais próximo estabeleceram fortes vínculos com o então presidente brasileiro.

Sua aproximação foi tão forte que, em janeiro de 2023, depois que Bolsonaro entregou o poder ao presidente Lula, seus partidários trataram de repetir em Brasília a tomada de edifícios governamentais, no mesmo estilo da invasão do Capitólio pelos seguidores de Trump, em janeiro de 2021.

Bolsonaro é um dos "homens fortes" que cortejam o trumpismo, ao lado do presidente da Argentina, Javier Milei, que também trava batalhas contra a esquerda.

Em junho de 2024, uma delegação de ultraconservadores dos Estados Unidos, encabeçada por um dos filhos de Donald Trump, assistiu à cerimônia de posse do segundo mandato do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, ídolo da direita midiática dos Estados Unidos.

Apesar das acusações de violações dos direitos humanos pelas políticas de "mão forte" do governo de Bukele no combate ao crime, o secretário de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Alejandro Mayorkas, viajou em maio a El Salvador.

As duas partes celebraram, durante a visita, a "associação próxima e contínua entre nossos países para reduzir a circulação irregular de migrantes".

A melhoria das estatísticas do crime em El Salvador reduziu o número de migrantes que tentam sair do país rumo aos Estados Unidos, como reconheceu o governo de Joe Biden.

·        Fechar o caminho para a China

Nas últimas quatro décadas, a América Latina não foi prioridade na política externa dos Estados Unidos.

Ocupado com a queda da União Soviética, com o Oriente Médio e a China, Washington descuidou da região e a China ultrapassou os Estados Unidos como seu principal parceiro comercial.

"O ponto central, para republicanos e democratas, serão agora as relações com a China e sua projeção na região", afirma Tokatlian.

"A cooperação entre a China e os países latino-americanos se concentra na economia e no comércio", explica Xulio Ríos, assessor emérito do Observatório da Política Chinesa, sediado na Espanha. Segundo ele, a região "é rica em recursos e a China vê ali uma zona fundamental para o desenvolvimento das suas relações exteriores".

"Da mesma forma", prossegue Ríos, "para boa parte dos países latino-americanos, a China é um parceiro comercial de primeiro nível, que investe ativamente em diversos setores da indústria latino-americana. O desenvolvimento de laços militares complementa sua ampla estratégia."

Trump e Harris defendem posições muito similares sobre a concorrência econômica, comercial e tecnológica com a China.

Como Trump, Biden impôs uma forte política de alíquotas de importação sobre os produtos chineses.

Suas medidas trouxeram impactos econômicos para o México, que se beneficiou com o chamado nearshoring – a instalação de fábricas estrangeiras perto da fronteira com os Estados Unidos, para aproveitar as vantagens geográficas e comerciais da relação entre os dois países vizinhos.

A concorrência com a China é fundamental, para democratas e republicanos, na tentativa de retomar o peso hegemônico que os Estados Unidos mantiveram no passado, impondo políticas a outros Estados.

Para Tokatlian, "existem variações sobre temas importantes entre os dois partidos", mas elas se perdem quando se aprofunda a polarização.

"A qualidade da democracia teria pouca importância e passaria a segundo plano, se a questão for contar com aliados", explica o professor. "Milei, por exemplo, é um desses aliados contra Pequim. Como na Guerra Fria, a prioridade será a confrontação geopolítica."

"O novo governo não irá dedicar muita atenção à região, devido aos conflitos ativos na Europa e no Oriente Médio", segundo o especialista em segurança da WOLA, Adam Isacson.

"Quando existe menos atenção, a coordenação entre as agências diminui", explica ele, "e as que têm responsabilidade direta com a segurança, especialmente o Comando Sul, terão mais autonomia para suas prioridades, embora sem aumento de orçamento."

Em relação à segurança, Isacson explica que alguns republicanos querem empregar força militar no México (ataques com aviões não tripulados e incursões das Forças Especiais) para atacar os líderes dos cartéis ou os laboratórios de drogas, sem permissão do governo local.

Para o pesquisador do Colégio do México, Sergio Aguayo, seu país e os Estados Unidos "concordam com a necessidade de recuperar o controle da fronteira".

"Para isso, qualquer dos dois candidatos exigirá a colaboração do governo mexicano. Mas o governo do México tem cartas na manga e vamos ver como irá usá-las."

"Em curto e médio prazo, a melhor aposta do México seria impulsionar seriamente um tratado de segurança bilateral com os Estados Unidos, partindo da tese da responsabilidade compartilhada e da reacomodação do poder mundial", conclui Aguayo.

Mas nenhum dos dois candidatos propõe um tratado dessa envergadura, nem uma agenda estratégica para a América Latina.

Os temas da agenda são abordados "conforme afetam o dia a dia dos americanos", segundo a doutora em estudos estratégicos Mônica Hirst, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ.

"Para os líderes republicanos, existe uma relação de causa e efeito entre os migrantes latinos e a insegurança pública nos Estados Unidos. Mas eles não são considerados um tema de política externa, que exigiria a formulação de uma agenda estritamente latino-americana."

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*Mariano Aguirre é pesquisador associado da Chatham House, em Londres, e assessor da Rede Latino-Americana de Segurança da Fundação Friedrich Ebert, com sede na Alemanha.

 

Fonte: BBC News Mundo/Sputnik Brasil

 

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