sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Alípio de Sousa Filho: ‘Eleições e lutas por reconhecimento’

Campanhas eleitorais que reconheçam a importância das lutas por reconhecimento demonstram compromisso verdadeiro com a democracia, com a justiça social

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Lutas de mulheres, gays, lésbicas, transexuais, negros, indígenas e outros grupos por reconhecimento (de suas identidades e de seus direitos) têm sido chamadas de “lutas identitárias” e, às vezes, pejorativamente, de “identitarismo”. Muitos ataques são dirigidos aos movimentos que empreendem essas lutas, sobressaindo aqueles da direita conservadora e da extrema direita.

Porém, ataques são também realizados, surpreendentemente, por intelectuais e militantes de esquerda. Nos últimos dias, após o resultado das eleições municipais, apareceram avaliações críticas formuladas por estes últimos que sugerem que as lutas identitárias “interferem negativamente” para votos em candidaturas da esquerda e seria uma das causas de um desempenho eleitoral considerado “pífio” dessas candidaturas em muitas cidades do país. Seriam lutas cuja “pauta moral” – e se diz isso em sentido pejorativo! – não é bem recebida por amplos setores da sociedade.

Ainda que não seja o caso de compreender essas críticas como oposições às lutas por reconhecimento (contra seus princípios, teses, ideais, objetivos) – pois, considerando o que expressam alguns de seus formuladores, elas são, ao que parece, antes críticas ao modo de sua comunicação pública, por parte de alguns de seus militantes e representantes, do que oposição às concepções, objetivos e ideais dessas lutas –, considerá-las como uma das causas que teriam impedido a vitória de candidaturas de esquerda é não apenas simplificar a avalição de evento multifacetado e multicausal mas também contribuir com a reificação de valores morais conservadores praticados na sociedade brasileira.

Tais críticas revelam uma visão simplória dos processos eleitorais, minimizando a complexidade de fatores que participam de processos e períodos eleições, como políticas econômicas, problemas sociais, valores morais correntes e os próprios acertos e desacertos das chamadas “estratégias“ eleitorais de candidatos e partidos.

É bem verdade que o modo como às vezes as lutas de mulheres, gays, lésbicas, transexuais, travestis e negros por reconhecimento (dignidade, respeito, direitos) têm sido comunicadas, assumidas e performadas promove exasperações e tensões sociais desnecessárias, e até mesmo criam divisões contraproducentes, tanto quanto muitas vezes é modo que sequer exprime os sentidos mais profundos dessas lutas. Tão pior para o caso de uma sociedade despedaçada por desigualdades que são causas de mazelas que não podem mais perdurar.

Todavia, não se torna o caso de confundir modos de comunicação pública equivocados, performances e proferimentos insensatos de alguns dos integrantes dessas lutas com os próprios movimentos sociais maduros, sérios, profundos, em seus conceitos, teorias e objetivos, sem cujas conquistas, na atualidade, não permitiria que falássemos de democracia nas nossas sociedades. As lutas por reconhecimento são sumamente importantes para tornar nossas sociedades sempre mais democráticas. Lutas essenciais para a inclusão de excluídos morais, sociais, econômicos, e, pois, para a existência de justiça social.

Passados tantos anos de uma discussão que já rendeu centenas de livros, análises e reflexões no campo progressista e crítico – e poderia evocar aqui diversos autores e autoras dos campos da filosofia e ciências sociais –, alguns intelectuais e militantes voltam ao argumento segundo o qual “a ênfase em questões identitárias fragmenta a base de apoio da esquerda”, que seria uma idealizada “classe trabalhadora”, pois seriam questões que desviam o foco das questões econômicas que a afetariam.

A sugestão de alguns do necessário retorno – trata-se de um retrocesso! – à primazia dos “interesses de classe” de operários, trabalhadores, tem a estranheza não apenas de uma fantasia em relação aos trabalhadores atuais, cuja configuração como categoria conhece muitas transformações, como também parece abrigar a espantosa crença de que esses mesmos trabalhadores não seriam afetados pelos preconceitos e discriminações da misoginia, homofobia, racismo, menosprezo por status de classe etc.

O que seria mesmo, então? A classe trabalhadora não tem sexo, gênero, sexualidade, cor de pele? Não sofre com as violências dos preconceitos e das discriminações por eleições do que os seus integrantes desejam ser, almejam ou realizam? Alguns estão quase a pedir que, principalmente, gays, lésbicas e trans calem-se! Voltem para o armário! A evidência gay afasta votos! As mulheres e negros não entram no argumento, seriam mais fáceis de acomodar nos objetivos eleitorais.

Aqui, repete-se o que se torna possível observar até mesmo para certos assuntos da comportada “pauta econômica” e da conciliatória “pauta política”: harmonizar com o conservadorismo social. Tudo em nome da elegibilidade e, depois, da governabilidade.

Atribuir, ainda que não exclusivamente, às lutas por reconhecimento a causa do insucesso eleitoral de algumas candidaturas de esquerda só contribui para reforçar discursos conservadores que buscam deslegitimar essas lutas como relevantes. Além disso, esse entendimento desfoca as injustiças que os movimentos por reconhecimento e direitos denunciam e buscam combater e superar.

Em todos os países, a consideração contemporânea da importância das lutas por reconhecimento e igualdade social não só enriqueceu a agenda de partidos e movimentos de esquerda e progressistas, mas, igualmente, ampliou a base social de apoio desses partidos e movimentos. Portanto, simplificar o debate sobre o resultado eleitoral é empobrecer a compreensão do cenário social brasileiro e da política nele e arriscar perder percepções e contribuições críticas e progressistas para a construção de uma nova imaginação política para muitos e diversos assuntos e problemas, assim como construção de novas instituições e relações sociais na sociedade.

Ao ser confrontada a abordar questões como racismo, preconceitos com identidades de gênero, preferências sexuais, status de classe, e tudo o que deriva daí como produção de inferiorizações, discriminações, exclusões, violências, por força das lutas daqueles que as sofrem, desafiando estruturas de poder, a ideologia, a sociedade é levada a pensar suas contradições, incoerências, podendo progredir moralmente.

As lutas por reconhecimento são também educação da sociedade para valorizar e respeitar a diversidade social, as diferenças e as aproximações e misturas de gentes, povos, culturas, indivíduos, sexos, grupos étnicos. O que fortalece o sentido de cidadania plena e democracia, todos podendo participar da vida social em igualdade e podendo influenciar as decisões que afetam a vida de cada um e de todos.

Uma sociedade que não acolhe e apoia as lutas de mulheres, gays, lésbicas, trans, pessoas discriminadas pela cor de sua pele, status de classe, ou comunidades de origens étnicas diversas, entre outros grupos de pessoas, tende a perpetuar a violência dos preconceitos e da discriminação. E tende a negar a participação igualitária dessas pessoas na vida social e pública. Pessoas e grupos que frequentemente enfrentam desafios específicos que, se ignorados, podem se transformar em normas sociais que não há mais qualquer dúvida que são a eles prejudiciais.

Sem a mobilização e a voz dessas pessoas e grupos violentados pelos preconceitos e discriminações, as desigualdades se mantêm e aprofundam-se. As lutas por reconhecimento são essenciais para trazer à tona essas questões, questionar estruturas de poder e desconstruir discursos ideológicos que buscam naturalizar e normalizar desigualdades e injustiças. Lutas que buscam promover mudanças que visam a igualdade e a consideração de todos como merecedores de respeito e vida digna.

Uma sociedade verdadeiramente democrática deve assegurar a participação igualitária de todos, sem que preconceitos e discriminações estorvem a liberdade de ninguém nem seus direitos, por opções, preferências, escolhas no âmbito de identificações do que chamamos de “gênero” ou “sexualidade”, pela cor da pele com a qual se nasce (transformada em “raça” pelo racismo!) ou por pertencimentos a categorias ou classes sociais.

É não apenas politicamente equivocado mas também moralmente indefensável negar espaço às “lutas identitárias” em campanhas eleitorais apenas para “não perder votos” – conclusão, aliás, absolutamente subjetiva e impressionista. Tal entendimento pode parecer uma estratégia pragmática no curto prazo, mas representa também o abandono do ideal de justiça social e de participação igualitária ou paridade participativa que inclua a todos (um tema que a filósofa Nancy Fraser desenvolveu em suas obras).

Campanhas eleitorais – mas não apenas eleitorais, mas continuadas na ação política – que reconheçam a importância das lutas por reconhecimento demonstram compromisso verdadeiro com a democracia, com a justiça social, e também criam autênticas conexões com aqueles que estão submetidos ao sofrimento evitável dos preconceitos e discriminações. Portanto, é vital que candidatos e partidos considerem essas questões de forma séria e integrada em suas propostas e não apenas também por “estratégias eleitorais”.

 

¨      Reação a que? Por Marga Ferré

O crescimento da extrema direita na última década é uma reação e, além disso, uma reação global. Mas uma reação a quê?

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Há anos que leio análises sobre a extrema direita sem encontrar uma resposta que explique por que razão tem tanto apoio. Até que nos últimos meses, um estudo do jornal Financial Times, um antigo livro feminista e um artigo de história desencadearam uma resposta que, decantada, pretendo argumentar convosco.

A ascensão da extrema direita não é uma expressão de descontentamento político, nem uma patologia social, muito menos uma expressão antissistema. O crescimento da extrema direita na última década é uma reação e, além disso, uma reação global. Mas uma reação a quê?

Para um deslocamento.

<><> A história mudou

Um sector da academia historiográfica, que me deslumbrou, propõe que a mudança mais profunda que emerge como consequência da aceleração da globalização é a transformação do próprio conceito de história e isso tem muito a ver com a ascensão da extrema direita.

O que defendem é que, comumente, a história universal tem sido estudada e aprendida como uma história linear, uma série de etapas (que até têm nome e data de início e de fim) pelas quais a humanidade caminha para frente, em direção ao “progresso”. Para o bem dos impérios europeus, a História foi concebida como história ocidental, uma árvore ascendente em cuja copa estão as nações desenvolvidas (as potências, os impérios) lideradas por homens brancos de elite que possuem a tecnologia e a visão do progresso (civilização) e, mais abaixo, as nações a caminho desse modelo de desenvolvimento e todos os outros grupos subalternos.

Hoje, grupos subalternos sub-representados ou invisibilizados na história contemporânea entram em cena levantando novas exigências.

O que propõem estes novos historiadores, cujo pensamento está descrito no artigo de Hugo e Daniela Fazio, é que este conceito de História é hoje insustentável. Não é apenas a ascensão da Ásia, especialmente da China, como desconstrutora desta ideia de história ocidental, mas a emergência do feminismo e do anti-racismo, com a sua proposta decolonial, que mudou esta visão da história para uma muito mais global e diversificado.

Batizaram-na como história global, a partir do prisma da seguinte verdade preciosa, que, sem cegueira de gênero ou de classe, é evidente: hoje, grupos subalternos sub-representados ou invisibilizados na história contemporânea irromperam em cena levantando novas exigências com novas lideranças e epistemologias, pois há um deslocamento do mito do Ocidente para um mundo muito mais diversificado.

Esse deslocamento gera ressentimento em quem os vê perder sua posição de privilégio num mundo que não os vê mais como autoridade e que, por isso, disputa sua posição de poder. A extrema direita é isso, uma reação de quem está perdendo privilégios ou teme perdê-los e, por isso, o sentimento de manipular é o ressentimento.

Não é nem raiva, nem desencanto político, mas sim uma vitimização ressentida, o apelo ao narcisismo ferido de alguém que sente que perdeu o seu papel de liderança na história, em casa ou no trabalho. O aumento do militarismo e da guerra fazem parte desta reação violenta a um mundo que os está a deslocar.

<><> A quarta onda

Reação, a guerra não declarada contra as mulheres modernas é um livro feminista que teve enorme impacto na década de 1990. Nele, Susan Faludi denunciou a reação conservadora contra o avanço das mulheres naqueles anos e destacou, lucidamente, que essa reação não ocorreu porque as mulheres haviam alcançado a igualdade plena, mas porque “era possível para elas alcançá-la”. O livro de Susan Faludi me ajuda a compreender que a ascensão da extrema direita é uma reação, antes de tudo (embora não só), à quarta onda do feminismo e garanto que os dados são irrefutáveis.

As mulheres jovens são muito mais progressistas e os homens mais conservadores e mais propensos a apoiar a extrema direita.

Em 25 de janeiro deste ano, o jornal Financial Times publicou um estudo que fez explodir a mente de muitos analistas de extrema direita. Mostra o voto de homens e mulheres jovens na Coreia do Sul, nos EUA, na Alemanha e no Reino Unido, concluindo que existe uma enorme lacuna na sua atitude política: as mulheres jovens são muito mais progressistas e os homens jovens são mais conservadores e mais inclinados a apoiar a extrema direita.

O que choca mais de um é que se trata de um fenômeno global que ocorre em todo o planeta.

Li, espantado, as explicações mais bizarras para este fenômeno que vão desde o fato de as mulheres serem mais moderadas até ao fato de termos menos contacto com migrações e disparates desse calibre. É óbvio, sem a cegueira de gênero que permeia a academia, que é a consequência da quarta onda que assolou o mundo. Quando surgiu, há quase uma década, fê-lo numa base global, como um movimento de massas, articulado por meio de redes sociais e com uma forte componente intergeracional.

É também uma onda feminista mais anticapitalista do que as anteriores, um feminismo que desmantela o papel histórico do patriarcado e que venceu a batalha pela igualdade como aspiração. A extrema direita é uma reação violenta a este deslocamento, a este destronamento do paterfamilias, do homem dominante, do criador da história.

Observo que muitas análises reduzem o machismo e o racismo a atitudes morais e culturais, recusando-se a assumir que ambas as construções são usadas no capitalismo para nos explorar ainda mais. O fato óbvio de que as mulheres e os migrantes constituem uma mão-de-obra mais barata em todo o planeta não parece ter impacto nas suas análises. Devemos fazer todos os esforços para negar os dados e continuar a insistir que as mulheres e os migrantes são minorias e que nos tratam como tal quando a realidade é exatamente o oposto. Quase admiro sua teimosia.

Posso estar errada, mas também percebo que a cegueira analítica não está apenas relacionada com o gênero. Detecto uma resistência obstinada em aceitar que não existe uma relação direta entre a desigualdade econômica e o crescimento da extrema direita; Ou seja, a ortodoxia econômica não é útil para analisar o fenômeno. Se assim fosse, não haveria como explicar o que ocorre nos países escandinavos (os menos desiguais do mundo) nem que no país onde a desigualdade é mais grave, a África do Sul, onde a extrema direita não é relevante. É claro que a situação econômica pode ser um gatilho para o crescimento da extrema direita, mas não é a sua causa.

Suponho que a fria métrica econômica não compreende o ressentimento e é o sentimento que impulsiona a reação. Para entender melhor sugiro o magnífico estudo de Tereza Capela et al. sobre jovens coreanos de extrema direita que conclui decisivamente que as suas atitudes são construídas exclusivamente sobre o ressentimento e a vitimização.

<><> Sussurros reacionários

Sinto cheiro, de certa tendência política (da qual nem mesmo a esquerda europeia está livre) que tende a contemporizar com alguns postulados da extrema direita quando se sente ameaçada pela sua ascensão; e este também é um fenômeno global. Estou começando a ouvir, sutil como um sussurro, que talvez nós, feministas, tenhamos ido longe demais, que devemos atender às demandas dos jovens que estão se movendo para a direita, que a imigração é um problema, que o que aconteceu na Palestina é não é um genocídio, que temos que comprar mais armas, que a ecologia não é uma contradição fundamental…

Defendo a tese oposta: a antítese da extrema direita e do seu inimigo é defender o feminismo, especialmente as mulheres jovens e as suas reivindicações, o conceito de classe versus o de nação, a paz, a diversidade, a igualdade, a justiça social, a solidariedade, a ecologia e uma mundo comum e fazê-lo, além disso, com uma visão que vai além da visão estreita e hierárquica do mundo do Ocidente.

Afirmo que a extrema direita é uma reação ao impulso com que nós, subalternos, começamos a mudar o mundo. Mas aviso, voltando ao alerta de Suzan Faludi, que a reação não é apenas a uma mudança produzida, mas à possibilidade da mesma existir; Na verdade, eles reagem violentamente às mudanças para evitar que elas ocorram. Essa é a extrema direita: pura reação.

NOTA: *Marga Ferré, ex-deputada na Espanha, é copresidente da Transform Europe.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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