segunda-feira, 4 de novembro de 2024

PF desarticula esquema de corrupção e tortura no sul do Amazonas

Nesta sexta-feira (1/11), a Polícia Federal (PF) de Rondônia iniciou a desarticulação de uma organização criminosa envolvida na grilagem de terras públicas na Fazenda Palotina, localizada no município de Lábrea, no sul do Amazonas. Esse grupo atua na área desde 2007, “utilizando documentos falsificados e contando com o apoio de servidores públicos corruptos e de milícias privadas para intimidar e expulsar moradores locais, incluindo comunidades extrativistas de castanha”.

A Fazenda Palotina está no epicentro de um conflito agrário que tem, de um lado, o fazendeiro Sidnei Sanches Zamora, que alega ser dono das terras, e do outro, os moradores da comunidade rural Marielle Franco. Eles ocupam uma área que já foi atestada como sendo terra da União. No meio da disputa, vários episódios de violência, totura e intimidação foram denunciados pelos agricultores.

Segundo a operação da PF, havia um esquema de lavagem de dinheiro com propinas sendo pagas a agentes públicos. Estes criavam formas para consolidar a posse da terra e também garantiam proteção armada às operações da organização criminosa.

A PF solicitou mandados de busca e apreensão, além de medidas cautelares para suspender as atividades da organização criminosa. O esquema de grilagem pode ter causado um prejuízo de mais de 68 milhões de reais ao patrimônio público, além das violações de direitos humanos e crimes ambientais cometidos na região.

Para Manuel do Carmo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Amazonas, a operação da PF reagiu a várias ações feitas pelos próprios moradores da comunidade Marielle Franco. “Eles fizeram pedidos diretamente ao Ministério Público Estadual, ao Ministério Público Federal, que agora acompanha a Defensoria Pública da União e até mesmo a Defensoria Pública do Estado (DPE), então houve muitos pedidos (…) Então essa operação que aconteceu hoje vai apurar esses fatos”, diz.

<><> ‘A esperança é a última que morre’

“A gente fica meio descrente, mas a esperança também é a última que morre”, disse o líder da comunidade rural Marielle Franco, o agricultor Paulo Sérgio Costa de Araújo. Ele se tornou um dos símbolos de resistência ao ser preso no início do ano, depois de denunciar o caso de tortura na comunidade. Na ocasião, quatro agricultores foram espancados.

Paulo denunciou o caso ao Ministério Público Federal, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e à CPT. De forma surpreendente, ele acabou preso por acusação de organização criminosa, por ordem do juiz Danny Rodrigues Moraes, da 1ª Vara da Comarca de Lábrea, quando estava na delegacia de Lábrea para fazer o boletim de ocorrência. “Era para esses caras estarem presos. Eu não fiz nada e fui preso. E eles estão por aí”, lamenta o agricultor.

O caso de tortura na comunidade Mariele Franco ocorreu em 28 de fevereiro. De acordo com Paulo Sérgio, os agricultores estavam registrando um flagrante de retirada ilegal de madeira nas terras da Comunidade Marielle Franco, quando sofreram um ataque dos “jagunços”. Um dos agricultores foi ferido com golpe de terçado (facão).

“[Os funcionários da fazenda Palotina] estavam tirando madeira na nossa área. Ele [Sidney Zamora] tira madeira e diz que é a gente. Então a gente colocou um rapaz para tirar os pontos [registrar o local onde a extração estava acontecendo] e fazer um relatório de árvores [retiradas]. Tinha canelão, castanheira, itaúba”, lembra Paulo Sérgio.

Ainda de acordo com Paulo Sérgio, os agricultores foram surpreendidos pelos “jagunços”. “Eles quebraram o equipamento do topógrafo na bala. Mandaram ajoelhar, bateram muito. Fizeram uma videochamada com o fazendeiro [Zamorra] mostrando os agricultores apanhando de joelho com cara no chão. E disseram que não iam matar porque era para saírem dali e contar para os outros”, disse à época.

Os agricultores foram surrados com golpes de terçados. Uma das vítimas, o extrativista identificado como Nacione, teve a clavícula atingida por um golpe e precisou de atendimento no hospital público. “Quando a sessão de espancamento e tortura acabou, os jagunços ainda dispararam vários tiros enquanto os agricultores corriam.”

Na época, o fazendeiro Sidnei Zamora se pronunciou, por meio de seu advogado, negando as acusações e se disse vítima de  injúria e difamação por parte da “organização criminosa”.

<><> Tentativa de reintegração de posse

Com o líder da comunidade preso, em 22 de março,  juiz Roberto Santos Taketomi, da comarca do município, chegou a expedir um mandado de reintegração de posse da área, em favor do fazendeiro Zamora. A reintegração de posse foi suspensa, porque uma semana antes, o desembargador Airton Luís Corrêa Gentil, do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) já havia decidido que o caso é de competência da Justiça Federal, por envolver terras da União.

Em abril, a Corregedoria-Geral de Justiça do Amazonas determinou uma correição extraordinária para fazer apurações sobre as decisões de reintegração de posse favoráveis ao fazendeiro. Também foram reanalisadas as condutas de juízes na prisão do líder comunitário Paulo Araújo e o envolvimento de policiais militares do Acre e do Amazonas em um suposto esquema de proteção do fazendeiro.

Em entrevista à Amazônia Real, à época, o superintendente do Incra, Denis da Silva, revelou que duas folhas do registro da Fazenda Palotina haviam desaparecido do cartório. Nas folhas estariam os detalhes da área, incluindo a descrição do terreno e sua dimensão. “Não tem a identificação dos títulos, na matrícula está uma coisa solta. Eles não sabem como foi extraído [as folhas do livro], o que indica que eles não têm esse documento [o título] que legitima a propriedade, o domínio”, disse o superintendente.

<><> Liberdade e perseguição

Paulo Sérgio só foi libertado depois de 51 dias de prisão. Ele saiu da carceragem com tornozeleira eletrônica e foi para o Acre. E ele conta para a reportagem da Amazônia Real, que a sua casa, localizada na comunidade Marielle Franco, foi incendiada no último dia 27 de agosto. “Incendiaram a minha casa e a de outro rapaz. Duas pessoas me contaram que estavam esperando apenas uma oportunidade para me matar.”

 

•        Na terra dos Guajajara, mudas amazônicas oferecem esperança para os rios que secam

Sob o dossel esmeralda da Floresta Amazônica, Janaína Guajajara olha para uma poça de água turva, pouco maior do que uma banheira. Ao longo de suas margens, delicadas mudas de buriti brotavam do solo. “Isso aqui estava totalmente seco antes, mas as plantas o restauraram”, diz ela, acenando para as palmeiras recém-nascidas. “Elas a resgataram.”

A pequena piscina, escondida em um pedaço de floresta na Terra Indígena Rio Pindaré, no Maranhão, é na verdade uma parte crucial de um sistema de água muito maior nessa região. Quase invisível para o olho destreinado, ela forma um filete de água que passa serpenteando por nós a caminho do Rio Pindaré, a alguns quilômetros dali, sendo parte das nascentes que abastecem o rio na floresta.

Para o povo Guajajara, que vive aqui há séculos, essas nascentes têm um significado mais profundo. “Elas são sagradas”, diz Arlete Guajajara, líder indígena da reserva do Rio Pindaré. “Elas pertencem aos espíritos de nossos ancestrais. É aqui que eles vão descansar.”

Os rios e córregos alimentados por essas nascentes são essenciais para a sobrevivência dos Guajajara. Eles dependem dessas águas para pescar, beber e se banhar. É também onde realizam rituais como a celebração da Menina Moça, um importante rito de passagem que marca o início da vida adulta para as mulheres Guajajara. “É do rio que tiramos nosso sustento”, diz Janaína. “É nossa tradição, nossos costumes, é tudo para nós. E é o futuro do nosso povo.”

Mas esses corpos d’água estão ameaçados, pois a agricultura engole a floresta ao redor e traz chuvas mais fracas, estações secas mais longas e temperaturas mais altas. No ano passado, os níveis de água dos rios, aqui e em outros lugares da Amazônia, caíram a níveis historicamente baixos em meio a uma seca severa que os cientistas associaram ao desmatamento e às mudanças climáticas.

Nesse cenário, a preservação das nascentes que alimentam os rios se tornou ainda mais urgente para o povo Guajajara. Em 2018, eles se embrenharam na floresta tropical em uma tentativa de localizar e mapear essas nascentes. Os idosos da aldeia lideraram as expedições, reconstituindo as lembranças perdidas de onde elas costumavam estar. Quando as encontraram, muitas das nascentes estavam reduzidas a meras poças. “Sabíamos que tínhamos que fazer alguma coisa”, diz Arlete Guajajara. “Não podíamos simplesmente deixá-las desaparecer.”

Então, no ano passado, o povo Guajajara escolheu uma das nascentes como um modelo de teste. Na esperança de reverter décadas de destruição da floresta em suas terras, eles plantaram espécies nativas da Amazônia — como buriti, pupunha e açaí — ao longo de suas margens.

Em vez de usar sementes, os Guajajara vasculharam a floresta tropical coletando mudas saudáveis que haviam se enraizado em outros lugares, transplantando-as para as nascentes. “Fizemos isso de maneira tradicional, como os anciãos nos ensinaram”, diz Arlete.

A comunidade indígena espera que as plantas novas possam evitar que as nascentes sequem, fortalecendo o solo ao redor delas. Os cientistas dizem que o plantio em torno das nascentes pode evitar a erosão e ajudar o solo a absorver mais chuva, reabastecendo as reservas de água subterrânea. À medida que as árvores amadurecem, elas liberam volumes cada vez maiores de umidade no ar ao seu redor, ajudando a regular o clima nessa área da floresta tropical. “É uma alegria imensa, não apenas para nossos anciãos e nossos ancestrais, mas para todo o nosso território”, diz Janaína. “Quando plantamos, estamos recuperando tudo o que nos foi tirado.”

•        Legado de destruição

Nas profundezas da floresta tropical, não há sinal da seca que assola os campos de soja empoeirados que se estendem por quilômetros além da reserva do Rio Pindaré. Aqui, o ar é pegajoso e úmido. Os insetos se movem em densos enxames e os animais se agitam no mato. O arroz, a mandioca e a banana crescem em abundância ao lado de espécies florestais como o açaí.

A Terra Indígena Rio Pindaré se estende por cerca de 15 mil hectares no município de Bom Jardim, no Maranhão. Sob proteção federal desde 1982, está localizada em um corredor ecológico composto por sete reservas, algumas delas habitadas por povos indígenas que vivem em isolamento voluntário.

Após décadas de destruição, a maior parte da floresta tropical ao redor foi devastada pela agricultura em larga escala. No entanto, apesar das frequentes incursões de forasteiros ao longo dos anos, o Rio Pindaré continua sendo uma ilha de floresta tropical, intacta apesar da voracidade do desenvolvimento econômico. “Esta é a última floresta aqui”, diz um funcionário da Funai, que pediu para não ter seu nome revelado porque não está autorizado a falar com a mídia. “E os povos indígenas dependem dela. É por isso que é tão importante protegê-la.”

Essa área da Amazônia brasileira era praticamente isolada até algumas décadas atrás, quando o regime militar — que chegou ao poder nos anos 60 – pressionou para povoá-lo como forma de garantir sua soberania. Chamando-a de “terra sem homens para homens sem terra”, o regime distribuiu lotes a milhares de migrantes de outras partes do Brasil e, nas duas décadas seguintes, construiu uma série de estradas que cortam a floresta.

Um desses projetos foi a BR-316, uma rodovia federal de 2 mil quilômetros que corta a TI Rio Pindaré ao meio. A estrada abriu o acesso à floresta como nunca antes, atraindo madeireiros ilegais que agora podiam explorar as terras do povo Guajajara em busca de árvores com alto valor der mercado; “O impacto foi enorme”, diz Caroline Yoshida, consultora técnica do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), uma organização sem fins lucrativos que trabalha com grupos indígenas na região. “Porque a estrada corta bem o meio da terra deles. Com isso, a caça selvagem diminuiu e a pressão em seu território aumentou.”

Na década de 1980, a construção da Estrada de Ferro Carajás, que se estende por 891 quilômetros da capital do Maranhão até o estado vizinho do Pará, intensificou ainda mais a onda de migração e criou uma nova fronteira de desmatamento na região. Em pouco tempo, surgiram pólos madeireiros em torno do Rio Pindaré.

Nas últimas décadas, as incursões no Rio Pindaré continuaram, com colonos de aldeias precárias do outro lado do rio invadindo regularmente o território para caçar e pescar ilegalmente, de acordo com os indígenas e as autoridades. “Algumas dessas comunidades aqui perto não querem respeitar essa terra como sendo de uso exclusivo dos povos indígenas”, diz o agente. “Há essa mentalidade, por que dar tanta terra a eles?”

Enquanto isso, além do território, a monocultura tomou conta de grandes áreas da região. A soja, o milho e o gado impulsionam a economia local, com o apoio inabalável de políticos poderosos e grupos de lobby. Com o recuo da vegetação nativa, os povos indígenas estão sentindo a pressão, pois as florestas, os rios e as nascentes em seus próprios territórios estão cada vez mais secos, diz Yoshida. “Eles estão reflorestando para que possam manter essas nascentes, para que elas não morram dentro do território”, diz ela. “Para que não percam essa riqueza.”

•        Um tesouro ameaçado

As nascentes são importantes tanto por sua função especial no ciclo da água quanto pela natureza frágil que as torna vulneráveis a choques climáticos como a seca.

Essas nascentes se formam quando os reservatórios de água subterrânea emergem para a superfície do solo, criando pequenas correntes de água. Os afluentes viajam rio abaixo para se juntar a outros, formando córregos e rios maiores. Em todo o Brasil, há cerca de 1,8 milhão de nascentes espalhadas por todos os biomas, segundo estimativas do IBGE.

No entanto, na Floresta Amazônica, uma crise hídrica cada vez mais intensa está colocando as nascentes em risco. Estudos mostram que, em toda essa região do Brasil, a estação seca anual se tornou cerca de um mês mais longa nos últimos cinquenta anos. Quando as chuvas finalmente chegam, é comum que sejam escassas e irregulares, trazendo pouco alívio para a estiagem.

Em meio a condições climáticas mais secas, menos precipitação está se infiltrando nos reservatórios subterrâneos sob as nascentes, e algumas dessas nascentes cruciais estão diminuindo. O que é bem preocupante:, os pesquisadores ainda não sabem se — e como — essas nascentes podem ser restauradas quando secarem completamente. “Quando você perde um corpo d’água, pode levar dezenas ou até centenas de anos para se recuperar”, diz Victor Salviati, superintendente de inovação da Fundação para a Sustentabilidade da Amazônia (FAS), organização sem fins lucrativos que desenvolveu projetos semelhantes de restauração florestal no estado do Amazonas.

Isso se deve ao fato de que restaurar a rica biodiversidade e o delicado equilíbrio ecológico das fontes de água que secaram é um processo longo e complexo, explica Salviati. “Com a seca que temos agora na Amazônia, é difícil esperar 50 a 60 anos para recuperar uma nascente. Portanto, é melhor preservar e proteger as que temos.”

Plantar espécies nativas ao longo das margens das nascentes — restaurando o que é conhecido como mata ciliar — também é uma forma importante de fortalecer o solo e evitar a erosão, de acordo com Salviati. “Quando a chuva cai e você tem um solo saudável, ele pode filtrar a água da chuva e devolvê-la ao córrego ou rio, de forma natural”, diz ele. Enquanto isso, os cientistas afirmam que a restauração de florestas nativas, no Brasil e em outros países, representa uma das melhores esperanças do planeta para mitigar a mudança climática, tanto local quanto globalmente. Pesquisas também sugerem que essas florestas restauradas podem ajudar a regular as chuvas e evitar que rios importantes sequem.

Nesse cenário, a restauração das áreas ao redor das nascentes, que alimentam rios importantes em toda a Amazônia, é uma parte crucial da batalha para conter as interrupções do ciclo hidrológico, de acordo com Salviati. “Qualquer iniciativa para proteger as nascentes e restaurar a floresta ao redor delas: esse é o melhor investimento que podemos fazer.”

 

Fonte: Amazônia Real/Mongabay

 

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