Mauri Cruz: ‘Eleições - Fiasco das
esquerdas e a possível reorientação
Começo este artigo com
um agradecimento as companheiras e companheiros do campo democrático e popular
que colocaram seus nomes e sua trajetória nas disputas eleitorais de 2024.
Sabemos que os acertos e os erros eleitorais são fruto de decisões coletivas,
ninguém é candidata/o de si mesmo, no entanto, os sacrifícios e os custos
pessoais e políticos são assumidos por quem se dispõe a colocar seu nome para o
pleito. Por isso, meu profundo agradecimento as guerreiras Maria do Rosário
(PT) e Tamyres Filgueira (PSOL) que foram incansáveis na missão de fazer o
enfrentamento político em Porto Alegre. A Guilherme Boulos (PSOL) e Marta
Suplicy (PT) por terem, igualmente, enfrentado em São Paulo as agruras de uma
disputa de novo feitio, onde a lógica das redes sociais dominou a dinâmica
política. E ao camarada e amigo Edmilson Rodrigues (PSOL), que enfrentou, não
só a extrema direita de Belém, mas sofreu com a articulação de alianças do
chamado Centrão com setores que compõe a base do Governo Lula. A todas as
demais lideranças que dispuseram seus nomes e a militância popular que esteve
presente, nas ruas e nas redes sociais, fazendo o bom combate, meu muito
obrigado.
Aprendi que, quando se
está perplexo frente a realidade, deve-se olhar o fio da história, é nele que
reside a explicação. A história humana é resultado de suas próprias escolhas.
Digo isso, enquanto leio o primeiro volume da biografia de Valdir Pires escrita
pelo biógrafo e amigo, Emiliano José. Emiliano é um exímio escritor, sendo
autor da biografia, transformada em filme, de Lamarca, o capitão da guerrilha1.
O que nos interessa
para esta reflexão é um fato histórico contado na biografia de Valdir Pires por
Emiliano José. Em 31 de março de 1964, na condição de Ministro Consultor-Geral
da República no Governo Jango, Valdir Pires, junto com o também Ministro Chefe
da Casa Civil, Darci Ribeiro, foram os últimos a saírem do Palácio do Planalto,
não sem antes de redigirem mensagem ao Congresso reiterando que o Presidente
Jango estava em solo brasileiro, portanto, a declaração da vacância do cargo de
presidente era um golpe. Foi o último ato democrático por décadas. Passava da
meia noite quando, às escondidas, foram diretamente para o aeroporto de
Brasília onde, por obra do amigo Rubens Paiva, havia um monomotor esperando
para levá-los a Porto Alegre ao encontro de Jango. Viagem esta que foi
alterada, de forma que eles acabaram aterrizando no Uruguai no dia seguinte. De
lá, Valdir só retornaria ao Brasil em 19702. Passadas as eleições municipais de
2024 e, estando lendo sobre a saga destes importantes ministros de Jango, é
impossível não estabelecer um comparativo histórico.
De 1930, com a
ascensão de Getúlio Vargas, passando por seu suicídio em 1954, até 1964 com a
deposição de Jango, foram meros 34 anos. Período de profundas transformações
onde, de uma forma ou de outra, o tema do mundo do trabalho esteve no centro de
embate na luta de classes, e as eleições foram peça chave nesta disputa,
resultando nas eleições de Getúlio, Jucelino e Jango. Mas a fragilidade do
poder democrático se fez presente quando do golpe militar em 1964, obrigando um
Presidente da República e seus ministros saírem as pressas do país para não
serem presos ou mortos. Que pese tenha havido alguma mobilização em Porto
Alegre, Rio de Janeiro e em São Paulo, de resto, a ruptura democrática
transcorreu sem grandes sobressaltos, até porque a mídia corporativa havia
preparado o ambiente contra o governo democrático ao longo de vários meses.
De 1985, quando do fim
da ditadura militar, a 2016, quando do golpe midiático-jurídico-parlamentar que
depôs a Presidenta Dilma, passaram-se 31 anos, período onde o tema dos direitos
sociais e trabalhistas também estiveram no centro da luta de classes e as
eleições também cumpriram um papel fundamental nesta disputa, com a eleição de
Lula e Dilma. Da mesma forma, além da militância organizada, não houve uma
massiva mobilização popular contra o golpe de 2016.
Esses dois momentos
históricos dizem muito sobre o papel das eleições na cabeça do povo brasileiro.
Ouso dizer que não estabelece uma relação direta entre direitos e democracia. A
democracia ainda não se constituiu num valor. Provavelmente porque, em décadas
de eleições, a democracia pouco entregou em termos de mudanças estruturais. A
partir desta experiência, grande parte do eleitorado usa o voto para escolhas
meramente pessoais, imediatas, sem uma perspectiva cidadã.
E isso faz sentido.
Guardadas as proporções, o Brasil de 1930 é muito parecido com o Brasil de
2024, com as oligarquias políticas dominando todo cenário econômico, político e
social, mantendo e aprofundando a concentração da renda, da propriedade e das riquezas
do país. O povo brasileiro, na sua maioria, vive com míseros dois
salários-mínimos, em péssimas condições de habitação, sendo transportados como
sardinha, em sistemas de transporte precários, pagando tarifas públicas
elevadas, com dificuldades de acesso a saúde e a educação, que pese, todo
esforço do Sistemas Único de Saúde (SUS) e de Assistência Social (SUAS) e das
políticas promovidas pelos recursos do FUNDEB. Sem falar na violência que é a
chaga maior do povo pobre, preto e de periferia.
Chega a ser
inexplicável como, numa das maiores economia do mundo, onde se mantém um dos
maiores índices de desigualdade social, seja possível a manutenção de uma
dinâmica de eleições nos moldes da democracia liberal, por tantos anos.
Soma-se a isso, uma
contradição quando, nos governos, partidos populares produzem políticas
públicas importantes, mas na sua maioria, de caráter paliativo, sem capacidade
de alterar as estruturas que geram as desigualdades, a pobreza, a violência, a
fome e, por consequência, o desencanto das classes populares com a própria
democracia.
Talvez por isso,
somando-se as abstenções, os votos nulos e brancos, mais de 35% dos
eleitores/as se negaram a votar em alguma das alternativas apresentadas, no
segundo turno das eleições. É o indicador do descrédito no processo político
eleitoral como forma de melhorar as suas condições de vida e representa, após
mais de 20 eleições, um evidente cansaço de parte significativa da sociedade
brasileira com a atual lógica da democracia liberal.
Evidente que o
resultado eleitoral não reflete somente este desânimo. É necessário analisar o
resultado do ponto de vista da correlação de forças e, neste sentido, as
eleições municipais são uma cópia quase idêntica da correlação de forças
expressa na vitória de Lula e na composição do Congresso Nacional, em 2022.
A dificuldade de mudar
essa correlação de forças, na minha modesta opinião, está em três fatores que
se combinam: primeiro, na reforma político eleitoral que reforçou os mecanismos
de poder das cúpulas partidárias, dentre elas, o Fundo Partidário e as Emendas
Impositivas. Estas duas medidas colocaram nas mãos da elite partidária, bilhões
de recursos públicos para serem aplicados em suas estratégias eleitorais,
consolidando seu poder através da lógica dos feudos regionais; o segundo fator
é que, somado a esses recursos, as políticas públicas federais são todas
implementadas pelos estados e municípios. São eles que realizam o cadastro das
pessoas, fazem os editais de seleção de projetos e implementam os recursos em
cada um dos seus territórios. Essa dinâmica, sem sistemas de controle e
participação social, empodera os caciques locais que consolidam cada vez mais
seu poder; o terceiro fator é que as esquerdas, dentre elas os movimentos
sociais, se desconectaram das periferias por vários motivos, sejam geracionais,
pela perda de signo da honestidade, os limites das políticas públicas que não
dão conta do tamanho da pobreza e a dificuldade de compreender a revolução
tecnológica e a nova lógica do empreendedorismo como forma de ascensão social
construída pelo uso intensivo das redes sociais, lógica que prescinde das
instituições de mediação de representação política como as associações,
sindicato e os próprios partidos.
Este último fator é
bem conhecido da militância. No entanto, as dinâmicas internas dos partidos
populares cederam para a lógica de poder dos mandatos que se retroalimentam das
mesmas emendas e do fundo partidário já referidos. As práticas políticas democráticas,
necessárias a um partido de massas, com plenárias, prévias e encontros
deliberativos, foram abandonadas. Sem processos massivos de participação na
dinâmica dos partidos populares, perdeu-se a capacidade de formação de novas
lideranças numa cultura participativa, e as mudanças culturais e políticas que
correm na base da classe trabalhadora se tornaram impermeáveis para os partidos
de esquerda.
Para mim essa é uma
questão central. Se tivéssemos construído processos amplos e democráticos para
definição da tática eleitoral e dos nomes, mesmo perdendo as eleições, os
partidos de esquerda teriam acumulado em organização e formação de consciência
política. Com o método verticalizado, perdeu-se em todas as dimensões,
eleitoral e politicamente. Vale lembrar que as eleições são momentos especiais
de acumulação de forças e, quando vitoriosa, de experimentação de políticas com
capacidade de mexer nas bases estruturais que sustentam o capitalismo.
Infelizmente, mesmo quando ganham, os partidos populares estão deixando de
aplicar políticas que sejam, realmente, transformadoras. Neste sentido, os
governos Olívio Dutra (PT) em Porto Alegre (1989-1992) e no Rio Grande do Sul
(1999-2002) ainda são um paradigma a serem superados.
O reconhecimento dos
limites das eleições numa sociedade capitalista não é novo. Tanto que o
Programa Democrático e Popular aprovado no 5º Encontro Nacional do PT3 em 1987
já definia que “o PT afirma seu compromisso com a democracia plena e exercida
diretamente pelas massas. Neste sentido, proclama que sua participação em
eleições e que suas atividades parlamentares se subordinarão ao objetivo de
organizar as massas exploradas e suas lutas.” Ressalta-se que, nesta definição,
estão a defesa da democracia como valor e, ao mesmo tempo, reconhece os limites
dos processos eleitorais realizados em sociedades capitalistas através de
processos na lógica da democracia liberal.
Em síntese, numa
sociedade capitalista alicerçada na desigualdade social, onde a maioria do povo
não tem acesso aos direitos básicos, a participação nos processos eleitorais só
tem sentido de estiver articulada com a organização e a luta popular. Caso contrário,
ou os governos caem ou são cooptados pelo sistema.
Creio que é neste
contexto que devemos analisar e interpretar os resultados das eleições de 2024,
em especial, o descrédito que parcela significativa das classes populares
demonstraram com as alternativas políticas que, em tese, deveriam representar
seus anseios na construção de uma vida melhor. Essa análise se faz necessária,
tanto nos contextos em que os partidos populares perderam eleitoralmente,
quando nos contextos onde foram vitoriosos. Isso porque, é a partir da
compreensão dos motivos do descrédito e do desânimo das classes populares que
será possível reconstruir as relações políticas com sua base social.
Creio que a saída é,
primeiro, vestir o casaco da humildade e reconhecer que não estamos entendendo
a dinâmica da luta de classes no atual contexto mundial; Segundo, abrir bem os
ouvidos e os corações para escutar e entender o que move a periferia e o mundo
do trabalho não assalariado; terceiro, reorientar nossas estratégias de
enfrentamento ao capitalismo no seu estágio atual, principalmente, voltando a
apresentar e defender propostas que rompem com as bases reais do capital, como
a supremacia do lucro e da propriedade privada sobre a vida das pessoas e do
planeta, como a Reforma Agrária, a Reforma Urbana e a Reforma do Sistema
Político e o controle sobre o grande capital nacional e internacional, únicas
formas de enfrentar as desigualdades e de evitar o colapso climático. Por fim,
construir uma estratégia permanente de formação de lideranças, pela práxis da
educação popular na luta por direitos, para quem possamos dividir o bastão da
luta anticapitalismo nas próximas décadas, com as novas gerações.
Só acredito na
reconstrução do projeto democrático e popular a partir de amplos e massivos
processos de discussão, mobilização, organização e decisão democrática,
envolvendo as/os milhões de militantes e eleitoras/es de esquerda se
mobilizaram de 2016 para cá. Recordar que, sem governos, resistimos aos ataques
da extrema direita por 6 anos e criamos as condições para eleger Lula e
derrotar o bolsonarismo. Sem dar voz e poder às suas bases sociais, de forma
consciente e organizada, a esquerda não demonstrará que compreende o tamanho do
desafio posto para superar o capitalismo.
Fonte: Por Mauri Cruz
em Outras Palavras
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