segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Mauri Cruz: ‘Eleições - Fiasco das esquerdas e a possível reorientação

Começo este artigo com um agradecimento as companheiras e companheiros do campo democrático e popular que colocaram seus nomes e sua trajetória nas disputas eleitorais de 2024. Sabemos que os acertos e os erros eleitorais são fruto de decisões coletivas, ninguém é candidata/o de si mesmo, no entanto, os sacrifícios e os custos pessoais e políticos são assumidos por quem se dispõe a colocar seu nome para o pleito. Por isso, meu profundo agradecimento as guerreiras Maria do Rosário (PT) e Tamyres Filgueira (PSOL) que foram incansáveis na missão de fazer o enfrentamento político em Porto Alegre. A Guilherme Boulos (PSOL) e Marta Suplicy (PT) por terem, igualmente, enfrentado em São Paulo as agruras de uma disputa de novo feitio, onde a lógica das redes sociais dominou a dinâmica política. E ao camarada e amigo Edmilson Rodrigues (PSOL), que enfrentou, não só a extrema direita de Belém, mas sofreu com a articulação de alianças do chamado Centrão com setores que compõe a base do Governo Lula. A todas as demais lideranças que dispuseram seus nomes e a militância popular que esteve presente, nas ruas e nas redes sociais, fazendo o bom combate, meu muito obrigado.

Aprendi que, quando se está perplexo frente a realidade, deve-se olhar o fio da história, é nele que reside a explicação. A história humana é resultado de suas próprias escolhas. Digo isso, enquanto leio o primeiro volume da biografia de Valdir Pires escrita pelo biógrafo e amigo, Emiliano José. Emiliano é um exímio escritor, sendo autor da biografia, transformada em filme, de Lamarca, o capitão da guerrilha1.

O que nos interessa para esta reflexão é um fato histórico contado na biografia de Valdir Pires por Emiliano José. Em 31 de março de 1964, na condição de Ministro Consultor-Geral da República no Governo Jango, Valdir Pires, junto com o também Ministro Chefe da Casa Civil, Darci Ribeiro, foram os últimos a saírem do Palácio do Planalto, não sem antes de redigirem mensagem ao Congresso reiterando que o Presidente Jango estava em solo brasileiro, portanto, a declaração da vacância do cargo de presidente era um golpe. Foi o último ato democrático por décadas. Passava da meia noite quando, às escondidas, foram diretamente para o aeroporto de Brasília onde, por obra do amigo Rubens Paiva, havia um monomotor esperando para levá-los a Porto Alegre ao encontro de Jango. Viagem esta que foi alterada, de forma que eles acabaram aterrizando no Uruguai no dia seguinte. De lá, Valdir só retornaria ao Brasil em 19702. Passadas as eleições municipais de 2024 e, estando lendo sobre a saga destes importantes ministros de Jango, é impossível não estabelecer um comparativo histórico.

De 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, passando por seu suicídio em 1954, até 1964 com a deposição de Jango, foram meros 34 anos. Período de profundas transformações onde, de uma forma ou de outra, o tema do mundo do trabalho esteve no centro de embate na luta de classes, e as eleições foram peça chave nesta disputa, resultando nas eleições de Getúlio, Jucelino e Jango. Mas a fragilidade do poder democrático se fez presente quando do golpe militar em 1964, obrigando um Presidente da República e seus ministros saírem as pressas do país para não serem presos ou mortos. Que pese tenha havido alguma mobilização em Porto Alegre, Rio de Janeiro e em São Paulo, de resto, a ruptura democrática transcorreu sem grandes sobressaltos, até porque a mídia corporativa havia preparado o ambiente contra o governo democrático ao longo de vários meses.

De 1985, quando do fim da ditadura militar, a 2016, quando do golpe midiático-jurídico-parlamentar que depôs a Presidenta Dilma, passaram-se 31 anos, período onde o tema dos direitos sociais e trabalhistas também estiveram no centro da luta de classes e as eleições também cumpriram um papel fundamental nesta disputa, com a eleição de Lula e Dilma. Da mesma forma, além da militância organizada, não houve uma massiva mobilização popular contra o golpe de 2016.

Esses dois momentos históricos dizem muito sobre o papel das eleições na cabeça do povo brasileiro. Ouso dizer que não estabelece uma relação direta entre direitos e democracia. A democracia ainda não se constituiu num valor. Provavelmente porque, em décadas de eleições, a democracia pouco entregou em termos de mudanças estruturais. A partir desta experiência, grande parte do eleitorado usa o voto para escolhas meramente pessoais, imediatas, sem uma perspectiva cidadã.

E isso faz sentido. Guardadas as proporções, o Brasil de 1930 é muito parecido com o Brasil de 2024, com as oligarquias políticas dominando todo cenário econômico, político e social, mantendo e aprofundando a concentração da renda, da propriedade e das riquezas do país. O povo brasileiro, na sua maioria, vive com míseros dois salários-mínimos, em péssimas condições de habitação, sendo transportados como sardinha, em sistemas de transporte precários, pagando tarifas públicas elevadas, com dificuldades de acesso a saúde e a educação, que pese, todo esforço do Sistemas Único de Saúde (SUS) e de Assistência Social (SUAS) e das políticas promovidas pelos recursos do FUNDEB. Sem falar na violência que é a chaga maior do povo pobre, preto e de periferia.

Chega a ser inexplicável como, numa das maiores economia do mundo, onde se mantém um dos maiores índices de desigualdade social, seja possível a manutenção de uma dinâmica de eleições nos moldes da democracia liberal, por tantos anos.

Soma-se a isso, uma contradição quando, nos governos, partidos populares produzem políticas públicas importantes, mas na sua maioria, de caráter paliativo, sem capacidade de alterar as estruturas que geram as desigualdades, a pobreza, a violência, a fome e, por consequência, o desencanto das classes populares com a própria democracia.

Talvez por isso, somando-se as abstenções, os votos nulos e brancos, mais de 35% dos eleitores/as se negaram a votar em alguma das alternativas apresentadas, no segundo turno das eleições. É o indicador do descrédito no processo político eleitoral como forma de melhorar as suas condições de vida e representa, após mais de 20 eleições, um evidente cansaço de parte significativa da sociedade brasileira com a atual lógica da democracia liberal.

Evidente que o resultado eleitoral não reflete somente este desânimo. É necessário analisar o resultado do ponto de vista da correlação de forças e, neste sentido, as eleições municipais são uma cópia quase idêntica da correlação de forças expressa na vitória de Lula e na composição do Congresso Nacional, em 2022.

A dificuldade de mudar essa correlação de forças, na minha modesta opinião, está em três fatores que se combinam: primeiro, na reforma político eleitoral que reforçou os mecanismos de poder das cúpulas partidárias, dentre elas, o Fundo Partidário e as Emendas Impositivas. Estas duas medidas colocaram nas mãos da elite partidária, bilhões de recursos públicos para serem aplicados em suas estratégias eleitorais, consolidando seu poder através da lógica dos feudos regionais; o segundo fator é que, somado a esses recursos, as políticas públicas federais são todas implementadas pelos estados e municípios. São eles que realizam o cadastro das pessoas, fazem os editais de seleção de projetos e implementam os recursos em cada um dos seus territórios. Essa dinâmica, sem sistemas de controle e participação social, empodera os caciques locais que consolidam cada vez mais seu poder; o terceiro fator é que as esquerdas, dentre elas os movimentos sociais, se desconectaram das periferias por vários motivos, sejam geracionais, pela perda de signo da honestidade, os limites das políticas públicas que não dão conta do tamanho da pobreza e a dificuldade de compreender a revolução tecnológica e a nova lógica do empreendedorismo como forma de ascensão social construída pelo uso intensivo das redes sociais, lógica que prescinde das instituições de mediação de representação política como as associações, sindicato e os próprios partidos.

Este último fator é bem conhecido da militância. No entanto, as dinâmicas internas dos partidos populares cederam para a lógica de poder dos mandatos que se retroalimentam das mesmas emendas e do fundo partidário já referidos. As práticas políticas democráticas, necessárias a um partido de massas, com plenárias, prévias e encontros deliberativos, foram abandonadas. Sem processos massivos de participação na dinâmica dos partidos populares, perdeu-se a capacidade de formação de novas lideranças numa cultura participativa, e as mudanças culturais e políticas que correm na base da classe trabalhadora se tornaram impermeáveis para os partidos de esquerda.

Para mim essa é uma questão central. Se tivéssemos construído processos amplos e democráticos para definição da tática eleitoral e dos nomes, mesmo perdendo as eleições, os partidos de esquerda teriam acumulado em organização e formação de consciência política. Com o método verticalizado, perdeu-se em todas as dimensões, eleitoral e politicamente. Vale lembrar que as eleições são momentos especiais de acumulação de forças e, quando vitoriosa, de experimentação de políticas com capacidade de mexer nas bases estruturais que sustentam o capitalismo. Infelizmente, mesmo quando ganham, os partidos populares estão deixando de aplicar políticas que sejam, realmente, transformadoras. Neste sentido, os governos Olívio Dutra (PT) em Porto Alegre (1989-1992) e no Rio Grande do Sul (1999-2002) ainda são um paradigma a serem superados.

O reconhecimento dos limites das eleições numa sociedade capitalista não é novo. Tanto que o Programa Democrático e Popular aprovado no 5º Encontro Nacional do PT3 em 1987 já definia que “o PT afirma seu compromisso com a democracia plena e exercida diretamente pelas massas. Neste sentido, proclama que sua participação em eleições e que suas atividades parlamentares se subordinarão ao objetivo de organizar as massas exploradas e suas lutas.” Ressalta-se que, nesta definição, estão a defesa da democracia como valor e, ao mesmo tempo, reconhece os limites dos processos eleitorais realizados em sociedades capitalistas através de processos na lógica da democracia liberal.

Em síntese, numa sociedade capitalista alicerçada na desigualdade social, onde a maioria do povo não tem acesso aos direitos básicos, a participação nos processos eleitorais só tem sentido de estiver articulada com a organização e a luta popular. Caso contrário, ou os governos caem ou são cooptados pelo sistema.

Creio que é neste contexto que devemos analisar e interpretar os resultados das eleições de 2024, em especial, o descrédito que parcela significativa das classes populares demonstraram com as alternativas políticas que, em tese, deveriam representar seus anseios na construção de uma vida melhor. Essa análise se faz necessária, tanto nos contextos em que os partidos populares perderam eleitoralmente, quando nos contextos onde foram vitoriosos. Isso porque, é a partir da compreensão dos motivos do descrédito e do desânimo das classes populares que será possível reconstruir as relações políticas com sua base social.

Creio que a saída é, primeiro, vestir o casaco da humildade e reconhecer que não estamos entendendo a dinâmica da luta de classes no atual contexto mundial; Segundo, abrir bem os ouvidos e os corações para escutar e entender o que move a periferia e o mundo do trabalho não assalariado; terceiro, reorientar nossas estratégias de enfrentamento ao capitalismo no seu estágio atual, principalmente, voltando a apresentar e defender propostas que rompem com as bases reais do capital, como a supremacia do lucro e da propriedade privada sobre a vida das pessoas e do planeta, como a Reforma Agrária, a Reforma Urbana e a Reforma do Sistema Político e o controle sobre o grande capital nacional e internacional, únicas formas de enfrentar as desigualdades e de evitar o colapso climático. Por fim, construir uma estratégia permanente de formação de lideranças, pela práxis da educação popular na luta por direitos, para quem possamos dividir o bastão da luta anticapitalismo nas próximas décadas, com as novas gerações.

Só acredito na reconstrução do projeto democrático e popular a partir de amplos e massivos processos de discussão, mobilização, organização e decisão democrática, envolvendo as/os milhões de militantes e eleitoras/es de esquerda se mobilizaram de 2016 para cá. Recordar que, sem governos, resistimos aos ataques da extrema direita por 6 anos e criamos as condições para eleger Lula e derrotar o bolsonarismo. Sem dar voz e poder às suas bases sociais, de forma consciente e organizada, a esquerda não demonstrará que compreende o tamanho do desafio posto para superar o capitalismo.

 

Fonte: Por Mauri Cruz em Outras Palavras

 

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