Jacqueline Muniz: ‘PEC do SUSP ou PEC do
SUP (Sistema Único Policial)?’
Presidente Lula, não
transforme o SUSP em SUP! A proposta de PEC do SUSP não constitucionaliza o
sistema federativo que criamos em 2003, quando estávamos no seu primeiro
governo (Lula 1). Ela, na verdade, cria o SUP - SISTEMA ÚNICO POLICIAL, que
aumenta a já grave ingovernabilidade dos meios de força, ampliando o poder de
polícia e sua autonomização. E isto repolitizando as polícias federais pela
extensão de suas competências sem delimitação de suas capacidades coercitivas,
sem uma modelagem de suas arquiteturas organizacionais, sem um desenho de suas
cadeias de comando, carreiras e especializações funcionais, sem um estudo
prévio da provisão de efetivos e orçamento necessários diante dos novos
mandatos ampliados propostos pela PEC do SUP.
Em democracias, não se
amplia âmbitos e alcances de mandatos policiais sem a delimitação de seus
contornos políticos-normativos e procedimentais de atuação e sem o
consentimento da sociedade policiada. É a sociedade a proprietária do poder de
polícia cuja administração é concedida ao Estado. E, portanto, é ela quem deve
validar a distribuição de coerções legais e legítimas que serão aplicadas sobre
ela e que até o presente a própria proposta da PEC revela desconhecer. É
fundamental, antes de sair remendando a Constituição, ter um projeto efetivo de
redesenho institucional para o SUSP amplamente conhecido pela sociedade, que
permita simular e antever problemas já conhecidos pelas experiências históricas
estudadas pela ciência.
Não se deve por e
engordar onças indomáveis para tomar conta de quintal. Porque elas podem acuar,
perseguir, enjaular e vitimar os seus donos. A lista de vitimados pelos abusos
estatais é imensa e vai dos pretos, pobres e periféricos, passando por presidentes
da República e chegando a vereadores como Marielle.
Quando vamos aprender
que não se pode improvisar com instrumentos que cortam e ferem como já diziam
nossas mães? Pois as espadas policiais e das FFAA até começam cortando as
cabeças de oponentes políticos para fazerem algum agrado partidário e
“mostrarem serviço” com “saldos operacionais” vistosos. Mas, como é de sua
natureza política, quando emancipadas do controle civil e estatal, (o caso
brasileiro agravado com a PEC do SUP), estas avançam até chegarem às cabeças
dos aliados de ocasião.
Saibam todos que não
se fideliza corporações armadas dando mais e mais poderes e privilégios ou
fazendo uso de uma lógica sindicalista tradicional de negociação. A história
das democracias ocidentais explicita que a primeira e única instância de
fidelidade de burocracias armadas é a elas mesmas. Por isso, com as espadas a
conversa política é outra se queremos mudar o bordão da “democracia ameaçada”.
Para garantir
estabilidade e previsibilidade no exercício do poder legal e legítimo e, com
isso, evitar espasmos golpistas e pirraças armadas que tornam refém governos e
governantes, são inegociáveis o comando civil sobre os meios de força comedidos
e combatentes, a quebra de monopólios em suas atribuições, a desconcentração de
suas competências e a descentralização de suas cadeias de comando e controle. E
isto é o inverso do que a PEC do SUP deixa entrever nas entrelinhas
jurídico-político corporativas.
Por isso, é tão
fundamental um efetivo projeto de reengenharia organizacional que embase a
constitucionalização de sistema de segurança pública e não de uma justaposição
de entes policiais super empoderados do projeto do SUP. No governo Lula 1, o
processo de concepção e implantação incluiu o projeto chamado Arquitetura
(institucional) do SUSP que consultou operadores, especialistas, pesquisadores
e sociedade civil e que segue esquecido pegando poeira nas prateleiras do MJSP.
Este se fez acompanhar, em 2003, de uma Carta de Adesão dos governadores que
servia como como espaço político continuado de discussão e construção
processual e federativa do SUSP.
Presidente Lula, com
toda ênfase que aqui coloco, não se amplia o poder e o âmbito de atuação de
meios de força sem blindá-los do seu uso político-partidário e de sua
apropriação privatista e corporativista que ensejou deformidades ao devido
processo legal como o lavajatismo e a banalização da violência estatal letal. A
fatura salgada é bastante conhecida por nós e antes de nós nos países de
tradição democrática. Tem-se como paga a “milicialização” dos agentes públicos
com o uso da carteira de polícia para fins particulares, a conversão das
polícias em partidos políticos ocultos a serviço de acordos clientelistas de
quem chega ao comando e, não menos grave, a emergência de governos policiais
autônomos conduzidos por grupelhos que se beneficiam dos proximidade com
políticos.
Estes grupelhos, com
cargos palacianos passam, nos bastidores, a governar no lugar dos governantes
legitimamente eleitos, transformando-os em ventríloquos dos discursos
fatalistas de lei e ordem que instauram o regime do medo e naturalizam as
práticas de exceção. Há sempre falas chantagistas do tipo “estamos à beira de
um banho de sangue”, “eles vão se amotinar”, “a tropa está inquieta”, “o crime
está mais forte e organizado que o estado” que visam gastar a tinta da caneta
do governante. Esta tem sido a história de reformas equivocadas na segurança
pública mundo afora, mas que garantem resultados eleitorais com as matanças,
a clientelização das polícias e a
transformação dos policiais em mercadorias políticas. Faz-se crer que se
institucionaliza as polícias quando, em verdade, se fortalece o projeto de
poder e o mandonismo de certos grupos que tomam de assalto as instituições
policiais por dentro.
Cabe aqui, mais uma
vez ressaltar que Espadas (policiais ou das FFAA) autonomizadas e com
superpoderes cortam a língua do verbo da política à esquerda, ao centro e à
direita e rasgam a letra da lei. Cabe aqui mais uma vez repetir que não se
improvisa com espadas que estão autorizadas a cortar, ferir e deter, “em nome
da lei”. E elas fazem isso por meio de sua discricionariedade, à moda
brasileira, que segue indevassável, sem controle, sem aferição de mérito e
intocável. O que permite confundir intencionalmente arbítrio com a
arbitrariedade, possibilitando os frequentes arroubos no uso do poder de
polícia ainda mais estendidos pela PEC do SUP.
É preciso dizer que a
PEC não apresenta um arranjo federativo análogo ao do SUS (nossa inspiração)
que traga a definição das competências exclusivas e partilhadas entre a União,
Estados e Municípios. Insiste, desde a constituição autoritária de 1967, na consolidação
dos monopólios do poder de polícia (cuja definição legal ainda é da ditadura
civil-militar) e na manutenção de seus mandatos como procurações em aberto ou
cheques em branco.
Mais uma vez,
atendeu-se às lógicas corporativistas presentes na constituinte que resultaram
no arremedo do artigo 144 que normatiza funções policiais monopolistas ao invés
de delimitar as atribuições federativas dos entes federados. Uma vez mais o
governo das armas foi mais importante que os governos civis eleitos. Tudo isso,
na contramão do que se faz em democracias de larga escala para governar os
meios de força com o necessário comando civil das espadas, como aqui
ressaltado.
A PEC do SUP se
apresenta como um ajuntamento que amplifica as carteiradas, as desautorizações
e os conflitos de competência já existentes
com as polícias federais, estaduais e municipais, inclusive com as FFAA,
com as polícias do Congresso Nacional etc. Isto porque tem-se a ausência
intencional de uma proposta de sistema que empreste alguma ossatura federativa.
Reproduz-se a falta de sistema, com o empilhamento de polícias que tornam bem
maiores do que seus governos regionais, municipais e nacional. Os poderes das
polícias são reconstitucionalizados para se tornarem imexíveis por quem
governa, ao passo que os poderes dos entes federados seguem como uma derivação
das atribuições policiais monopolistas. O desenho que se pontifica é de
polícias acima de governos! O nome disso é Estado Policial!
A PEC do SUP não dá
comando à União como se acredita e só fortalece as Federais que ficam ainda
mais empoderadas que o Ministério e o governo eleito. Na PEC do SUP a segurança
é igual ou se reduz às polícias, enfraquecendo a capacidade de governo da presidência,
governadores e prefeitos.
Adota-se como
“eficiente” as chamadas “polícias ostensivas” e “judiciárias estaduais”
reproduzindo erroneamente o lobismo da Carta de 1988, a confusão entre formas
de emprego de recursos policiais (ostensivo, judiciário etc.) com os mandatos
policiais e seus desenhos organizacionais. Isto corresponde a insistir no erro
de reduzir as polícias a instrumentalidade dos seus meios apartados dos seus
fins e dos seus modos do policiar que justificam suas existências como
polícias. Constitucionalizam-se as polícias como meios em si mesmos, um
passaporte para a emancipação predatória do poder coercitivo.
É preciso ressaltar
que tanto os desenhos brasileiros das polícias ostensivas quanto o das polícias
judiciárias comprometem internamente as suas cadeias de comando e controle, por
excesso de verticalização das PMs e de horizontalização das Polícias Civis.
Isto corresponde a dizer que nas PMs cada OPM se transforma em uma capitania
hereditária autônoma e nas PCs cada distrito policial ou superintendência
revela-se como um Vaticano dentro de Roma. Isto, na prática, enclausura sobre
poderes nas mãos de oficiais e delegados, nos BPMs e Delegacias, esvaziando a
capacidade de qualquer comando geral implantar políticas de polícia, bem como
gerando um apartheid com a tropa e a tiragem que respondem às rotinas dos
policiamentos (patrulha, emergência, operação especial, investigação e
inteligência). Em termos concretos, comandar nestes desenhos significa pedir
“por favor”, ser animador de auditório ou clientelizar nomeando parentes,
amigos e cumplices. A PEC do SUP pode agradar as cúpulas provisórias, mas não
garante adesão das bases policiais que são permanentes nas polícias.
Como se vê, não se tem
como mexer de forma satisfatória nas competências da PF e PRF sem reorganizar
as atribuições de outros órgãos em um desenho federativo e republicano, de fato
e de direito, se queremos ter um sistema federativo de segurança pública.
Trata-se de uma mudança que incha certos órgãos comprometendo todo corpo. As
Guardas Municipais, as Polícias Penais (ainda que pegando os recursos do FUNPEN
para a segurança), a Força Nacional estão fora desta PEC do SUP. Aliás, uma
Polícia Ostensiva da União vai assimilar o lugar a Força Nacional ostensiva.
Ambas, mais que redundantes serão o paraíso dos conflitos de competência, das
carteiradas e das desautorizações.
Também está fora da
PEC do SUP a interface com as FFAA que são chamadas frequentemente para fazerem
GLO e que exercem patrulhamento cotidiano nas fronteiras marítimas, aéreas e
terrestres. Evidencia-se, uma vez mais, que a PEC do SUP quer concentrar e centralizar
poder, do tipo só faço política nacional de segurança pública se for para
mandar ou ao estilo jurídico brasileiro de dar serviço para os outros com o
despacho do “cumpra-se”. Mas, com a indelicada ressalva, que quem mandará não é
o governo e sim as polícias federais que hoje já são mundos independentes e a
parte dentro do Ministério e seguem linhas paralelas à secretaria nacional de
segurança pública.
E, também, não é
desejável em democracias subordinar a política penitenciária as razões de
segurança que são sempre restritivas e coercitivas mesmo quando dissuasórias e
repressivas. Assim é preocupante fundir o FUNPEN com a Fundo da Segurança
Pública. Afinal, quem vigia e prende não deve custodiar, e esta foi a marca da
criação liberal das polícias modernas e a invenção democrática da segurança de
sobrenome pública. Parece óbvio que o que acontece escondido atrás dos muros
das cadeias brasileiras, incluindo a organização das governanças criminais,
importa pouco. Pouco importa que o preso comum seja a valiosa commodity da
parceria público-privado entre domínios armados e o Estado que organiza o crime
nas ruas e nas cadeias, criando a ilusão de sucesso no combate ao crime
organizado.
A PEC do SUP aumenta
poder de polícia sem contrapartidas de regulação e participação sociais como
tem no SUS. Não oferece qualquer esboço de controle, transparência,
responsabilização e accountability para conter os maus usos e abusos do poder
de polícia agora ainda mais ampliado no SUP. Se continuar desse jeito as
polícias se sentarão de vez nas cadeiras dos governantes, constituindo-se como
autarquias armadas sem tutela ou como governos autônomos que já são hoje.
Note-se que o problema
não é ampliar competência de polícia. É não ter um sistema com pesos e
contrapesos que não existem na PEC do SUP.
É importante rememorar que a PEC 51/2013 do Lindbergh Farias (PT), dez
anos posterior a criação do SUSP, mesmo com problemas de concepção e
viabilidade, tinha uma proposta de arranjo federativo. Felizmente não era um
clube onde só entra corporações armadas como parece indicar a PEC do SUP. E por
que foi esquecida pelos governos de Lula e Dilma?
Tempos difíceis
estamos passando na segurança pública. O governo Lula 3 parece buscar recuperar
a paternidade do SUSP (2003) perdida para o Temer em 2018, quando assinou a lei
do SUSP e ainda cumpriu, no mesmo ano, a promessa de campanha de Lula de criar
o Ministério da Segurança Pública. Mas o resgate de próprios feitos acontece em
2024 com a deformação ineficaz do SUSP em SUP – sistema único policial. Há boas
razões para governadores, prefeitos e sociedade civil gritarem para que não se
normalize os maus usos e abusos de poder de polícia! Dá tempo ainda de criar o
SUSP na Constituição.
Fonte: Brasil 247
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