Falta de um tratado internacional de
enfrentamento a pandemias expõe impasse para resposta global mais eficiente
Somente este ano,
notícias sobre novos vírus têm ganhado destaque na mídia. Um dos mais recentes
é o surto da doença causada pelo vírus Marburg, uma febre hemorrágica com alta
taxa de mortalidade, identificada em Ruanda, no centro-leste da África. Com uma
mortalidade de até 88%, a doença preocupa autoridades, especialmente pela falta
de vacinas ou tratamentos antivirais aprovados. Embora diversos fármacos
estejam em fase de testes, os novos casos aumentam a atenção das autoridades de
saúde. Em 14 de agosto, houve a declaração da Organização Mundial da Saúde
(OMS), que classificou a Mpox como uma emergência de saúde pública de
preocupação internacional. O aumento de doenças infecciosas levantou
questionamentos sobre a capacidade dos países em enfrentar futuras pandemias.
Neste ano, esforços foram feitos para criar um tratado para novas pandemias
para evitar erros semelhantes aos da Covid-19. Contudo, o acordo da OMS
enfrenta desafios significativos, com países divergindo sobre a forma de
avançar. Entre os principais obstáculos estão questões de acesso à propriedade
intelectual, tecnologia, know-how e a distribuição equitativa de terapias e
vacinas.
“Continuamos com a
dificuldade de ter a vacina distribuída nos países mais pobres”, analisa
Alberto Chebabo, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “O
surto acontece na África porque ela é esquecida; então, a maior parte das
empresas e dos países não têm interesse em resolver a situação lá. No entanto,
isso acaba, obviamente, saindo da África e indo para outros continentes,
inclusive para os países desenvolvidos. Não teremos um mundo mais saudável
enquanto não houver equidade na área de saúde.”
Ele explicou que o
Brasil, como país de desenvolvimento intermediário – nem rico nem pobre – tem
algumas vantagens em relação, por exemplo, à África, mas muitas desvantagens em
comparação com os países do hemisfério Norte, os países ricos.
Apesar disso, a
colaboração internacional para enfrentar futuras pandemias é considerada
essencial por especialistas. Um artigo publicado na revista “Journal of
Infection and Public Health” chama a atenção para a gestão de pandemias que
deve ocorrer em múltiplos níveis, enfatizando a importância de uma liderança
eficaz, comunicação clara e coordenação adequada entre medidas, dados e planos:
“A OMS recomenda e descreve abordagens médicas e de emergências de saúde
pública durante pandemias. Entretanto, essas recomendações precisam ser
implementadas por cada nação por meio de seus níveis estratégico, tático e
operacional. A estrutura organizacional, as abordagens e as prioridades de cada
nação podem diferir fortemente, resultando em grandes dificuldades na sincronização
de uma abordagem multinacional”, sinaliza o artigo.
Embora a preparação
para futuras pandemias tenha ganhado destaque após a OMS classificar a Mpox
como uma emergência de saúde pública de preocupação internacional – um anúncio
considerado preciso pelos especialistas ouvidos pela reportagem – é necessário ir
além das ações da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da OMS para que
haja equidade e solidariedade em ações concretas para enfrentar futuras
pandemias.
“Os patógenos não
respeitam fronteiras geográficas e a cooperação internacional é fundamental
para a prevenção e o controle de potenciais pandemias”, afirma Luis Eugenio
Portela, coordenador do Comitê de Relações Internacionais da Abrasco,
ex-presidente da Federação Mundial das Associações de Saúde Pública. Ele
ressalta que o ‘nacionalismo’ sanitário permanece forte, como evidenciado pela
aquisição, por países ricos, da maior parte das vacinas contra a influenza
H5N1, que está afetando aves e bovinos nos Estados Unidos: “O maior desafio
para prevenir e enfrentar pandemias é distribuir de modo equitativo a riqueza
socialmente produzida”.
• Articulação dos países para
enfrentamento de novas pandemias
O que deixa o cenário
em alerta, é que após dois anos de negociações, o Órgão Intergovernamental de
Negociação (INB) da OMS ainda não conseguiu alcançar um consenso para
apresentar um acordo sobre pandemias à Assembleia Mundial da Saúde deste ano. A
principal disputa gira em torno do sistema de Acesso a Patógenos e Repartição
de Benefícios (PABS). A proposta discutida prevê que todos os países
compartilhem patógenos identificados como possíveis causadores de pandemias e
também tecnologias de prevenção ou tratamento.
No entanto, o
coordenador do Comitê de Relações Internacionais da Abrasco, aponta que países
ricos obstruíram o acordo ao recusarem a repartição dos benefícios, ou seja, o
compartilhamento de tecnologias derivadas da pesquisa sobre novos patógeno: “A
OMS e seus países membros, no melhor interesse de todos os países do mundo,
deveriam estar investindo mais no apoio aos países que são hoje focos da
doença. Contudo, são conhecidas as limitações financeiras da OMS e a
insuficiência do apoio dos países ricos, impedindo uma atuação internacional
mais vigorosa nas regiões acometidas pela Mpox”, esclarece. Em sua opinião, as
ajudas que os EUA e a União Europeia estão oferecendo são consideradas ‘gotas
no oceano’.
Opinião compartilhada
por Mellanie Fontes-Dutra, biomédica, professora da escola de saúde da
Unisinos, pesquisadora e divulgadora científica, membro da rede Todos Pelas
Vacinas. Para ela, é preciso engajar países, especialmente aqueles com recursos
limitados, na preparação e prevenção de pandemias: “Ampliar redes de
colaboração internacionais e o compartilhamento rápido de informações sobre
patógenos é imprescindível para respostas mais assertivas daqui em diante”,
aponta.
Por isso defende
tornar visíveis os problemas dessas regiões para evitar que suas doenças sejam
negligenciadas, para garantir que soluções cheguem até elas. Segundo ela, isso
inclui fornecer acesso e doação de medicamentos e vacinas, apoiar tecnologias que
aumentem a produção local e capacitar profissionais de saúde em prevenção e
diagnóstico: “Não podemos esperar que essas áreas se engajem sem o devido
suporte em recursos”, sinaliza.
Desde 2022, surtos
globais de Mpox têm sido registrados, com o vírus se espalhando por 116 países,
principalmente do clado IIb, responsável pela disseminação mundial.
Recentemente, um novo clado, o clado I, surgiu, afetando a República
Democrática do Congo e outros países africanos como Burundi, Quênia, Ruanda e
Uganda, além de ter sido detectado na Suécia e na Tailândia. Países como China
e Tailândia estão reforçando medidas de controle, especialmente em portos,
aeroportos e outros pontos de entrada, para conter a disseminação do vírus.
Diante do clado Ib,
que pode estar associado a uma maior transmissibilidade, a biomédica destaca
que ainda faltam dados para determinar se essa variante apresenta um risco
elevado de causar formas mais graves da doença. A rápida disseminação em países
vizinhos à República Democrática do Congo, que enfrentam condições precárias de
acesso à saúde e têm pouca ou nenhuma disponibilidade de imunizantes e
medicamentos, é motivo de preocupação. “Por isso, é tão importante haver uma
coordenação global para auxiliar as regiões mais afetadas por este surto,
mitigando os impactos nessas populações e reduzindo o risco de dispersão para
outras localidades, dentro e fora do continente africano”, ressalta.
• O Brasil está preparado para novas
pandemias?
“A decretação de
emergência pela OMS serve principalmente como um alerta”, afirma José Cerbino
Neto, infectologista e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia
(INI/Fiocruz) e consultor científico do Richet/Rede D’Or. “Ao declarar uma
emergência de saúde pública de interesse internacional, a OMS convoca todos os
países a adotar medidas para prevenir a disseminação do vírus. Isso inclui
preparar a estrutura para diagnóstico e tratamento, além de garantir a
logística necessária. O sinal de alerta da OMS facilita a implementação dessas
ações”, explica.
Conforme o
infectologista, a decretação amplia a capacidade diagnóstica na região,
aprimora a vigilância para identificar todos os casos e viabiliza estudos sobre
os mecanismos de transmissão e fatores de risco para formas graves da doença.
Também permite avaliar se o padrão de transmissão impacta os testes
diagnósticos, facilitando ajustes nas estratégias de controle.
No Brasil, o
Ministério da Saúde publicou uma Nota Técnica/ 29/2024-DATHI/SVSA/MS com
recomendações gerais para lidar com a Mpox. No dia 15 de agosto, instalou um
Centro de Operações de Emergência em Saúde para coordenar as ações de resposta
à Mpox. Em nota, a pasta respondeu que
“desde 2023 tem intensificado o enfrentamento da Mpox com várias ações.
Destacam-se a ampliação da capacidade de diagnóstico, incluindo a implementação
de testes moleculares em todos os 27 Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens)
e 3 laboratórios de referência nacional. Além disso, foram realizadas oficinas
sobre o sistema de informação e tratamento de pessoas com HIV/aids, cinco
webinários nacionais e a produção de publicações sobre a doença, disponíveis no
portal do Ministério da Saúde, como o plano de contingência, boletins
epidemiológicos, protocolos e notas informativas”, diz a nota.
Já no dia da
declaração da OMS, a Anvisa publicou a Nota técnica nº14/2024, tratando de
medidas de intensificação da vigilância em portos, aeroportos e pontos de
entrada no país. Entre outras ações, o documento recomenda a “ampla divulgação
de sinais e sintomas relativos a essa doença e medidas para manejo de casos” e
que “os planos de contingência locais devem contemplar protocolos para
atendimento de eventos de saúde pública relacionados a Mpox”.
O anúncio também
permitiu reflexões sobre o Brasil estar preparado para lidar com uma futura
pandemia. “Estamos mais preparados no Brasil do que estávamos antes da
Covid-19. Mas dizer que estamos preparados para uma nova pandemia é muito
difícil. Eu acho que não”, afirma Alberto Chebabo, da SBI.
Para ele, há muito a
ser feito. O sistema de vigilância permanece fraco e a rede de laboratórios é
pequena e mal estruturada. Além disso, o sistema de saúde continua fragilizado
e sobrecarregado, o que agrava a dificuldade de atendimento em caso de aumento
na demanda. De acordo com Chebabo, o país ainda enfrenta problemas semelhantes
aos vividos durante a pandemia, como a falta de equipamentos de proteção
individual e materiais essenciais. A baixa produção de produtos de saúde, como
luvas e medicamentos, é uma preocupação, especialmente devido à dependência de
importações da Índia e da China para insumos e até medicamentos prontos. “Esse
talvez seja o maior desafio para nós: estruturar uma indústria nacional capaz
de oferecer uma resposta rápida no país. Isso não é uma tarefa simples nem
rápida, e envolve tanto a área de medicamentos quanto a de insumos de saúde”,
diz o presidente da SBI.
Como resposta, o
Complexo Econômico-Industrial da Saúde visa expandir a produção nacional de
itens prioritários para o SUS e reduzir a dependência do Brasil de insumos,
medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde importados, mas o seu
desenvolvimento pode levar anos.
Sobre o Brasil estar
preparado para uma crise sanitária global, Luis Eugenio Portela, da Abrasco, é
mais cauteloso: “A maior preocupação é que as lições mais importantes não foram
aprendidas”. Para ele, as pandemias geralmente surgem de zoonoses, em que patógenos
– principalmente vírus – são transmitidos de animais para seres humanos. Porém,
a sociedade continua a adotar as mesmas práticas prejudiciais, como a
degradação de habitats naturais e a criação intensiva de animais para a
comercialização de proteínas. “Os surtos recentes de Mpox e gripe aviária,
ambos com potencial de se tornarem pandemias, são um lembrete claro dessa
problemática”, justifica.
As mudanças climáticas
têm sido um ponto importante na discussão sobre saúde pública, pois agravam os
cenários ao alterar os padrões de precipitação e temperatura, explica Mellanie
Fontes-Dutra. Segundo ela, essas mudanças afetam o ciclo reprodutivo e a distribuição
geográfica de vetores, como insetos que transmitem arboviroses. Além disso,
eventos extremos, como inundações, elevam o risco de doenças transmitidas pela
água e podem modificar rotas migratórias de animais, expondo as populações a
novos patógenos.
“Já estamos vendo a
dengue, por exemplo, passar a ser mais presente em países historicamente mais
frios, entre outras arboviroses e doenças conhecidamente tropicais”. Por isso,
ela acredita que é crucial que países, lideranças e grandes empresas responsáveis
por significativas emissões de gases de efeito estufa e impactos ambientais se
comprometam com ações de mitigação eficazes para conter o avanço acelerado da
crise climática.
• OPAS e o preparo para pandemias
Nesse contexto, foi
lançado em julho o projeto PROTECT, uma parceria entre a Organização
Pan-Americana da Saúde (OPAS) e o Banco Mundial, para fortalecer a resposta a
pandemias na América do Sul. Sebastián Oliel, da OPAS, revelou ao Futuro da
Saúde que o projeto visa aprimorar a liderança regional, desenvolver
capacidades para emergências de saúde pública e coordenar atividades de campo.
“Embora o projeto esteja em seus estágios iniciais, já foram identificados
vários desafios”, afirmou. Ele acrescentou que a OPAS adota uma abordagem de
planejamento participativo, permitindo que as iniciativas sejam lideradas pela
comunidade e respeitem os contextos locais.
O projeto prevê a
doação de quase 17 milhões de dólares do Fundo Pandêmico, que será distribuído
entre os sete países (Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e
Uruguai). Para isso, a OPAS utilizará seus relacionamentos estabelecidos com os
Ministérios da Saúde e Agricultura desses países, por meio de seus escritórios
regionais que irão desempenhar um papel importante no aprimoramento da
coordenação em níveis nacional e local.
O projeto busca
melhorar os sistemas de vigilância precoce para doenças zoonóticas ao integrar
a vigilância comunitária com os sistemas nacionais, aumentando a rapidez e a
sensibilidade na detecção. Com isso, a comunidade poderá relatar casos
suspeitos de doenças zoonóticas, permitindo que as autoridades locais e
nacionais avaliem e respondam de forma eficaz. Além disso, pretende expandir o
acesso a redes de laboratórios, incluindo os especializados em vigilância
genômica, aprimorando a detecção e a caracterização de doenças zoonóticas e
novos patógenos.
“Isso envolverá
líderes comunitários, profissionais de saúde locais e outras partes
interessadas na vigilância baseada em eventos comunitários para conduzir este
processo. Forças-tarefa multissetoriais serão criadas em níveis subnacional,
nacional e regional para aprimorar a colaboração e a coordenação nos esforços
de vigilância baseada em eventos comunitários”, explica Sebastián Oliel.
Especialistas
consideram essas ações cruciais. Mellanie Fontes-Dutra destaca a importância de
melhorar continuamente a qualidade do ar interno em ambientes comuns, o que
ajuda a reduzir os riscos de patógenos respiratórios. Ela também enfatiza a
necessidade de investir em pesquisas sobre vacinas e medicamentos, e reforça a
importância de integrar o conceito de Saúde Única, que abrange a saúde humana,
a preservação ambiental e a saúde animal.
O alerta é mundial. A
atual epidemia de Mpox não é a única que ameaça se tornar uma pandemia. Há
também a gripe aviária. O vírus H5N1 já está em circulação em quase todo o
mundo, afetando não só aves silvestres e domésticas, mas expandindo a
contaminação para outras espécies. Entre 2020 e 2024, o número de espécies de
mamíferos infectadas pelo vírus aumentou quase cinco vezes, atingindo 64
espécies em quatro anos. “A preocupação, agora, é evitar que seres humanos
sejam contaminados”, diz Luis Eugenio
Portela, da Abrasco.
Fonte: Futuro da Saúde
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