César Fonseca: ‘Crise Brasil-Venezuela
fragiliza BRICS e favorece objetivo de Washington’
O aprofundamento da
crise diplomática entre Brasil e Venezuela não poderia ser mais conveniente
para os Estados Unidos neste momento: não interessa a Washington a união entre
os dois países maiores produtores de petróleo da América do Sul.
Juntos, sintonizados
com o mesmo objetivo, qual seja, a integração econômica latino-americana,
somariam forças capazes de fortalecer o BRICS, de um lado, e, de outro,
contrariar o império americano, para fragilizar a Doutrina Monroe, vigente
desde 1823, consubstanciada na pregação da América para os americanos do norte.
Rachados, cada um para
seu lado, fica mais fácil para a estratégia imperialista de mantê-los divididos
para reinar.
Washington, por meio
do seu mais importante representante militar no continente sul-americano, a
general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, sediado na Flórida,
alertou, ao longo de 2023 e 2024, contra o que considerou perigo para os
interesses americanos: a aproximação crescente da América do Sul dos BRICS,
especialmente, China e Rússia.
Richardson conseguiu
com sua retórica convencer a Argentina, sob governo da ultradireita fascista de
Javier Miley, a não participar do BRICS, na tentativa de isolar o Brasil.
UNIÃO
RÚSSIA-CHINA X EUA-OTAN
Não se entende,
plenamente, o conflito Brasil-Venezuela fora da questão, essencialmente,
geopolítica, tensionando as relações internacionais, porque a emergência do
BRICS abre-se ao mundo multipolar contra a geopolítica unipolar, comandada
pelos Estados Unidos, envolvendo o ocidente anglo-saxão.
Russos e chineses se
aproximaram, por meio de pacto militar e comercial, desde o início da
intervenção preventiva russa na Ucrânia, armada pela Otan-Estados Unidos, para
tentar promover uma mudança de regime na Rússia.
Os tratados assinados
por Moscou e Pequim visam fortalecer o comércio bilateral China-Rússia e as
relações militares entre ambos, fato que refletiu, diretamente, na construção
do bloco comercial dos BRICS.
O fortalecimento dos
BRICS ganhou dimensão geopolítica capaz de abalar a geopolítica ocidental
anglo-saxônica e colocou os aliados integrantes dele no dilema de se juntarem
ou não frente à geopolítica de Washington para ganharem musculatura contra o
império.
Inicialmente, cinco
países formaram o BRICS, ampliado para 13, na reunião recente, em Kazan,
Rússia, enquanto há outros 33 países interessados em entrar no bloco, entre
estes a Venezuela.
A América do Sul,
segundo Laura Richardson, não deveria se transformar em aliada dos BRICS, para
não ferir os interesses dos Estados Unidos, que, de acordo com a Doutrina
Monroe, têm o continente sul-americano como seu espaço de influência exclusiva.
A Venezuela, nesse
contexto geopolítico de confronto crescente entre as potências, buscou acelerar
aproximação comercial e militar com os dois principais integrantes do BRICS,
Rússia e China.
A iniciativa
venezuelana levou Washington a intensificar sanções comerciais contra o governo
de Nicolás Maduro, dominado pelo viés ideológico socialista, sob comando do
Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), há 26 anos no poder.
VITÓRIA
CONTESTADA PELA CASA BRANCA
A eleição de Nicolás
Maduro, para mais um mandato de 6 anos (2025-2031), em 28 de julho de 2024,
contestada por Washington, criou o ambiente de confronto que acabou arrastando
o Brasil e outros países latino-americanos e europeus ao rechaço à vitória do presidente
chavista, considerada fraudulenta.
O Brasil, assim como o
governo Joe Biden, considerou insatisfatórios os argumentos do governo, vítima
do que considerou ataques cibernéticos em seu processo eleitoral, para não
apresentar o que exigia: atas comprobatórias que demonstrassem a vitória do candidato
do PSUV.
Teria ou não os
ataques cibernéticos suprimidos as provas da vitória?
O Brasil pediu novas
eleições e a Venezuela, que disse ter apurado mais de 70% do total de votos,
antes do ataque cibernético, proclamou por meio do Conselho Nacional Eleitoral
(CNE), a vitória eleitoral de Nicolás Maduro.
A insistência
brasileira quanto às atas eleitorais e à defesa de novas eleições azedaram as
relações Brasil-Venezuela, desde então, estendendo-se, agora, na decisão
brasileira de vetar a entrada do país de Nicolás Maduro no BRICS, na reunião de
Kazan, Rússia.
NEGAÇÃO À
AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS
O governo venezuelano,
sobretudo, considerou ingerência do governo brasileiro em assuntos de
soberania, violando autodeterminação dos povos, na condução dos seus interesses
nacionais.
Agora, Nicolás Maduro
considera que o governo brasileiro está a serviço de Washington, agindo como a
Casa Branca, interferindo nas questões internas soberanas da Venezuela.
Ao contrário do
Brasil, China e Rússia reconheceram, imediatamente, a vitória de Nicolás
Maduro, considerando-a legítima, o que o presidente Vladimir Putin reiterou em
Kazan, apelando para que ambos os países se entendessem, para não trincar as
relações dentro do próprio BRICS, afetado, agora, pelo aprofundamento da crise
diplomática entre eles.
O fato é que a divisão
que se aprofunda vai de encontro ao que a general Laura Richardson defende:
quebra da unidade latino-americana em relação ao BRICS.
Como, no próximo ano,
o bloco será presidido pelo Brasil, certamente, o diversionismo consagra o
desejo de Washington, radicalmente, adversário do BRICS, cuja força econômica
supera o G7 e caminha para ser uma nova potência mundial.
Os efeitos do
fortalecimento internacional do BRICS, a se configurar ao longo dos próximos
anos, são maléficos para a hegemonia americana, passível de ser rompida com a
desdolarização econômica diante da pregação do avanço das relações comerciais
realizadas com moedas nacionais, como norte essencial do novo bloco.
¨ O BRICS faz história – será possível manter o ímpeto? Por Pepe
Escobar
Kazan não mudou o
mundo – ainda. Mas a cúpula deve ser vista como a estação de partida de uma
viagem em trem de alta-velocidade rumo à nova ordem multinodal que
vem surgindo. A metáfora foi também espacial: a “estação” dos pavilhões do
centro de exposições de Kazan onde a cúpula foi realizada conectava-se
simultaneamente ao aeroporto e ao aerotrem expresso que leva à cidade.
Os efeitos deixados na
esteira do BRICS 2024, em Kazan, serão sentidos por semanas, meses e anos.
Comecemos com as grandes mudanças.
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O Manifesto de Kazan
1. A Declaração de
Kazan. Trata-se de nada menos que um manifesto diplomático detalhado. Mas como
os BRICS não são um agente revolucionário – já que seus membros não têm uma
ideologia em comum – seria possível afirmar que a segunda melhor estratégia
seria propor reformas reais, desde a Agenda de 2030 da ONU até o FMI, o Banco
Mundial, a OIT, a OMS e o G-20 (cuja cúpula acontecerá no próximo mês, no Rio).
O cerne da Declaração
de Kazan – debatido durante meses – é avançar na prática rumo a profundas mudanças institucionais e
rejeitar a Hegemonia. A Declaração será
apresentada ao Conselho de Segurança da ONU. O Hegêmona, sem dúvida alguma, irá
rejeitá-la.
Este parágrafo resume
a iniciativa das reformas: “Condenamos as tentativas de sujeitar o
desenvolvimento a práticas discriminatórias com motivação política, incluindo,
embora não se limitando a medidas coercitivas unilaterais incompatíveis
com os cinco princípios da Carta das Nações Unidas, e condicionalidades
explícita ou implicitamente impostas à ajuda ao desenvolvimento com o fim de
comprometer a multiplicidade dos fornecedores de ajuda internacional ao
desenvolvimento”.
2. A sessão de
Expansão dos BRICS, que foi um Bandung 1955 turbinado a esteróides: um
microcosmo de como o novo mundo descolonizado e não-unilateral vem nascendo.
O Presidente Putin
abriu a sessão e passou a palavra aos líderes e chefes de delegação de outras
35 nações, a maioria deles de primeiro escalão, inclusive o representante
da Palestina, como também ao Secretário-Geral das Nações Unidas. Diversas dessas
falas foram nada menos que épicas. A sessão teve duração de três horas e vinte e cinco minutos.
Sua transcrição irá circular por toda a Maioria Global por anos a fio.
A sessão foi concluída
com o anúncio dos 13 novos parceiros dos BRICS: Argélia, Belarus, Bolívia,
Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda,
Uzbequistão e Vietnã. Um tour de force estratégico incluindo quatro potências
do Sudeste Asiático, os dois principais “istãos” da Ásia Central, três
africanas, duas latino-americanas e a Turquia, membro da OTAN.
3. A
própria presidência russa dos BRICS. Pode-se dizer que nenhum outro país teria
sido capaz de montar uma cúpula tão complexa e impecavelmente bem-organizada,
realizada após mais de 200 reuniões relacionadas aos BRICS por toda a Rússia e
durante todo o ano, conduzidas por sherpas anônimos, integrantes de grupos de
trabalho e do Conselho Empresarial dos BRICS. A segurança foi maciça -
por razões óbvias, considerando os riscos de uma falsa bandeira ou ataque
terrorista.
4. Os corredores de
conectividade. Esse é o principal tema geoeconômico da integração eurasiana, e
também da integração afro-eurasiana. Putin, mais de uma vez, citou
explicitamente os novos motores do crescimento de um futuro próximo: o Sudeste
Asiático e a África. Ambos são parceiros importantes de diversos projetos da Iniciativa Cinturão e Rota
(ICR) chinesa. Além disso, Putin citou os dois
principais corredores de conectividade do futuro: a Rota Marítima do Norte
– que os chineses descrevem como a Rota da Seda do Ártico – e o Corredor
Internacional de Transporte Norte-Sul (CITNS)
no qual os três principais motores são os membros dos BRICS Rússia, Irã e
Índia.
Isso se traduz, portanto, com a China dos BRICS cruzando a Eurásia de leste a
oeste, enquanto Rússia/Irã/Índia, também dos BRICS, a cruzam de norte a sul,
com ramificações em todas as latitudes. E com todos os acréscimos de energia,
com o Irã se posicionando como um nó energético de importância crucial, abrindo
a finalmente factível possibilidade de construção do gasoduto Irã-Paquistão-Índia (IPI), uma das sagas inacabadas daquilo que descrevi em inícios dos
anos 2000 como o Gasodutistão.
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A Volta do Triângulo Primakov
Toda a Maioria Global
tinha imensas expectativas de que Kazan viesse a representar um espetacular
divisor de águas quanto a sistemas de pagamento alternativos. Especialistas em tecnologia financeira
russos e chineses foram mais realistas,
comentando que “não esperavam absolutamente nada exceto uma outra rodada de
iniciativas sobre trocas de grãos, trocas de metais preciosos e sobre uma
plataforma de investimento. O BRICS Clear vem sendo desenvolvido, mas o
restante não irá funcionar sem uma infraestrutura soberana adequada”.
O que nos traz de volta ao projeto UNIT –
uma forma de “dinheiro apolítico” ancorado em ouro e nas moedas dos BRICS+. O
projeto foi exaustivamente discutido pelos grupos de trabalho, tendo chegado ao
Ministério das Finanças russo. O passo seguinte é um teste de desempenho
conduzido por um grande conglomerado empresarial, que pode vir a acontecer em
um futuro próximo e, caso tenha êxito, sirva de estímulo para que outras
grandes empresas dos países BRICS sigam pelo mesmo caminho.
Quanto à plataforma de
investimentos digitais dos BRICS, ela já está pronta para entrar em
funcionamento. Juntamente com o NDB – o Banco dos BRICS, presidido
pela ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff, cujo mandato o Presidente
Putin quer ver renovado – essa plataforma irá facilitar o acesso do Sul
Global a financiamentos sem as tão temidas condicionalidades de “ajustes
estruturais” impostas pelo FMI/Banco Mundial. As trocas de grãos dos BRICS,
estabelecendo regras claras e transparentes, serão essenciais para assegurar a
segurança alimentar do Sul Global.
Os BRICS deixaram
claro que o complexo ímpeto rumo uma nova infraestrutura de pagamentos e
liquidação é inevitável, sendo, entretanto, um trabalho em andamento, em
especial por que o G-7 – que, para todos os fins práticos vem sequestrando a
agenda do G20 a ser realizado no próximo mês, no Rio – quer financiar ao menos
20 bilhões de um pacote de 50 bilhões com os rendimentos dos ativos russos
roubados.
O que nos leva ao
problema mais flagrante dos BRICS. Chegar a um consenso em questões espinhosas
é extremamente difícil – podendo levar, no longo prazo, a que os BRICS
adotem um mecanismo de maioria absoluta para chegar a alguma resolução.
O caso brasileiro –
que vetou a Venezuela como parceira dos BRICS – não foi de modo algum bem
visto entre os países do Sul Global. O atual governo Lula talvez esteja sob
pressões tremendas partindo do establishment do Partido Democrata do Hegêmona,
mas isso, em si, não explica a decisão.
Há um maciço lobby
anti-BRICS no do primeiro escalão do governo brasileiro, “facilitado”,
como de costume, por ONGs americanas, e também da Comissão Europeia, fortemente
infiltradas nas proverbiais elites compradoras. Brasília, este ano, privilegiou
o G-20 em detrimento dos BRICS. O que faz antever problemas para o ano
que vem, quando o Brasil assumirá a presidência dos BRICS.
As perspectivas não
são exatamente brilhantes. A cúpula dos BRICS do próximo ano está marcada para
julho – e a decisão parece ser final. Isso não faz nenhum sentido – fazer um
apanhado geral de uma agenda de trabalhos em meados do ano. A desculpa oficial
é que o Brasil precisa também organizar a conferência Cop-30, marcada para
novembro. Uma sugestão será apresentada pelo importantíssimo economista
brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr., no sentido de realizar uma sessão
dos BRICS paralela no decorrer da cúpula do G-20 em 2025, a ter lugar na África
do Sul, onde seriam apresentadas as recomendações finais.
O Presidente Putin vem
sendo extremamente maleável – chegando mesmo a propor que Dilma Rousseff
permaneça no comando do Banco dos BRICS. No entanto, tecnicamente, a
presidência russa do Banco começaria no próximo ano. Um candidato mais adequado
para a presidência do NDB seria Aleksei Mozhin, até recentemente o
representante russo no FMI.
Há uma grande lição a
ser extraída de tudo o que foi dito acima. Kazan provou que a força motriz dos
BRICS é, na verdade, o famoso Triângulo de Primakov – ou RIC (Rússia,
Índia, China). Hoje seria possível acrescentar o Irã, o
que transformaria a sigla em RIIC. Tudo o que tenha alguma substância nos
processos interconectados da integração dos BRICS e da integração
afro-eurasiana depende do RIIC.
A Arábia Saudita
permanece como uma possibilidade em aberto. Nem sequer Putin respondeu se Riad
está dentro, fora ou em cima do muro. Fontes diplomáticas insinuam que MbS está
esperando pelo resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos. Se muito
da riqueza saudita está investida na esfera anglo-americana – podendo ser
surrupiada de uma hora para outra – as relações de alto-nível com a parceria
estratégica Rússia-China são excelentes.
O RIC marcou um gol de
placa logo antes da cúpula de Kazan, quando Pequim e Nova Delhi anunciaram a
normalização de sua questão de Ladakh. Esse resultado foi alcançado com a
mediação da Rússia. Então, há a Turquia. Erdogan foi peremptório em sua declaração
de entusiasmo pelos BRICS nas poucas horas que passou em Kazan. Mais
tarde, em Istambul, analistas confirmaram que ele vê com a maior seriedade a
condição da Turquia como parceira e sua possível admissão como membro pleno.
Na linguagem dos
símbolos, os minaretes da mesquita de Kul Sharif, no Kremlin de Kazan,
foram a real marca registrada da cúpula: a ilustração gráfica da
multipolaridade em funcionamento. As terras do Islã captaram a mensagem – com
sérias e auspiciosas repercussões futuras. No momento em que o trem multinodal de
alta velocidade deixa a estação, toda a atenção dos condutores deve estar
focada nos RIICs. Que todo o Sul Global tenha uma boa viagem.
Fonte: Brasil 247
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