sábado, 2 de novembro de 2024

Luís Nassif: ‘Xadrez de Lula e a busca do tempo perdido’

Um plano de metas, em torno de ideias claras, interministerial, intersetorial, com prazos e medidas definidas, ajudaria a clarear o horizonte.

<><> Peça 1 – os partidos e os tempos políticos

A constituição de partidos políticos duradouros obedece aos tempos históricos.

Foi preciso a formação de uma classe média urbana para nascer a UDN. A esquerda nasceu da imigração, especialmente dos anarquistas italianos. O PTB veio com o sindicalismo trabalhista. MDB cresceu na resistência à ditadura. O PT nasceu da consolidação do polo industrial do ABC. Os novos modelos políticos, os novos personagens aparecem, assim, em momentos de grandes embates, de grandes transformações sociais, econômicas ou políticas. 

PT e PSDB se consolidaram nos ventos reformistas da Constituinte e das diretas-já. No caso do PT somando o sindicalismo, a teologia da libertação e os sobreviventes da luta armada.

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A geração das diretas dominou todo o espectro político nacional nas décadas seguintes, apesar dos episódios posteriores. Os “caras pintadas” não foram um episódio suficientemente abrangente para lançar uma nova geração. 

A grande nova revolução, depois das diretas, foi da militância digital. E ela nasceu progressista. Quem primeiro descobriu o poder mobilizador das redes foram os universitários, a marcha das mulheres, o pessoal da Casa Fora do Eixo, os motociclistas e até desaguar no “tarifa zero” – em cima de uma ideia plantada nos tempos de Luiza Erundina, prefeita.

Em vez de acolher as novas lideranças, o PT fechou-lhe as portas, tanto nas prefeituras quanto no governo federal. Não entendeu as características do novo modelo. 

Nele, a organização gira em torno de temas específicos, não de bandeiras políticas genéricas. Não se enquadram em modelos hierárquicos, mas cooperativos. Embora tivessem afinidade politica com siglas de esquerda, preferiam manter suas identidades próprias. 

Ao mesmo tempo, a periferia passou a ser sacudida por novos movimentos, da música negra, o funk, o hip hop. Lembro-me de uma reunião para o qual fui convidado, no Sindicato dos Jornalistas. Presentes funkeiros de periferia, sindicalistas e jornalistas. O recado dos funkeiros era claro: o discurso político tradicional não penetrava mais na comunidade. A lógica das assembleias sindicais, com sua organização hierárquica, não pegava mais. Alertavam que os evangélicos dominavam muito melhor o discurso e a única resistência progressista era deles, músicos de periferia.

Nas manifestações de 2013, o caldo entornou de vez. Apesar do mal-estar político generalizado, os manifestantes não queriam bandeiras partidárias, justamente para não jogar para segundo plano a bandeira que carregavam. Ao mesmo tempo, intelectuais, como Pablo Ortellado, estimulavam de maneira suspeita a violência dos black blocs, alimentando a reação da classe média contra as lideranças do movimento. 

Repetia-se o movimento dos black blocs durante a chamada “Batalha de Seattle” de 1999. Tanto lá como cá surgiram suspeitas fundadas de que havia infiltração polícial alimentando a violência dos black blocs, de maneira a desmoralizar o movimento antiglobalização.

Com os jovens jogados ao mar, a direita se apossou definitivamente do movimento. Antes dela, aliás, a Purpose, agência de publicidade ligada ao Partido Democrata, ajudou na disseminação do movimento, valendo-se da boa fé dos jovens para as primeiras tentativas de primavera brasileira, de desestabilização do governo que descobriu o pré-sal.

Hoje em dia, depois do vendaval Lava Jato, existe um sistema partidário esfarelado, sem partidos programáticos e com o único partido nacional, o PT, à procura de um rumo.

<><> Peça 2 – a ideologia da direita

Por outro lado, a direita e a ultradireita não são unidas por princípios programáticos, mas por pautas morais. Aliás, o grande vitorioso das eleições foi a abstenção. Significa que o que mobiliza a direita é o ceticismo em relação às velhas fórmulas, as relações afetivas, não a convicção na brutalidade e na ignorância que caracterizam suas principais lideranças.

Essa característica traz um desafio de curto prazo: a impossibilidade de um discurso racional ou de penetrar nas relações afetivas que cimentam o movimento. Mas abrem uma perspectiva de médio prazo. Tornando-se poder, a ultradireita não conseguirá atender às expectativas criadas, de mudança. Pelo contrário, têm aberto espaço para o avanço do crime organizado e, a exemplo de São Paulo, para toda sorte de negócios com serviços públicos.

O grande desafio dos setores modernos será preparar o próximo tempo do jogo, quando o pesadelo da ultradireita estiver se esvaindo.

<><> Peça 3 – o vácuo atual

Por enquanto, a sensação é de uma terra de ninguém. A percepção é de um país solto, com o desmonte continuado das instituições e dos direitos básicos.  O jogo de interesses menores perpassa todos os poderes, das agências reguladoras aos ministérios, dos governos de Estado aos tribunais. São fios soltos, desencapados, que atingem até estruturas históricas, como a educação. 

O governo não assume o papel de coordenação de expectativas ou valores. 

De um lado, amarrado pela chantagem reiterada da Faria Lima. Um mero adiamento de dias, no anúncio dos cortes nos gastos públicos, já é suficiente para manifestações terroristas no dólar, ampliadas pelas manchetes de jornais e pela falta de iniciativa do Banco Central no mercado futuro,

As cotações do dólar são fixadas por operações de carry Trade, não pelos fundamentos da economia. E a rapaziada da Faria Lima joga à vontade, brinca com um preço essencial sem ser incomodada nem pelo BC, nem pelo sistema bancário maduro, nem por nenhuma autoridade regulatória. Se não houver uma reação a essas manobras, se continuarem a brincar com os preços, sem nenhum risco, conseguirão atingir seu objetivo de desmoralização final do governo. E, aí, será um Deus nos acuda que levará de roldão a estabilidade econômica.

De outro, pela completa falta de informações sobre o que acontece no governo. A impressão geral é de um ministério acéfalo, sem capacidade de montar políticas minimamente criativas. E as iniciativas existentes – como as medidas de Neoindustrialização ou da Transição Energética – não chegam à opinião pública.

A sensação é de anomia.

<><> Peça 4 – o que faz o governo

Esquece-se de que nesse ano e meio, o governo conseguiu se safar de um sem-número de armadilhas. Havia militares conspiradores e bombas de efeito retardado deixadas por Bolsonaro: um aumento da gasolina e uma redução do Bolsa Família no primeiro dia de governo. E tudo isso precedendo o 8 de janeiro, com a armadilha de se montar uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e deixar nas mãos de militares conspiradores.

Conseguiu superar as armadilhas, aprovar um orçamento extraordinário, acertar os rombos deixados por Paulo Guedes nos precatórios e no imposto sobre os combustíveis.

Mas patina ao não conseguir dar um sentido ao terceiro governo. E, especialmente, ao não se livrar das chantagens da Faria Lima.

Há dois públicos para as informações. Aparentemente, o governo está preocupado com o público das notas curtas. Mas há formadores de opinião, inclusive na grande mídia, que deveriam ser informados de forma aprofundada sobre as políticas públicas. O governo está perdendo a batalha inclusive junto ao público formador de opinião.

Um dos problemas é a diluição das informações sobre as entregas ministeriais. As informações sobre a política de Neoindustrialização, sobre a transição energética, sobre as negociações com a China, as mudanças no Bolsa Família, saem picadas e se perdem na barafunda informacional.

E, depois das últimas eleições municipais, há um sentimento de impotência desanimando as hostes democráticas, como se o quadro atual, de obscurantismo, fosse definitivo.

<><> Peça 5 – os valores permanentes

E são fases transitórias, cuja duração dependerá da capacidade de reação da opinião pública esclarecida.

Os valores civilizatórios são óbvios, embora pouco praticados. É o exercício da tolerância, da solidariedade, o compromisso com a construção de um país mais justo, mais igualitário, unido em torno de um plano de desenvolvimento. 

A pedagogia civilizatória não depende de palavras soltas, mas de aplicações objetivas desses conceitos. Aí ficam faltando os planos e as metas. Um plano de metas, em torno de ideias claras, interministerial, intersetorial, com prazos e medidas definidas, ajudaria a clarear o horizonte, a entender cada peça levantada na reconstrução do país.

Mas, por enquanto, só existiu em algumas declarações de Lula – como o discurso na 5a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. No plano concreto, nada apresentou de palpável até agora.

 

¨      A parceria com a China é mais do que a rota da Seda, por Luís Nassif

A superficialidade da cobertura midiática transformou o Ministro Celso Amorim em adversário da Rota da Seda. Sua posição é de racionalidade. Há duas formas de integração, a comercial e a industrial. A Rota da Seda ambiciona aproximar a China dos mercados afastados, como América do Sul. Uma integração comercial com a China, sem maiores cuidados, significará o fim da industrialização brasileira. Por isso mesmo, as relações Brasil-China têm que se situar em um patamar muito mais elevado.

O próprio modelo de desenvolvimento da China – e o modelo precursor de desenvolvimento do Brasil dos anos 50 – ensina o caminho.

O Brasil é muito mais relevante para a China do que a China para o Brasil – apesar de ter se tornado o maior parceiro comercial do país. Mas é uma relação comercial desbalanceada, na qual o Brasil exporta commodities e compra produtos industrializados. Além disso, o Brasil é peça chave nas disputas geopolíticas da China, como grande liderança do Sul Global.

Isso, mas o mercado de consumo brasileiro, permite ao país uma negociação muito mais efetiva com a China. Nessa negociação tem que se conseguir avanços em várias áreas:

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  1. Transferência de tecnologia.
  2. Espaço para o capital privado nacional, seja como acionista de filiais de empresas chinesas, seja como fornecedores.
  3. Criar cotas de preferência para exportações das filiais chinesas no país.
  4. Parcerias em novas áreas relevantes, como telecomunicações e lançamento de satélites.

Reduzir todas essas possibilidades a um mero acordo em torno da Rota da Seda é subestimar o potencial da parceria chinesa.

No início dos anos 2.000, a Embraer fechou um acordo com a China. Pelo acordo deveria transferir tecnologia para uma empresa chinesa. Em troca, teria acesso por alguns anos ao mercado interno da China. Foi esse mesmo pragmatismo que permitiu à China, depois de ter se transformado no chão de fábrica do capitalismo mundial, tornar-se uma gigante industrial.

Obviamente, acordos desse porte não podem ficar restritos a conversas de gabinete. O governo deveria convocar a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, os quadros do CGEE, as instituições empresariais para um amplo balanço das contrapartidas a serem propostas à China.

Junto com a Neo Industrialização, com os programas de transição energética, aos poucos vai se constituindo o quadro para o grande salto brasileiro para a próxima etapa da economia, depois de termos perdido a etapa da digitalização.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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