Os cristãos escravizados que teriam ajudado
a escrever a Bíblia e espalhar o Evangelho
Um livro lançado neste
ano nos Estados Unidos traz um argumento surpreendente para muitos leitores da
Bíblia: o de que pessoas escravizadas tiveram um papel crucial, e pouco
reconhecido, na criação e na disseminação do Novo Testamento.
Em God’s Ghostwriters:
Enslaved Christians and the Making of the Bible ("Ghostwriters de Deus:
Cristãos Escravizados e a Criação da Bíblia", em tradução livre), a
historiadora Candida Moss afirma que pessoas escravizadas ajudaram os
discípulos de Jesus a redigir os textos bíblicos e a espalhar o Evangelho pelo
Império Romano.
Segundo Moss, que é
professora de Teologia da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, somente
5% a 10% da população era alfabetizada na época – entre eles, os mais ricos.
A maioria dos
apóstolos e primeiros cristãos não sabia ler ou escrever. Mesmo os que sabiam,
muitas vezes eram impedidos por sofrer de artrite ou problemas de visão, em uma
época em que óculos não existiam.
Compor e copiar textos
a mão era um trabalho árduo e fisicamente cansativo, que os membros da elite
não queriam fazer e que o resto da população não tinha como fazer.
Assim, a tarefa cabia
geralmente a pessoas escravizadas, que eram alfabetizadas desde jovens para
desempenhar a função de secretários, escribas, leitores e mensageiros.
Nesse contexto, o fato
de alguém ser identificado como autor de um texto não significava que tinha
escrito com suas próprias mãos.
O mais comum era que a
obra fosse ditada a pessoas escravizadas ou, em alguns casos, que haviam sido
libertas mas, de acordo com Moss, não eram totalmente livres.
A historiadora
argumenta que, ao redigir o material ditado por outros e copiar manuscritos,
esses escravizados não apenas reproduziam os textos, mas contribuíam de forma
ativa como coautores, fazendo correções e edições.
Essa colaboração se
estendeu pelos dois primeiros séculos da Era Cristã, segundo a pesquisa.
"Você pode ver
pessoas escravizadas e ex-escravizadas como parte fundamental da atividade
missionária, da escrita e da interpretação bíblica no início do cristianismo.
Elas estão envolvidas em tudo isso", diz Moss à BBC News Brasil.
Os escravizados
viajavam a locais distantes para ler passagens bíblicas a fiéis que não eram
alfabetizados, em um papel que Moss compara ao de missionários, escolhendo
gestos e entonação para transmitir e interpretar os ensinamentos de Jesus.
Dessa forma, ajudaram
a moldar os fundamentos do cristianismo.
Moss cita o exemplo
das Cartas de Paulo. Segundo a historiadora, Paulo era o único apóstolo
alfabetizado, mas ele próprio indica, em seus textos, que usava a ajuda de
outras pessoas para ler e escrever.
Além disso, algumas de
suas cartas foram redigidas quando ele estava na prisão, que costumava ser em
um subsolo escuro e onde seria difícil escrever.
Moss considera
provável que tenham sido ditadas a assistentes escravizados, emprestados por
seguidores ricos.
A Epístola aos Romanos
traz o trecho "Eu, Tércio, que escrevi esta carta", indício de que
foi redigida com a ajuda de Tércio.
De acordo com Moss,
ele é comumente descrito como escriba, o que pode dar a impressão de que era um
amigo ou alguém que havia desempenhado a tarefa de forma voluntária.
A historiadora lembra,
porém, que escribas e secretários na Era Romana não eram profissionais de
classe média, mas sim pessoas escravizadas ou ex-escravizadas que haviam sido
libertas.
Moss destaca ainda que
Tércio significa simplesmente "Terceiro", nome comum entre
escravizados na época.
A Epístola aos
Filipenses menciona Epafrodito. De acordo com Moss, o nome está relacionado à
deusa do amor, Afrodite, e tem o significado de "belo", sendo comum
entre escravizados na Antiguidade, período em que muitos meninos eram
explorados sexualmente.
Outro exemplo é o
Evangelho Segundo Marcos. A historiadora salienta que o autor é descrito como
intérprete de Pedro e argumenta que há indícios de que Marcos era escravizado.
Moss afirma que, à
medida que o cristianismo passou a dominar o Império Romano, o status de
escravizados dos primeiros cristãos foi apagado, e "muitos heróis das
Escrituras foram promovidos a bispos".
Ela lamenta que as
contribuições dos escravizados para o Novo Testamento e o florescimento do
Cristianismo não sejam reconhecidas.
Como não há evidências
diretas, a interpretação de Moss é baseada principalmente na leitura de textos
religiosos e seculares e no que se sabe sobre a escravidão nesse período
histórico, e o livro recebeu algumas críticas por usar muitas "conjecturas"
e "especulação sobre o passado".
Mas ela salienta que
foi "transparente sobre onde há evidências melhores ou piores" e
garante que o argumento de que pessoas escravizadas colaboraram no Novo
Testamento não é especulação.
"Gostaria que
pensássemos de forma diferente sobre quem estamos lendo quando lemos a
Bíblia", afirma.
"Não é apenas um
livro de reis e bispos. É também uma coleção de livros produzidos por pessoas
de diferentes setores da sociedade, que merecem visibilidade."
Em entrevista
exclusiva à BBC News Brasil, Moss falou sobre o papel dos escravizados na
Antiguidade, como contribuíram para a Bíblia, as evidências que encontrou em
sua pesquisa e a resposta aos críticos.
<><> Leia
a seguir os principais trechos da entrevista.
• O que se sabe sobre o papel de pessoas
escravizadas em ajudar a redigir a Bíblia?
Candida Moss - Elas
são coautoras do Novo Testamento, porque os textos que conhecemos como Novo
Testamento, as Cartas de Paulo, os Evangelhos, foram ditados a pessoas
escravizadas ou ex-escravizadas. E esse foi um processo muito ativo e
colaborativo, elas tinham um grande trabalho.
Uma vez escrito um
texto, ele seria copiado e corrigido por um escriba escravizado. Seria
transportado a outro local por um mensageiro escravizado que era, para todos os
efeitos, um missionário. E seria, então, lido em voz alta e interpretado para o
público por pessoas escravizadas.
Você pode ver pessoas
escravizadas e ex-escravizadas como parte fundamental da atividade missionária,
da escrita e da interpretação bíblica no início do cristianismo. Elas estão
envolvidas em tudo isso.
• A senhora ressalta que os escravizados
tinham um papel muito ativo nessa colaboração. De que maneiras eles
contribuíram na edição e correção dos textos?
Moss - Era um trabalho
muito ativo. Na Antiguidade, eles usavam taquigrafia, mas não era padronizada,
era muito individual. Isso significa que quem fizesse a anotação seria a pessoa
a expandir [as abreviações] e, ao fazer isso, estaria tomando decisões sobre
como fazer o texto soar bem.
Secretários
escravizados tinham alto grau de educação, especialmente se comparados aos
apóstolos, que eram pescadores. Assim, era útil aos apóstolos ter pessoas
instruídas que pudessem ajudar a melhorar o estilo, tornar a história mais
cativante, esse tipo de coisa.
Então, devemos supor
que os escravizados estão participando disso. E é importante, porque significa
que eles não são apenas colaboradores, mas que sua visão de mundo, sua
perspectiva, suas prioridades e sua genialidade, tudo isso também está presente
nos textos.
• A senhora afirma que as pessoas
escravizadas tinham alto grau de instrução, o que é diferente da escravidão
atlântica, quando muitos escravizados eram impedidos de aprender a ler. Como
era esse aspecto da escravidão na Era Romana?
Moss - Essa é uma das
grandes diferenças entre a escravidão romana antiga e a escravidão atlântica.
Na escravidão atlântica, os proprietários não queriam que seus trabalhadores
escravizados aprendessem a ler e escrever precisamente porque isso lhes daria
poder, então tomaram medidas ativas para evitar isso.
Mas com os romanos era
diferente, por uma série de razões. Uma delas é que não tinham óculos.
Cerca de 40% da
população atual teria dificuldade de ler e escrever se não tivesse óculos. Você
pode imaginar como, na Antiguidade, ter trabalhadores escravizados que podiam
ler e escrever melhor que você, simplesmente porque podiam enxergar melhor, era
realmente importante.
E não era apenas
deficiência visual, mas também problemas como artrite, gota [que dificultavam a
escrita]. Se você escreve por um longo período de tempo, começa a doer. Essa é
outra razão pela qual as pessoas não queriam fazer [essa tarefa].
E você adiciona a isso
a falta de eletricidade. Grande parte da leitura era feita à noite. Então eles
usavam trabalhadores escravizados, especialmente jovens, que tinham visão
aguçada. Temos evidências deles falando sobre isso.
Na época da escravidão
atlântica já existiam máquinas que podiam copiar textos, mas os romanos não
tinham isso, então precisavam de pessoas. Não queriam fazer esse trabalho eles
próprios, por isso usavam pessoas escravizadas e devidamente treinadas para produzir
textos legíveis.
• Qual era a situação dos ex-escravizados
que haviam sido libertos, muitos dos quais também atuavam como escribas e
leitores?
Moss - Muitos
continuavam morando nas casas de seus escravizadores e continuavam servindo a
eles. Caso sentissem que um liberto tinha sido ingrato, os romanos debatiam no
Senado sobre sua reescravização. Em determinadas situações, os libertos
poderiam ser executados.
Há passagens na
literatura romana sobre como os libertos eram obrigados a fornecer serviços
sexuais a seus ex-escravizadores, principalmente no caso das mulheres.
Certamente não era uma
liberdade da forma como pensamos atualmente.
• Seu livro cita exemplos específicos que
indicam a colaboração de escravizados e libertos na criação do Novo Testamento.
Quais são alguns dos principais?
Moss - Sabemos que
Paulo, que era um dos poucos autores cristãos da época com bom nível de
instrução, estava ditando. E sabemos disso porque ele próprio nos diz.
Sabemos o nome do
escriba que escreveu a Epístola aos Romanos, Tércio, que significa apenas
“terceiro”, e é o nome [comum] de trabalhador escravizado.
Na Epístola aos
Gálatas e na Primeira Epístola aos Coríntios, Paulo faz referência ao fato de
estar escrevendo partes das cartas sozinho, o que sugere que outra pessoa
escreveu o resto. Ele efetivamente diz que foi coautor de várias de suas
cartas.
Em relação ao
Evangelho Segundo Marcos, sabemos que Marcos era, na verdade, o secretário de
Pedro. A tradição [cristã] mais antiga nos diz que ele era um intérprete para
Pedro, e podemos supor que um intérprete [na época] seria uma pessoa
escravizada.
Quando você olha para
os dados, a maioria dos intérpretes era escravizada. Então, essa primeira
camada da tradição [cristã] faz com que Marcos pareça ser um tipo de
trabalhador escravizado.
Posteriormente, ele é
[apresentado como] o primeiro bispo de Alexandria, mas não é isso que a
tradição antiga diz.
Sabemos que todos os
textos do Novo Testamento, quando copiados, teriam sido copiados por
trabalhadores escravizados ou ex-escravizados. Esses eram textos muito longos,
levavam muito tempo para serem copiados.
E quando você vê os
nomes de alguns dos associados de Paulo, como Epafrodito ou Fortunato, esses
são nomes [comuns] de trabalhadores escravizados.
Se você olhar para as
evidências, se deixar de lado a tradição cristã e perguntar, dados seus nomes,
dado o que estão fazendo, que tipo de pessoas eram eles, você dirá que eram
escravizados. Essa seria a conclusão lógica.
• Além de contribuir para a redação da
Bíblia, pessoas escravizadas também ajudaram a espalhar o Evangelho. Como era
esse trabalho?
Moss - Para espalhar o
Evangelho, ele precisava ser levado por alguém [a locais distantes]. Viagens
eram perigosas na Antiguidade e, por isso, essa tarefa costumava ser atribuição
de trabalhadores escravizados em quem se podia confiar para transmitir as cartas
com precisão.
Eles tinham que
descobrir como chegar ao destino. Quando chegavam, tinham que decidir quando se
anunciar e entregar a mensagem. E, se estivessem em uma comunidade cristã, eram
chamados a ler a mensagem em voz alta para o grupo.
Se você pensar nas
Cartas de Paulo, ou nas cartas de outras figuras do início do cristianismo,
temos os nomes de alguns desses mensageiros, e são todos libertos ou
trabalhadores escravizados.
Ao ler a mensagem em
voz alta, o tom de voz e a ênfase, são muito importantes. Os gestos com as
mãos, as expressões, tudo isso dependia da pessoa escravizada que estava
interpretando o texto.
Naquele momento, eles
se tornam a face do Evangelho. Eles são os intérpretes das escrituras.
Há várias evidências
da Antiguidade tentando limitar a forma como os textos eram interpretados,
porque havia preocupação com isso, com a influência da pessoa que faz a
leitura.
[Esses mensageiros]
também respondiam a perguntas. No caso das Cartas de Paulo, mesmo hoje em dia
algumas pessoas têm dificuldade de entender.
Paulo dava instruções
aos mensageiros sobre como ler e como explicar as cartas. Sabemos disso porque
ele próprio nos diz.
Se você estivesse em
uma igreja hoje, esses mensageiros seriam a pessoa que faz a homilia e, muitas
vezes, o sermão. Porque são eles que estão fazendo a interpretação dos textos.
• Durante quanto tempo durou esse
processo, em que pessoas escravizadas participaram ativamente da composição e
da disseminação de textos bíblicos?
Moss - Estamos falando
realmente dos primeiros 200 anos em que o cristianismo estava se espalhando. Os
anos críticos em termos de escrever, copiar e disseminar a mensagem. Todos os
livros do Novo Testamento foram escritos nesse período.
Posteriormente, há um
período em que se vê mais pessoas que são profissionais, mas que não são
escravizadas, copiando os textos. E isso acontece por volta do século quatro. E
então você vê o surgimento dos mosteiros, e a tarefa de copiar os textos se torna
domínio dos monges.
• Seu livro recebeu algumas críticas por
usar "muitas conjecturas" e "especulação sobre o passado".
Como foi feita a sua pesquisa? E qual a sua resposta a essas críticas?
Moss - Em relação à
minha pesquisa, fiz uma série de coisas. Porque é difícil, você está tentando
contar as histórias de pessoas que foram deliberadamente apagadas da História.
É um desafio, mas não
é sem precedentes. Estudiosos da História Atlântica já fizeram isso antes, e
desenvolveram um método chamado fabulação crítica. Quando as pessoas dizem que
estou sendo especulativa, o que querem dizer é que estou usando esse método.
Nesse método, sabemos
que estamos tentando preencher lacunas e, portanto, sendo especulativos. Mas eu
também diria que muitos estudos são especulativos sem reconhecer esse fato.
Não olhei apenas para
o que os estudiosos da História Atlântica fazem, mas também para a história da
ciência cognitiva, a história do trabalho [envolvido na escrita] de livros.
Analisei amostras do
período medieval, do século 17, do século 20, e ficou claro que, quando se tem
funcionários administrativos de baixo escalão, eles sempre alteram o texto.
Li muitos estudos
médicos para ver o quão grave teria sido a perda de visão durante a
Antiguidade. Observei esqueletos, [para] evidências de artrite. Li muitos
relatórios arqueológicos.
Pesquisei materiais
que me eram muito familiares, como papiros antigos que registravam como as
pessoas escreviam. Vi exemplos de pessoas escrevendo sobre trabalhadores
escravizados em textos.
Este é um livro
escrito para todos, eu não queria que fosse muito técnico. Mas uma das coisas
que fiz e que não tenho certeza se os críticos notaram foi criar um site com
todos os recursos disponíveis, de forma gratuita, com links para as fontes
primárias, para quem quiser ver as evidências.
Então acho que, quando
as pessoas dizem que estou sendo especulativa, é porque sou muito transparente
sobre onde há evidências melhores ou piores, e a maioria das pessoas não faz
isso. A maioria apenas apresenta um argumento forte.
Em termos de
especulação, eu estava dizendo coisas como: "Se sabemos que pessoas
escravizadas trabalharam neste texto, e isso é um fato, que tipo de mudanças
podemos imaginar que eles introduziram?"
E então eu procuraria,
por exemplo, vocabulário que Paulo não usou em suas outras cartas, e o que isso
poderia significar para trabalhadores escravizados [terem sido autores do
texto].
Mas estava claro que
eu estava dizendo "talvez tenha sido isso que aconteceu, porque não posso
provar de uma forma nem de outra".
E eu diria que também
não se pode provar que foi Paulo [que escreveu]. É apenas uma suposição. Dizer
que Paulo escreveu a Epístola aos Romanos, quando o que [o texto] diz é que
Tércio escreveu, não é apenas especulação, é errado.
Eu diria que Paulo e
Tércio escreveram a Epístola aos Romanos, e que não podemos ter certeza [do
tamanho] da contribuição de Tércio. Mas isso não significa que devemos apagar
Tércio da história.
• O que a senhora espera que as pessoas
levem da leitura de seu livro?
Moss - Gostaria que
pensássemos de forma diferente sobre quem estamos lendo quando lemos a Bíblia.
Não é apenas um livro
de reis e bispos. É também uma coleção de livros produzidos por pessoas de
diferentes setores da sociedade, que merecem visibilidade.
E, se pensarmos nelas,
vamos ler as escrituras de maneira diferente. Vamos perceber coisas que não
havíamos notado.
Fonte: BBC News Brasil
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