A tragédia dos comuns e a utilização de emendas parlamentares no
Brasil
A aprovação, no último
dia 09 de outubro, de uma Proposta de Emenda à Constituição permitindo ao
Congresso Nacional colocar sob revisão decisões do Supremo Tribunal Federal é
mais um capítulo no embate político envolvendo o legislativo e o judiciário brasileiro.
Rusga essa motivada pelo controle do orçamento da União e a destinação de
recursos de emendas parlamentares.
A PEC nº. 28/24, de autoria do deputado federal Reinhold Stephanes, propõe que
decisões dos ministros do STF possam sofrer revisão pelo plenário do congresso,
ou, de acordo com o artigo 102 da proposta “se o Congresso Nacional considerar
que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o
ordenamento jurídico como norma geral e abstrata, poderá sustar os seus efeitos
pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas
Legislativas”.
O texto, além de
claramente inconstitucional, pois fere a independência entre os poderes, é
parte de um processo político que tenta depreciar a imagem da suprema corte do
país, enquanto fomenta a apropriação dos recursos da União pelos membros do
parlamento brasileiro. A manutenção do clima de tensão entre os poderes garante
a permanência das políticas de repasse de verbas para bases eleitorais que são
fruto do orçamento impositivo aprovado pela primeira vez no país em 2015.
De lá para cá, são dez
anos de uso de verbas do orçamento federal. Muitos desses gastos ocorrem sem
transparência sobre os autores, os projetos e o destino real dos recursos
utilizados. Um rápido levantamento utilizando dados do portal da transparência
aponta que apenas nos últimos cinco anos foram empenhados quase R$170 bilhões
do orçamento federal para financiar obscuramente as políticas individuais dos
parlamentares.
A grave violação dos
“preceitos fundamentais regentes da administração, da execução do orçamento
público e das finanças públicas, bem como os princípios constitucionais da
legalidade, da moralidade, da eficiência e da publicidade” foi esse o motivo
que levou o PSOL, em junho de 2021, acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a
fim de paralisar as transferências financeiras e forçar o Congresso Nacional a
revisar o modelo buscando maior transparência na alocação de recursos.
Na ADPF 854 DF, o
partido argumenta tratar-se de um verdadeiro “orçamento paralelo” e que o
elemento de condicionalidade da liberação de recursos evidencia desvio de
finalidade na distribuição dos recursos do orçamento.
Em sua decisão pela
suspensão dos pagamentos, a ministra Rosa Weber argumenta contra a “captura do
orçamento público federal em favor dos interesses paroquiais dos congressistas”
e faz um alerta contundente sobre o risco institucional que corremos enquanto
país se continuarmos com essa prática.
Naquele momento, a
resposta dos parlamentares foi o Projeto de Resolução do Congresso Nacional nº.
04/2021 que, aprovado pelo Senado Federal em novembro de 2021, trouxe um pouco
mais de transparência para os recursos aprovados no orçamento de 2022.
Agora em 2024, coube
ao ministro Flavio Dino determinar novamente a suspensão dos pagamentos por
meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 7697. O objetivo é novamente
evitar abusos gerados pela falta de transparência.
A tarefa de
desemperrar o fluxo de recursos para as bases eleitorais coube ao senador
Ângelo Coronel, do PSD da Bahia, que, responsável pelo orçamento de 2025 está peregrinando
entre os líderes do Executivo e do Legislativo, a fim de refinar seu projeto de
alteração das regras sobre os recursos federais utilizados pelos
parlamentares.
O movimento para
derrubar a importância do STF e alijá-lo do seu dever constitucional tem como
objetivo enfraquecê-lo ao ponto de ser dominado por um Congresso Nacional cada
vez mais tosco, fisiológico e perdulário. Não faz sentido que num ambiente onde
esses mesmos parlamentares utilizam sua rasa retórica para defender superávits
fiscais haja tamanho disparate na aplicação do dinheiro do contribuinte.
O enfraquecimento do
STF não é uma mera consequência aleatória da situação política atual. É fruto
de um bem desenhado projeto para derrubar as instituições que funcionam no país
utilizando para isso subterfúgios de cunho ideológico como cortina de fumaça
para decisões pouco republicanas que só diminuem nosso tamanho enquanto
sociedade. A escolha como alvos de Alexandre de Moraes, Rosa Weber e agora
Flavio Dino apenas confunde o cidadão.
E quem se beneficia
desse cabo de guerra virtual são parlamentares alheios às nossas reais
necessidades de investimento.
- Impacto na democracia brasileira
Diante desse contexto
de crescente tensionamento, se faz necessário empreender esforços para esmiuçar
a raiz do descontentamento dos parlamentares com decisões tomadas no âmbito da
Corte.
Ao analisarmos as
eleições de 2024, levantamentos apontam que nas 100 cidades mais beneficiadas
pelas chamadas “Emendas Pix”, ou seja, transferências especiais de recursos
enviados diretamente por parlamentares para contas bancárias dos municípios,
93% desses foram reeleitos.
Em Macapá (AP),
segunda maior beneficiária dessa modalidade de emenda, o prefeito reeleito Dr.
Furlan (MDB) recebeu 85,08% dos votos. Durante seu mandato como chefe do
executivo municipal da capital do Amapá, o município recebeu R$128 milhões
desse tipo de transferência. Só o senador Lucas Barreto (PSD), seu aliado,
indicou R$45 milhões no período mencionado.
As alianças
construídas para a distribuição das emendas não se restringem a meras regras de
afinidade política. O grau de parentesco de alguns prefeitos com parlamentares
em Brasília também pode influenciar no apetite para a concessão das benesses. É
o caso de cidades cuja prefeitura é administrada por parentes de deputados e
senadores, essas são as campeãs de recebimento de emendas pix.
Chama a atenção a
falta de critérios para obtenção dessas transferências. Inclusive, fica claro
que o fator determinante para se conquistar quantias vultuosas das emendas não
são as necessidades gerais da população brasileira, e sim acordos políticos e outros
laços de afinidade pessoal que não comportam o princípio da isonomia.
Belém, com cerca de
1,3 milhões de habitantes, governada por Edmilson Rodrigues (PSOL), foi
contemplada com R$23 milhões no mandato do atual prefeito. Enquanto isso, Novas
Russas (CE), cidade com 32,4 mil pessoas, recebeu quase o mesmo valor no mesmo
período, R$18 milhões. Desse total, R$14 milhões foram enviados pelo deputado
federal Junior Mauro (PL), marido da prefeita da cidade.
Em Belém, o prefeito
terminou a corrida eleitoral na terceira posição, com 9,78% dos votos e sequer
avançou para o segundo turno. Embora Edmilson Rodrigues tenha convivido com
baixos índices de aprovação durante seu governo, chama atenção a discrepância dos
valores recebidos em comparação com cidades bem menores.
Números extraídos do
Portal da Transparência e do Siga Brasil (portal do orçamento do Senado
Federal) apontam que, se considerarmos todas as emendas parlamentares enviadas
entre 2021 e 2024, 50 dos 51 prefeitos que tentaram a reeleição nos 100
municípios com mais emendas por eleitor obtiveram sucesso, uma taxa de
incríveis 98%.
O pleito
recém-terminado de 2024 registrou o maior índice de reeleições de prefeitos da
história. 81% dos chefes do poder executivo das cidades brasileiras foram
reconduzidos para um segundo mandato no último dia 06 de outubro, e outros
ainda disputam o segundo turno.
É inegável que o novo
protagonismo vivido pelos parlamentares na execução do orçamento público tem
modificado a correlação de forças no cenário da política brasileira, o que
deveria, no mínimo, nos levar a um exercício de profunda reflexão sobre a
conjuntura de captura do orçamento que vivenciamos atualmente.
Como bem definiu o
ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, ao analisar o processo
orçamentário brasileiro dos últimos anos, a adoção dessa nova lógica deu
“espaço a prioridades eleitorais e paroquiais dos congressistas, em detrimento
das políticas de interesse coletivo”. Ao inflar suas bases eleitorais com
emendas milionárias com o único objetivo de patrocinar seus projetos de poder e
suas alianças com políticos locais, a classe política brasileira transforma o
orçamento público em moeda de troca nas eleições, em completa dissonância com
os anseios da população.
Para todo o exposto,
parece ser possível compreender o nível elevado de aborrecimento de vários
membros do Congresso Nacional no termômetro da relação com a Suprema Corte.
Afinal, o projeto político eleitoral de um grande número desses atores está
alicerçado, única e exclusivamente, na irrigação desenfreada de frações do
orçamento público executado de forma desvirtuada, ineficiente e pouco
transparente. Ao que parece, esqueceram que seu dever é estudar e aprimorar a
legislação brasileira em benefício de toda a sociedade.
A tentativa ávida de
limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal se traduz numa empreitada
sabidamente inconsistente. A própria Constituição vigente, ao adotar
acertadamente um mecanismo de freios e contrapesos, exerce papel fundamental na
prevenção de abusos e concentração de poder, protegendo a democracia.
O art. 60, §4º, III da
Constituição Federal reverbera a vontade do constituinte originário, quando
reunido em Assembleia Nacional, de ordenar o princípio da separação entre os
poderes como cláusula pétrea. Ou seja, um dispositivo constitucional que não pode
ser alterado, nem mesmo por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição.
Ademais, em seu art. 102, a mesma Carta Magna determina que “compete ao Supremo
Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”, o que pode ser
traduzido, tranquilamente, da seguinte forma: o STF é quem terá a última
palavra se tratando de interpretação constitucional, mesmo contra a ira dos
parlamentares.
- Narrativas falaciosas
Em artigo intitulado
“as emendas de relator e as narrativas falaciosas”, escrito em conjunto por
Paulo Hartung, Marcos Mendes e Fábio Giambiagi, em 2022, os autores refutaram
alguns dos mitos mais comuns envolvendo a utilização de recursos orçamentários por
parlamentares.
O primeiro deles é
sobre esse tipo de prerrogativa de utilização de verbas federais ser a regra
geral no mundo. No documento, os autores afirmam que embora o Congresso
Nacional tenha o papel de votar o orçamento, não se encontra em nenhum outro
país um volume tão grande de recursos movimentado por membros do legislativo
como acontece no Brasil.
Em comparação com os
Estados Unidos, por exemplo, o percentual das despesas discricionárias
utilizadas pelos parlamentares de lá para financiar projetos em seus redutos
eleitorais é de 1%, enquanto aqui, segundo os autores do estudo, esse
percentual chega a 30%.
O número de emendas
parlamentares também é algo avultante, passando com facilidade as 6.000
proposições anuais. Em comparação com Portugal, um outro exemplo levantado por
Hartung, Mendes e Giambiagi, o Brasil chega a criar cerca de 30 a 40 vezes mais
dependendo do ano de comparação.
Um outro forte
argumento contra o uso indiscriminado de emendas está ligado à natureza da
federação brasileira. Aqui, tanto a União, quanto estados e municípios têm seus
próprios orçamentos e responsabilidades. Segundo os autores, “à União cabem
funções como a defesa nacional e o ensino superior, aos estados, funções como a
infraestrutura rodoviária intermunicipal, o ensino médio ou a rede hospitalar
de referência, aos municípios, os investimentos e serviços de impacto local”, e
concluem “nesse ordenamento legal, não faz sentido que recursos federais sejam
utilizados para fazer estradas locais, ginásios esportivos e praças
municipais”.
Isto é, considerando
que estados e municípios têm suas obrigações e orçamentos próprios e o apoio
fundamental do Fundo de Participação dos Municípios para tratar de demandas
locais e regionais da população. Então, qual seria o sentido de entregarmos
parte significativa do montante disponível para investimento nas mãos dos
parlamentares?
Outro argumento
defendido pelos autores está ligado à lógica errada de que os parlamentares,
por conhecerem melhor suas regiões, teriam maior assertividade na alocação dos
investimentos já que “decisões isoladas e descoordenadas aumentam
exponencialmente a chance de haver estradas apenas parcialmente asfaltadas,
excesso de provisão de serviços em um município e falta em outro”.
Gastos orçamentários
precisam de coordenação e estudos técnicos como garantia de sua viabilidade e
responsabilidade, não podem ser feitos livremente como mandam as cabeças de 594
parlamentares brasileiros preocupados apenas com seus redutos eleitorais.
- A tragédia dos comuns e o laissez-faire orçamentário
O termo “tragédia dos
comuns” foi primeiramente cunhado pelo biólogo Garrett Hardin em 1968, quando
descreveu com brilhantismo a busca por benefícios individuais propagada por
Adam Smith em “A Riqueza das Nações”, o que não levaria ao crescimento do bem estar
comum e sim resultaria no uso excessivo dos recursos disponíveis.
Nas palavras do biólogo americano: “Adam Smith contributed to a dominant
tendency of thought that has ever since interfered with positive action based
on rational analysis, namely, the tendency to assume that decisions reached
individually will, in fact, be the best decisions for an entire society”. E
conclui que: “if the assumption is not correct, we need to reexamine our
individual freedoms to see which ones are defensible”.
Para Garrett Hardin,
ao avaliar os pós e contras da utilização de recursos comuns para atingir
sucesso individual, as pessoas tendem a privatizar os ganhos com a exploração
da riqueza de todos e socializar os prejuízos advindos dessa utilização e
exploração do bem comum.
Esse comportamento
fica mais evidente quando observamos a socialização da exploração das riquezas
naturais do planeta para aumento do crescimento econômico de determinado país
individualmente. Enquanto os maiores líderes econômicos globais mantêm suas máquinas
funcionando a pleno vapor para obtenção de lucro e enriquecimento de seus
cidadãos, a poluição resultante do trabalho dessas máquinas torna-se um passivo
com o qual o mundo inteiro precisa lidar, irônica e indecentemente prejudicando
as populações dos países mais pobres.
Traçando um paralelo
com a situação de nossas emendas parlamentares, estas são consumidas com
voracidade pelo desejo eleitoreiro dos parlamentares enquanto recursos
disponíveis no orçamento federal poderiam ser destinados para a ampliação de
programas sociais e para financiar obras de infraestrutura. Por exemplo, os
valores empenhados desde 2020 até outubro de 2024 para financiar as emendas
parlamentares giram em torno de 170 bilhões de reais. Por curiosidade, o
programa Bolsa Família que atende diretamente dezenas de milhões de famílias no
Brasil anualmente gira em torno do mesmo valor. Para o orçamento de 2024 foram
destinados R$168,5 bilhões para as famílias atendidas pelo programa.
Poderíamos ter o
aumento do atendimento às famílias que precisam dos programas sociais para
sobreviver, mas estamos entregando o orçamento para deputados federais e
senadores fazerem política e se manterem onde estão com graves prejuízos à
democracia.
Estamos
deliberadamente, através da concessão de direito sobre parte significativa do
orçamento público aos parlamentares, aumentando a concentração de poder e renda
em algumas famílias e grupos políticos enquanto vemos agravar a nossa
desigualdade social e a participação popular no processo democrático.
Daron Acemoglu,
economista turco recém laureado com o prêmio Nobel de economia, escreveu
justamente sobre o papel das instituições dos países em seus desenvolvimentos
econômicos. Para o economista, instituições nacionais que permitem a
participação popular no processo decisório estão diretamente relacionadas ao
crescimento dessas nações, enquanto instituições que afastam a população do
poder fazem a sociedade caminhar no sentido contrário ao
desenvolvimento.
Nesse sentido, o
desequilíbrio político causado pela utilização das emendas parlamentares por
deputados e senadores com o mero critério de proximidade política e influência
estratégica sobre determinadas localidades do país se encontra com a crítica de
Garrett Hardin ao laissez-faire orçamentário na exploração de recursos
finitos.
Para os autores, “o
efeito desse conjunto de elementos é a realidade de um país onde o investimento
em infraestrutura é metade do que os especialistas sugerem que deveria ser, mas
onde se gastam dezenas de bilhões de reais em pequenas obras que não são inúteis,
ou poderiam até fazer sentido, mas, definitivamente, não com o uso de recursos
federais”.
Hartung, Mendes e
Giambiagi já alertaram, também contrariamente à lógica de Adam Smith, que
“pessoas agindo racionalmente em favor de seu interesse próprio acabam
prejudicando o interesse coletivo”. O resultado da busca incessante por
sucesso individual, dinheiro e prestígio, práticas cafonas dos parlamentares
brasileiros, é fazer o restante da nossa sociedade amargar os prejuízos
ambientais, materiais, financeiros, econômicos e sociais das escolhas
individuais dos membros do Congresso Nacional enquanto esses se lambuzam com a
parte do orçamento de todos nós.
Fonte: Por Leonardo
Delfino da Silva e Rafael Cabral Maia, no Le Monde
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