História viva: assim se constroem as
“Cracolândias”
A persistência da
cracolândia na região entre os Campos Elíseos, Santa Efigênia e Luz, há mais de
três décadas, é resultado de decisões de política urbana, e não da falta delas.
Por diversas vezes, ao longo da história recente, esse fragmento da cidade foi
alvo de ações policiais e urbanísticas tendo em vista solucionar um processo de
“degradação”, cujo sinônimo oculto é o deslocamento das elites e classes médias
(suas formas de consumo e habitação) dessa área da cidade durante o processo de
urbanização de São Paulo, e o rechaço de formas populares de morar e viver.
Apesar do anúncio do
desejo de “revitalização”, verificamos como foi sendo construído, ao longo do
tempo, um espaço em ruínas, que atraiu os abandonados da cidade, constituindo o
que ficou conhecido como “fluxo”. Tendo como ponto de partida uma leitura publicada
em 2017 pelo LabCidade FAUUSP, atualizada agora para 2024, demonstramos que a
presença do fluxo, embora anunciado como justificativa para intervenções na
região, é na verdade produto e resultado destas.
Antes da
“cracolândia”, termo criado em 1995 pela delegacia especializada no combate ao
crack no âmbito do Denarc, a região delimitada pelos bairros dos Campos
Elíseos, Santa Efigênia e Luz era reconhecida por outras presenças também
denominadas de forma estigmatizadoras: a prostituição da “Boca do Lixo”, do
“Quadrilátero do Pecado”. A área, então circunscrita entre a Rua dos Timbiras,
Avenida São João, Avenida Duque de Caxias e Rua Mauá, integrava uma série de
hotéis localizados na Santa Efigênia, originalmente associada ao baixo
meretrício, que, em 1953, por decreto do então prefeito Adhemar de Barros,
havia sido removido das “casas de tolerância” do Bom Retiro. Marcada pela
presença de circuitos ilegais, mas não apenas, a região conviveu historicamente
e em meio à repressão, com uma pujante cena cultural, em especial do cinema, do
teatro e do samba. Ainda assim, durante a ditadura militar, em nome da
moralidade, aconteceram na região ações policiais que resultavam,
rotineiramente, em despejos e prisões.
Do outro lado da
avenida Duque de Caxias, no bairro dos Campos Elíseos, inicialmente planejado
para receber as residências da elite cafeeira, ainda no final do século XIX,
foi paulatinamente se popularizando. Com a saída das elites e classes médias
para bairros adjacentes (Higienópolis, Pacaembu, Av. Paulista e os Jardins), a
partir dos anos 1930 os antigos casarões e edifícios passam por
compartimentações sucessivas, predominando a permanência de populações de menor
renda, sobretudo após a instalação do terminal rodoviário da Luz em 1961.
Como incremento à
movimentação de pessoas, já observadas a partir das linhas de trem de
passageiros e as estações da Luz e Júlio Prestes, a existência da rodoviária
atraiu uma população nômade e provisória de recém-chegados, em parte pela
oferta de uma série de serviços aos viajantes, em sua maioria trabalhadores que
se deslocavam para São Paulo em busca de oportunidades. Entre elas, a locação
em pensões, hotéis e cortiços, próximos ao eixo de transporte, tornou-se forma
comum de acesso à moradia na região.
Antes mesmo da chegada
da rodoviária, ainda no século XIX, a Santa Efigênia já concentrava esse tipo
de moradia, de casinhas e pensões de aluguel encortiçados. O mapa abaixo
sobrepõe dados de um levantamento de cortiços publicado em 1893, realizado pela
Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito da
Santa Efigênia, com dois levantamentos mais recentes, de 2015 e 2022,
realizados pela Secretaria Municipal de Habitação, evidenciando a permanência
de formas populares de moradia há mais de um século.
A existência de um
grande número de pessoas morando e circulando nesse território ofereceu
alternativas de sobrevivência e geração de renda, gerando um comércio popular:
do comércio ambulante ao fornecimento de marmitas. Ali também se instalaram
polos de comércio especializado, como instrumentos musicais e equipamentos
eletrônicos.
Em 1982, com a
desativação da rodoviária, permaneceu ali uma estrutura cada vez mais
subutilizada e ociosa de hotéis e pensões, alguns deles desativados, dando
lugar a ocupações de moradia, e no início da década seguinte, abrigo aos
primeiros usuários de crack. Ato contínuo, as expulsões esporádicas, já
realizadas nas casas de prostituição da Boca do Lixo, com fechamento e
interdições, progressivamente deslocam os usuários de de substâncias para fora
dos estabelecimentos, passando a ocupar as ruas do entorno.
Nos anos 1990, a
cracolândia já era uma realidade e passou a ser mobilizada como a principal
justificativa para a transformação urbana. A estratégia empreendida pelo
Governo do Estado de São Paulo naquele momento foi instalar grandes
equipamentos culturais, como a Pinacoteca, a Sala São Paulo e a Escola de
Música (EMESP Tom Jobim), denominados como “equipamentos âncora”. Esse conjunto
de intervenções pontuais consistia em uma espécie de “acupuntura urbana”, que
apostava na ideia de que a presença de equipamentos sofisticados de cultura e
arte trariam como consequência um movimento de retorno das elites e classes
médias ao centro.
Segundo essa lógica,
tais intervenções seriam capazes de atrair investimentos em restaurantes,
apartamentos, negócios, promovendo uma ampla transformação. Contudo, diversos
fatores limitaram a possibilidade de atores privados transformarem esse
território. Em primeiro lugar, a existência de um patrimônio histórico
edificado e protegido: a Santa Efigênia possui um dos traçados urbanos mais
antigos da cidade, remontando ao início do século XIX, composta por sobrados e
edificações hoje tombados. Outro limite foi a complexidade fundiária dos
bairros, resultado de décadas de fragmentação das propriedades, com
irregularidades registrais, heranças e inventários não concluídos. A existência
de muitos herdeiros, alguns já falecidos, outros difíceis de localizar, dificultava
a aquisição dessas áreas pelo setor imobiliário, o que inviabilizou a
transformação da forma como se dá em muitos outros setores da cidade.
Como o setor privado
não teve êxito em comprar e demolir, o setor público assumiu esse papel. Já nos
anos 2000, o Governo do Estado e a Prefeitura passam gradativamente a
desapropriar imóveis, justificando essa ação em nome da vigilância sanitária e
da fiscalização de espaços comerciais, mas sobretudo mobilizando o discurso e a
estratégia da “guerra às drogas”, estabelecendo como meta o fim da cracolândia,
último entrave para “revitalizar” a região. Estas ações foram constituindo, na
verdade, um cenário de ruínas, onde os despejados das próprias intervenções
foram estabelecendo novas ocupações precárias, atraindo assim outros deserdados
da cidade, oferecendo uma rede de moradia e sobrevivência precária nos limites
e sobras da legalidade.
À medida que algumas
áreas foram sendo desapropriadas e demolidas, foram criados e expandidos
imensos terrenos baldios, quarteirões inteiros desapropriados, em pleno centro
da cidade, densamente urbanizado. Observa-se, aqui, o primeiro movimento de
deslocamento planejado da cracolândia que, a partir de 2008, migra do bairro da
Santa Efigênia e atravessa a avenida Duque de Caxias no sentido dos Campos
Elíseos, ocupando o entorno da Praça Júlio Prestes e, pouco tempo depois, o já
demolido terreno da antiga rodoviária da Luz. A partir de então, as operações
policiais que sucederam aproveitaram o espaço para estabelecer ali um
laboratório violento, orientadas pela lógica da “dor e sofrimento” – que
nomearia a operação iniciada em 2012 – empurrando usuários entre as ruínas.
Para poder superar o
impasse da desapropriação – restrita ao poder público sob justificativas de
utilidade pública ou interesse social – em 2005 foi lançada a concessão
urbanística Nova Luz, que previu a passagem do instrumento para atores
privados, o qual foi alvo de contestação na justiça. Comerciantes e
trabalhadores da Santa Efigênia se organizaram junto aos moradores da área,
entre eles moradores de ocupações ameaçadas, movimentos e outras organizações
sociais, para resistir à tática da desapropriação privada e destruição de seus
comércios, espaços de moradia e trabalho na região. Com a oposição ampla no
debate público e irregularidades na contratação dos projetos, a concessão foi
judicializada pelo Ministério Público e suspensa.
Com a Nova Luz
política e juridicamente derrotada, e tendo sido a pauta e demanda da moradia
como uma das justificativas desta derrota, o poder público se viu obrigado a
aprender com os erros. A estratégia, nesse sentido, não seria mais em
equipamentos culturais nem na desapropriação a encargo do setor privado. A
aposta, encabeçada pelo governo do Estado, e seguida do governo municipal,
seria a habitação. Os projetos de habitação via Parceria Público-Privada
passaram, assim, a mobilizar a legitimidade da pauta da moradia e o interesse
social para justificar transformações urbanísticas mais amplas. A PPP Casa
Paulista, lançada em 2012 e contratada em 2014, é voltada para quem trabalha no
centro com carteira assinada, mas não mora no centro. Se propõe, com isso, a
atrair novas pessoas para morar na área central – justificada ao se apropriar,
parcialmente, de uma antiga e legítima pauta dos movimentos de moradia da área
central: habitação para trabalhadores no centro da cidade. A proposta, porém,
excluiu uma parcela da população que não se enquadrava nos perfis de renda e
crédito, promovendo, ao mesmo tempo, a remoção dos antigos moradores e
comerciantes locais, e o não acolhimento de pessoas despejadas das pensões e
cortiços desapropriados. A implementação desses empreendimentos foi acompanhada
de uma política de repressão e violência não só contra os moradores das
edificações demolidas para o projeto, mas também contra as pessoas em situação
de rua.
Em maio de 2017, pouco
antes do lançamento dos primeiros empreendimentos das PPPs, uma grande operação
policial, com mais de 900 agentes da polícia Civil e Militar, espalhou o fluxo,
à época concentrado entre a Alameda Dino Bueno e a Rua Helvetia. Um dia depois,
tratores começaram a demolir imóveis com pessoas ainda vivendo dentro deles.
Embora o então prefeito à época, João Dória, atestasse publicamente o “fim da
cracolândia”, a cena de uso voltava a ocupar o entorno da Estação Júlio Prestes
algumas semanas depois. Como reação, foi composta a articulação do Fórum Aberto
Mundaréu da Luz, da qual o LabCidade fez parte, e cujo resultado imediato foi a
elaboração do plano alternativo Campos Elíseos Vivo, com participação coletiva
de moradores e comerciantes, tendo em vista combater a abordagem violenta e
reducionista dos projetos públicos em andamento.
Cracolândia retorna
para a Praça Júlio Prestes em junho de 2017. Fonte: Labcidade, 2024.O fracasso
da tentativa de remover a cracolândia dali não interrompeu as políticas
violentas, mas fez com que mudassem de estratégia. Ao invés de dispersar os
usuários, a gestão Dória passou a intensificar as ações de zeladoria urbana –
com movimentação do fluxo para limpeza de ruas e coleta de lixo – fechar
serviços de cuidado e cercar espaços públicos, em especial das praças Júlio
Prestes e Princesa Isabel, gradeadas e policiadas em 2018 e 2022
respectivamente, dificultando ao máximo a circulação das pessoas que se
concentram nas cenas de uso e o trabalho da assistência social. Tudo isso em
conjunto com as desapropriações e remoções dos moradores e comerciantes dos quarteirões
alvo do projeto, inclusive durante o período da pandemia.
• A retomada da estratégia de dispersão:
do deslocamento à multiplicação das cenas de uso
Em 2022, após
praticamente completada a remoção total dos moradores e comerciantes dos três
quarteirões para as PPPs, foi retomada a estratégia de dispersão da
cracolândia. Já sob a gestão Ricardo Nunes, a concentração de usuários foi
então deslocada do entorno da estação Júlio Prestes. Inicialmente o fluxo se
concentrou na Praça Princesa Isabel, mas em pouco tempo foi expulso, e, assim,
a cracolândia se espalhou, formando pelo menos 16 concentrações menores no
entorno.
A tática da dispersão
foi atualizada sob o nome de “Operação Caronte”, realizada entre 2021 e 2022,
em seis fases, cada uma dividida em diversas etapas, liderada pela Polícia
Civil em parceria com a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e a Polícia Militar (PM).
A narrativa governamental da época afirmava que a tática da dispersão era um
sucesso, pois, além de qualificar o atendimento dos usuários, estaria gerando
uma diminuição das cenas de uso. Em texto publicado na Folha de S. Paulo,
Alexis Vargas, o então secretário-executivo de Projetos Estratégicos da
Prefeitura de São Paulo, afirmou: “Os números confirmam que estamos no caminho
certo. A cracolândia está cada vez menor, os usuários estão tendo mais
atendimento e o centro da capital paulista está cada vez mais ocupado por
famílias”. Esse discurso, no entanto, não se sustentou no tempo e a política da
dispersão sofreu fortes críticas de regiões que passaram a acolher novas
cracolândias. A multiplicação das cenas de uso gerou uma forte sensação de
insegurança, agora ampliada pelo centro da cidade. Cenas de assalto a
transeuntes e roubos a lojas passaram a circular nas redes sociais, amplamente
divulgadas pela mídia, gerando fechamento de diversos estabelecimentos.
• Da dispersão do fluxo aos lançamentos
imobiliários
A presença do crack na
região por mais de três décadas produziu um imaginário social do medo que, ao
longo do tempo, foi “contaminando” a dinâmica local como um dos fatores
decisivos na formação das geografias urbanas do crime e da violência. O crack,
para além de apresentar complexidades na confluência entre o social, o jurídico
e a saúde pública, carrega representações morais em torno do ilícito,
tornando-se elemento chave na engrenagem de depreciação-apreciação dos imóveis
onde se concentram as cenas de uso.
Importa, nesse
sentido, observar como a produção imobiliária pressiona as margens desse
perímetro nas últimas décadas, desde a primeira expulsão de usuários da Santa
Efigênia. Entre os anos de 2008 e 2022, de acordo com dados da Embraesp,
pode-se constatar que os lançamentos imobiliários se aproximam da área de
influência do fluxo, com espraiamento dos empreendimentos, a partir deste
recorte, na região da República, Santa Cecília, Bom Retiro, Barra Funda, com
algum incidência em trechos dos Campos Elíseos. A sequência abaixo sintetiza o
atravessamento entre a movimentação do fluxo e os lançamentos pelo mercado
imobiliário (Embraesp, 2008-2022).
Com os imóveis
desvalorizados, a estratégia da desapropriação volta a tomar a cena. Agora para
a construção de uma nova esplanada do Governo do Estado, ocupando o entorno da
Praça Princesa Isabel, lugar em que, durante os anos de 2008 e 2023, se
concentrava a cena de uso da cracolândia, em mais um projeto de PPP, agora de
transferência da sede administrativa.
E para onde foi o
fluxo? Voltou para o mesmo lugar onde tudo começou, no pedaço entre a Santa
Efigênia e a Luz, ocupando mais uma vez as ruínas, em um dos terrenos demolidos
durante a Operação Nova Luz no início dos anos 2000 e que, até hoje, segue
abandonado. Embora o Governo do Estado e a Prefeitura afirmem terem criado um
“corredor da saúde”, na Rua dos Protestantes, o que se vê é a cracolândia
cercada por grades e muros, continuamente deslocados pelo movimento duplo de
ações de segurança e zeladoria urbana.
Moral da história: as
políticas de gestão e controle do território exercidas pelos governos revelam
que a produção da “cracolândia” – enquanto materialidade e território, mas
também enquanto uma ideia que constitui (e amedronta) o imaginário social – e seu
deslocamento, ao longo do tempo e do espaço, são fruto de políticas e ação – e
não omissão – do Estado. Por meio de um jogo que alterna demolição e
deslocamento, foi-se criando, com muita violência, uma dinâmica territorial e
social em que a valorização e desvalorização acabam sendo efeitos (e objetivos)
das políticas de controle, repressão e deslocamento forçado, em um jogo de
disputas políticas que até os dias de hoje tem agravado as condições
urbanísticas e sociais da região.
Fonte: Por Aluízio
Marino, Alec Akasaka Benedusi, Renato Abramowicz Santos, Débora Ungaretti,
Raquel Rolnik, no LabCidade
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