Cúpula do Brics: Muitos avanços e uma bola
fora
Como era de se
esperar, a cúpula dos Brics foi largamente ignorada pela mídia hegemônica,
quando não menosprezada pela “ausência de resultados concretos” – como se o
advento de uma nova arquitetura financeira para o comércio mundial em
contraposição à arquitetura vigente desde o final da Segunda Guerra Mundial
pudesse ser algo repentino.
Ademais, a arquitetura
vigente elegeu uma moeda preexistente de um único país, o dólar
norte-americano, para reserva mundial de valor, conduzindo assim
inevitavelmente à hegemonia dos Estados Unidos (unipolaridade), enquanto que a
nova arquitetura, em respeito ao princípio da multipolaridade, não poderá vir a
ser hegemonizada por nenhum país, o que torna a empreitada sobremaneira
complexa.
Mas resultados em
Kazan houve, e expressivos.
Comecemos pelos
resultados de natureza “concreta”. Foram dados largos passos para a implantação
efetiva de sistemas como o BricsBridge, para interligação dos
bancos centrais dos países-membros de modo a que as suas moedas nacionais
venham a ser usadas no comércio internacional, e o BricsPay, uma
plataforma de pagamentos internacionais alternativa ao sistema SWIFT concebido
e controlado pelo Ocidente.
Foram também
deslanchadas iniciativas para a criação do BricsClear, uma
infraestrutura comum de depósito e liquidação; de uma empresa de resseguros dos
Brics; e de uma agência própria de classificação de risco (rating). Não
menos importante, será criada uma bolsa de grãos, como precursora de bolsas
para todas as demais commodities, na qual compradores e vendedores
poderão negociar tendo os preços de referência, pioneiramente, fixados fora do
dólar, em uma moeda digital ainda por ser criada.
Nenhuma dessas
iniciativas será vinculante aos diferentes países-membros, ou seja, as adesões
serão em base voluntária, o que foi uma saída sagaz para o problema da
unanimidade (decisões por consenso). Assim, China e Rússia ficam liberadas para
“pisar no acelerador” da implantação da nova arquitetura, contornando a
eventual resistência dos países “cavalos de troia” (falaremos adiante).
Naturalmente, saldos
comerciais entre os países ainda serão em dólares, mas já poderá haver uma
significativa redução do seu uso: suponhamos que, na balança comercial entre os
países A e B, o país A importe X dólares do país B, enquanto que o país B importe
2X dólares do país A. Até o montante de X (ou seja, dois terços do volume total
de valor comercializado) tudo poderá ser pago com as moedas nacionais, enquanto
que o país B ainda terá que pagar em dólar ao país A pela outra metade das suas
importações.
Tome-se agora a
seguinte microrregião do mundo: Tailândia, Malásia, Vietnã, Indonésia, Índia e
China. São todos países vizinhos, e com expressivas trocas comerciais entre si.
Some-se a isso o fato de que essa região é a mais bem servida do mundo pela
logística multimodal provida pela Iniciativa Cinturão e Rota chinesa, e o que
se tem em mãos é um excelente “piloto” para a desdolarização do comércio
mundial. Se a essa microrregião agregarmos mais outros países na costa do
Oceano Índico, como Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, o
piloto adquire proporções excepcionais, permitindo antever uma significativa
ampliação do comércio entre aqueles países.
Uma implantação
efetiva de todas as iniciativas decididas em Kazan somente virá a prover as
bases para uma desdolarização maciça do comércio mundial em um prazo que não
tem como ser antevisto, mas que a um ritmo, digamos, “natural”, pode ser
grosseiramente estimado entre cinco e dez anos. Pode-se prever com certeza, ao
longo desse período, crescentes tensões no mundo e crescentes pressões por
parte do Império que, se vierem a desembocar em novas crises geopolíticas
(guerras), terão o condão de acelerar, por força maior, esse prazo de
implantação.
Um resumo sóbrio pode
ser encontrado neste depoimento do francês Arnaud Develay, especialista em legislação
internacional.
Passemos agora aos
resultados de natureza, digamos, “psicoglobal”.
Por iniciativa da
Índia, esta e China chegaram a um acordo para manter congeladas, por prazo
indefinido, as suas disputas territoriais de fronteira, e assim poderem se
dedicar integralmente à cooperação econômica. Até aqui a Índia vinha sendo um
parceiro hesitante quanto ao processo de desdolarização, e um país que
“pendulava” entre as esferas de influência Ocidental e dos Brics. Esta
iniciativa por parte da Índia sinaliza que a fase de hesitação acabou, e que a
Índia virá agora unir-se mais firmemente à Rússia, China, África do Sul e
demais parceiros na implantação das novas iniciativas.
Mas a mais grata
surpresa da cúpula foi a inesperada, e aparentemente profunda, “quebra de gelo”
entre o primeiro-ministro Pashinyan da Armênia e o presidente Aliyev do
Azerbaijão, dois países que até então têm estado em estado de guerra – claro
que contou muito a perspicácia da organização russa da cúpula em sentá-los lado
a lado.
Após décadas de
fracasso da Organização das Nações Unidas em conter a proliferação de conflitos
pelo mundo (como no Iraque, Líbia, ex-Iugoslávia, Afeganistão, Iêmen, Somália,
Síria, Haiti, no Sahel africano e outros), a cúpula dos Brics veio como um lufada
de ar fresco para desanuviar um ambiente carregado, sinalizando o advento de
uma nova era para o entendimento e a cooperação entre as nações – especialmente
porque, ao contrário dos fóruns tradicionais criados pelo Ocidente, que
legitimam como natural a imposição dos interesses de uns sobre outros
(invariavelmente os daqueles mais fortes sobre os daqueles mais fracos), o
Brics traz consigo um princípio não-escrito de se levar em consideração os
interesses de todos.
Novamente por mérito
da organização russa, o formato de mesa-redonda veio contrastar com o formato
de púlpito-auditório da ONU. E Putin revelou que a data de 24 de outubro para o
encerramento da cúpula não foi escolhida ao acaso, posto que carrega um significado
simbólico: foi em um 24 de outubro (de 1945) que entrou em vigor a carta da
Organização das Nações Unidas.
Diante da falência do
modelo da ONU, os Brics se propõem como um renascimento de uma comunidade de
nações, portando uma mensagem de civilidade, cooperação, tolerância e abertura,
e de respeito à soberania de cada país. Em um mundo cujos “senhores” não apenas
silenciam como se acumpliciam e prestam apoio diante de mais um infame
genocídio na história da humanidade, a mensagem de acolhimento e de esperança
dos Brics é um ganho até maior do que os resultados ditos “concretos” da
cúpula.
Quanto ao Brasil, o
governo Lula acabou por vestir a carapuça de “cavalo de troia” do Ocidente para
solapar os esforços do grupo, talvez ao lado da Arábia Saudita, a qual até aqui
vem ao menos se esquivando de aceitar o convite para fazer parte do grupo.
A ausência de Lula em
Kazan encontra respaldo na proibição médica de viagens longas de avião. É,
porém, inescusável que Fernando Haddad tenha sido o único ministro da economia
e finanças dos países-membro a ter deixado de comparecer às reuniões preparatórias
e, pior, a ter voado para Washington justamente na data da cúpula para cumprir
agendas outras. O país que assumiu à frente da implantação da bolsa de grãos
dos Brics é a Rússia, o maior produtor de grãos do planeta. Não deveria ser uma
prioridade para o Brasil, o segundo maior produtor (e o primeiro em soja, milho
e café) vir a conjuntamente encabeçar essa iniciativa? Foi também sintomático
que a representação do Brasil em Kazan tenha ficado a cargo do chanceler Mauro
“se Putin vier ao Brasil teremos que prendê-lo” Vieira.
Não se deve subestimar
as pressões a que Lula possa estar submetido, e está claro que o governo Lula 3
não faz o que quer, faz aquilo que consegue fazer. Quando Arthur Lira o
chantageia ele não o faz em seu nome pessoal, faz em nome da expressiva maioria
que a direita auferiu na Câmara dos Deputados. E quando, faltando seis dias
para Kazan, Lula recebe os principais banqueiros do país os quais saem da
reunião tecendo elogios ao governo, ficam patentes os limites aos quais Lula
está confinado em termos da sua atuação para a construção do mundo multipolar.
Não obstante, mesmo
que possa ser explicável, essa posição assumida pelo Brasil vem jogar contra as
pretensões de Lula de entrar para a História como um grande estadista
reconhecido mundialmente. Para os Brics, a má notícia é que terá início agora a
presidência brasileira do bloco, e a boa notícia é que daqui a um ano ela
acaba.
Resta falar do veto
brasileiro à entrada da Venezuela nos Brics. O argumento de que as eleições na
Venezuela não foram exatamente “democráticas” não para em pé, porque não houve
restrições do Brasil à entrada de Cuba, onde vigora um regime de partido único
em que sequer ocorrem eleições presidenciais, muito menos existe qualquer
“alternância de poder” desde 1959. É claro que existe participação política em
Cuba, que assim é democrática a seu modo próprio – mas assim também é na
Venezuela. A própria democracia brasileira, com suas bancadas majoritárias de
parlamentares fisiológicos e corruptos perpetuamente reeleitos por força de
orçamentos secretos, emendas pix e compras de votos, não tem como ser tomada
por qualitativamente superior à venezuelana somente porque a um nível formal as
nossas urnas eletrônicas garantem a lisura da apuração.
Já o argumento de que
a Venezuela “não contribui para a paz” (palavras de Celso Amorim)
tampouco convence, dado ser por demais sabido que o ambiente político
venezuelano se encontra de tal modo deteriorado que ambos, governo e oposição,
não se furtam a toda sorte de expedientes violentos e antidemocráticos, e fazem
do processo eleitoral mero pretexto para se perpetuarem no poder (governo) ou
para açambarcá-lo a quaisquer meios (oposição).
Não há dúvida que o
governo brasileiro tem as suas legítimas razões para não reconhecer a vitória
eleitoral de Maduro, porém o que está em jogo é o advento do mundo multipolar,
para o qual a Venezuela é peça muito importante. Priorizar uma questão local em
detrimento do interesse global é míope para se dizer o mínimo – é como jogar
fora o bebê junto com a água suja do banho.
Enfim, Nicolás Maduro
esteve em Kazan, mas não como “penetra” como a imprensa brasileira quis fazer
parecer, e sim como convidado de Putin, o qual fez questão de deixar bem claro
que a Venezuela somente não entrou para o grupo devido ao veto brasileiro, e
que recepcionou Maduro de forma particularmente veemente – sendo que a acolhida
de Xi Jinping a Maduro não foi menos calorosa.
Maduro tomou seu
assento na mesa-redonda dos líderes, do que tirou o devido proveito.
Para encerrar, um
episódio pitoresco. Um Vladimir Putin especialmente bem-humorado resolveu fazer
uma troça, gaiatice ou pilhéria (chame como quiser, mas eu me recuso a chamar
de “trolagem”) e mandou desenhar e imprimir aquela que seria “a nova moeda dos
Brics”, em substituição ao dólar:
Pois não é que não
pouca gente nas mídias tanto hegemônica como alternativa não caiu na esparrela,
e acreditou por alguns momentos que ele estaria falando sério, até se darem
conta da vergonha que estavam passando? Deprimente mundo este, em que não se pode
mais nem aprontar uma molecagem…
¨ Vice-presidente venezuelana critica veto do Brasil à entrada de
Caracas no BRICS: 'É irracional'
A vice-presidente da
Venezuela, Delcy Rodríguez, disse, nesta quarta-feira (30) que a decisão do
Brasil de vetar a entrada de seu país no BRICS "é irracional".
"O BRICS é um
bloco contra-hegemônico, é um bloco a favor do multilateralismo, e o Brasil não
poderia sustentar racionalmente esse veto. É irracional, é de ódio, de inveja.
Esse veto nega a essência do BRICS e é por isso que pensamos, espero que não,
que o Itamaraty não se torne o cavalo de Troia do BRICS", declarou a
vice-presidente.
O comentário de
Rodríguez foi feito no Vietnã durante uma viagem de trabalho que a
vice-presidente realiza por vários países asiáticos.
"O que o Brasil
tem feito só mostra uma profunda inveja da Venezuela. Eles acreditam que
podemos ser gerar competição em vez de nos entendermos como somos, países que
estão na mesma região. Como podemos somar nossas potencialidades para
impulsionar nossa região?", acrescentou.
Ao mesmo tempo, a
vice-presidente destacou que a posição do Brasil constitui uma
"agressão" à Venezuela.
"A baixeza do
Itamaraty ficará marcada na história como uma agressão ao povo venezuelano, mas
é preciso dizer também, ele não só violou a constituição deles, como disse o
presidente, mas também atacou princípios e valores (.... ) dos BRICS", afirmou.
Além disso, Rodríguez
sublinhou que o governo continuará trabalhando para a incorporação da Venezuela
em espaços internacionais de "grande relevância" e ressaltou o apoio
expressado pelo presidente russo Vladimir Putin ao seu país.
No dia 29 de outubro,
o assessor-chefe da Assessoria Especial do Presidente da República do Brasil,
Celso Amorim, declarou que que a Venezuela "não contribui" para um
melhor funcionamento do BRICS, destacando que "não há vetos formais"
na plataforma global.
Em resposta, o
presidente da Assembleia Nacional (parlamento unicameral) da Venezuela, Jorge
Rodríguez, anunciou que vai pedir ao legislativo que declare Amorim persona non
grata.
No dia 28 de outubro,
o presidente Nicolás Maduro disse que esperaria que o seu homólogo brasileiro,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se pronunciasse sobre o veto do seu
país que impediu Caracas de aderir ao BRICS.
• JULIA DUAILIBI: Itamaraty vai evitar
bate-boca em público
O Itamaraty não deve
responde publicamente à bronca diplomática dada nesta quarta-feira (30) pela
Venezuela, que convocou seu embaixador em Brasília para consultas.
➡️ A convocação de um embaixador é uma espécie de repreensão de um
país a outro na linguagem diplomática internacional.
A decisão de convocar
o embaixador foi comunicada pelo governo venezuelano ao encarregado de negócios
do Brasil na Venezuela, Breno Herman. A embaixadora, Glivânia Maria de Jesus,
está fora do país.
Segundo o blog apurou,
integrantes do governo venezuelano se queixaram a Herman de declarações
recentes de Celso Amorim, assessor especial de Lula para assuntos
internacionais, sobre a eleição no país vizinho.
Na terça (29), Amorim
disse na Câmara dos Deputados que "houve uma quebra de confiança dentro do
processo eleitoral, algo nos foi dito e não foi cumprido. Não quero
personificar, vamos ver como isso evolui", afirmou Amorim.
Amorim afirmou, ainda,
que a entrada da Venezuela dos Brics - um pleito do governo Maduro que não foi
chancelado pelo governo Lula -, "não contribui para o melhor funcionamento
do bloco", formado por Brasil, Rússia, Índia e China.
Hoje, Amorim está mais
alinhado com Lula, que, por sua vez, está em consonância com o Itamaraty nas
críticas ao governo venezuelano. O ex-chanceler anteriormente demonstrava uma
postura mais conciliadora em relação a Maduro.
No Itamaraty, até o
momento, a disposição é não responder à convocação.
"Às vezes um
puxão de orelha é um elogio", disse uma fonte da diplomacia brasileira.
¨ BRICS é o 'protesto do Sul Global contra o mundo unipolar' dos
EUA, diz Irã
A aliança BRICS
constitui o protesto dos países do Sul Global contra o mundo unipolar liderado
pelos Estados Unidos, disse o embaixador do Irã na Rússia, Kazem Jalali.
"O BRICS é o
protesto do Sul Global contra o objetivo de estabelecer a estrutura de poder do
mundo unipolar com o eixo norte-americano", disse Kazem Jalali à Sputnik.
A aliança econômica
BRICS, inicialmente composta por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul,
foi ampliada em 1º de janeiro de 2024 com a entrada da Arábia Saudita, Egito,
Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã.
O embaixador iraniano
sublinhou que o BRICS, de fato, opõe-se à ditadura ocidental na arena global e
apoia mudanças na governança global.
"O Irã é um dos
países que está na vanguarda desta abordagem no cenário mundial. [...] A
presença de um país como o Irã em uma organização como o BRICS contribui para o
aprofundamento desta essência", acrescentou.
A aliança BRICS
representa atualmente quase metade da população mundial, 40% da produção
mundial de petróleo e cerca de 25% das exportações de bens.
A Rússia ocupa a
presidência rotativa do grupo desde 1º de janeiro de 2024 e organizou uma
cúpula de 22 a 24 de outubro na cidade de Kazan, com a presença de chefes de
Estado e de governo e altos delegados de 36 países, bem como representantes de
seis organizações internacionais, incluindo o secretário-geral da ONU, António
Guterres.
Fonte: Por Ruben Bauer
Naveira, em Outras Palavras/Sputnik Brasil/g1
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