Seriam os dissidentes sexuais “monstros”
domesticados?
Reflexões sobre um acomodamento.
Em especial na Europa, movimentos LGBTTIQ+ orgulham-se de sua “rebeldia”, mas
fecham os olhos às políticas que assassinam – física ou ontologicamente os
imigrantes. Até Paul Preciado, parece sucumbir
• Cena 1: O monstro fala
Em novembro de 2019, o
filósofo Paul B. Preciado ocupou a tribuna da Escola da Causa Freudiana em
Paris. Não conseguiu concluir sua conferência porque os/as psicanalistas
presentes negaram-se a escutar a voz de alguém que ousou invadir aquela casa
para dizer-lhe como o regime da diferença sexual, fundamento que sustenta a
psicanálise, produz sofrimento, exclusão e morte. A máquina de triturar gente
inventada em meados do século XVIII e consolidada no século XIX, na Europa,
produziu no seu ventre os/as filhos/as malditos/as, aqueles/as que estariam
condenados à não-vida. Tornar-se sujeito e, posteriormente, ter direito à
cidadania passou a ser condicionado ao desempenho dos supostos designíos do
dimorfismo sexual, em que a feminilidade só ganha inteligibilidade quando
desempenhada por uma mulher-vagina e a masculinidade por um homem-pênis. Na
aparente radicalidade da crítica que Preciado fez à diferença sexual, no
entanto, o fundamento do projeto ontológico eurocentrado foi preservado. Suas
críticas foram articuladas a partir do tripé: diferença
sexual-patriarcado-colonialismo. Proponho desmembrar essa tríade. Comecemos
pelo par diferença sexual-colonialismo.
O regime da diferença
sexual funciona por assimetria e hierarquia, os corpos sexuais são distribuídos
em pares dicotômicos. De um lado, o homem é identificado pelos atributos da
razão/força/atividade. A mulher, pela emoção/fragilidade/passividade. Essas assimetrias
encontram na ideologia da complementariedade do sexo, na heterossexualidade, a
expressão da sabedoria da natureza agindo e formando o humano. A diferença
sexual como determinando das identidades e destinos, refere-se à produção dos
corpos colonizadores, um tipo de ontologia e epistemologia interna à Europa. No
exato momento em que o dimorfismo estava em luta contra o isomorfismo na
Europa, a empreitada colonial nas Américas estava em pleno funcionamento. Uma
massa imensa de corpos foi abjetada da categoria “humano”. A diferença sexual
tornou-se, na modernidade, a senha que permitia o reconhecimento do corpo como
humano. Mas essa diferença dizia respeito aos corpos que portam uma condição
anterior: serem europeus e brancos.
As mulheres e homens
escravizadas/as, embora tivessem a mesma aparência de gênero, a mesma
morfologia que as pessoas livres, não entraram para o regime da diferença
sexual. Nos textos escritos pelos colonizadores sobre as pessoas negras,
pode-se notar que a diferença sexual aqui é transfigurada em pura bios, força
biológica consumida na esfera produtiva e não qualificava esses corpos a
habitarem o mundo dos homens e das mulheres. O dimorfismo nunca foi universal.
As diferenças sexuais entre as pessoas escravizadas não eram reconhecidas como
atributos qualificadores que lhes autorizaria a ocupar posições nas esferas
públicas (homens) ou privadas (mulheres), mas um mecanismo para a obtenção de
lucros. O leite da mulher escravizada era um insumo que poderia render
consideráveis lucros para as senhoras ou/e os senhores escravocratas. Se
fizermos duas colunas e na primeira, arrolarmos as ditas características
naturais das mulheres brancas e na segunda, das mulheres negras, emergirão
outras configurações. As negras eram reconhecidas pela força, perversão sexual,
energia, irracionalidade e corpos resistentes à dor. E as brancas pela
passividade, emotividade, fragilidade, recato, honradez. Parece-me, então, que
a essa mulher branca que Preciado está se referindo e com a qual teve que lutar
para se desidentificar. Mas ao universalizar a diferença sexual, produz o
apagamento das existências negras e dos povos originários das Américas.
As negras habitam o
mundo do não-humano, do abjeto. As brancas, o da diferença sexual, do destino
traçado para formação das famílias do Estado-nação, Nas colônias, eram senhoras
escravocratas. Ao referir-se ao “colonial” sem apontar o protagonismo que as
mulheres e os homens europeus tiveram no genocídio de milhões de pessoas, o
filósofo espanhol termina por operar a crítica com o mesmo fundamento que supõe
negar: o universalismo. Torna-se um legítimo herdeiro no pensamento
eurocentrado. Enquanto as mulheres e homens europeus e brancos nasciam com
gênero, uma “dádiva” da diferença sexual, as pessoas negras escravizadas
tiveram que transformar o gênero em uma agenda de luta e, nas entranhas do
discurso da diferença sexual, tiveram que performatizar a pergunta “e eu não
sou uma mulher?”. Sojourner Truth, o monstro negro, também ousou confrontar
senhores e senhoras guardiãs da diferença sexual. Certamente, a resposta que
eles deram a pergunta da escritora foi: “você não é mulher. Você é uma negra.”
Se ela tinha todos os
atributos que qualificam seu corpo para entrar no mundo feminino, por que não
era reconhecida como mulher? Por que ela estava fora da diferença sexual? Para
ter direito a entrar na diferença sexual, uma pré-condição deveria ser observada:
ser branca. Ou seja, há um nível condicionante e anterior à entrada na
diferença sexual. Os efeitos dessas concepções ontológicas com fundamento na
raça seguem com seus efeitos na contemporaneidade, basta observar as diferenças
consideráveis entre as agendas de luta dos feminismos negros e dos feminismos
ocidentais. As feministas negras lutam para, por exemplo, ter direito a mesma
quantidade de anestesia que as brancas, quando precisam realizar um
procedimento cirurgia. Pesquisas apontam que a representação dos corpos negros
como mais resistentes à dor segue presente. Os ativismos trans precisam
enfrentar o império da diferença sexual. Mesmo nesse nível, não é possível uma
análise no topo de uma roda gigante sem que se perceba que as pessoas trans oriundas
de países ex-colonizados, na Europa, devem lidar diariamente com esse passado –
porque os colonizadores de ontem têm bons e fiéis herdeiros.
O filósofo afirma: “a
invenção da estética anatômica da diferença sexual serviu para sustentar a
ontologiapolítica do patriarcado ao estabelecer diferenças ‘naturais’ entre
homens e mulheres, numa época em que a universalização de um único corpo humano
vivo poderia ter legitimado o acesso das mulheres ao aparelho de governo e à
vida política.” A retórica da diferença sexual nunca foi universal. Se o corpo
universalizado não incluía as pessoas negras e indígenas, me pergunto como o
“patriarcado” operava no mundo dessas populações. Eu também me pergunto o que
Preciado entende por “patriarcado”. Parte considerável das teorias feministas
acionam os recursos da psicanálise para oferecer uma interpretação da posição
de opressão que as mulheres ocupam na ordem de gênero.
Volto-me para a
experiência colonial e escravocrata. Seria possível afirmar que as mulheres
negras escravizadas compartilhavam com as mulheres brancas o mesmo espaço de
opressão imposto pelo patriarcado? Caso a resposta seja afirmativa, como parece
sugerir Preciado, está-se partindo do pressuposto que a condição de gênero
seria um elo comum, resultando em campos experienciais compartilhados por todas
as mulheres e homens. Mas como se produziria esse campo interseccionado de
experiências? A diferença sexual é um atributo qualificador para adentrar à
categoria de humanidade, e as mulheres e os homens negros/as não faziam parte
dessa ontologia. Assim, só nos resta responder com o retorno da diferença
sexual, não mais como um dispositivo de poder, mas como um dado biológico
inescapável. Afinal, mesmo sendo mulheres escravizadas continuavam a ser
mulheres. Ao produzir uma análise universalizante, Preciado acaba por
reinstaurar o primado da diferença sexual como um dado. Há apagamentos no
argumento do filósofo próprios do pensamento colonial que precisam ser
lembrados. As pessoas escravizadas não tinham sobrenome, não podiam formar
famílias, tanto senhores quanto senhoras brancas tinham poder de vida e morte
sobre as existências negras, e estas, mesmo quando conseguiam a carta de
alforria, não passavam a ter o mesmo estatuto político e ontológico das pessoas
brancas.
Conta um viajante
europeu que ao visitar o Rio de Janeiro do século XIX notou que a pergunta mais
embaraçosa que se podia fazer a uma mulher escravizada era o nome do pai do seu
filho porque, como matriz reprodutora, ela não podia decidir sobre sua vida sexual.
É possível que o mesmo regime de poder, o patriarcado, seja acionado para
interpretar contextos sociais antagônicos? Será que essa ordem
político-simbólica paira sobre as existências totalmente deslocada das relações
sociais objetivas, tornando-se a-histórica? Será que Preciado, o filho rebelde,
que retorna como filósofo à casa paterna, não fez, com seu discurso, um elogio
ao nome-do-pai?
Essas ponderações não
podem ser acionadas como um recurso para desconsiderar os sofrimentos e também
os efeitos do regime da diferença sexual. Tampouco como desqualificador das
lutas internas que os dissidentes europeus travam. Contudo, não se pode seguir
considerando que as monstruosidades são as mesmas em todas as partes do globo.
• Cena 2: O monstro grita
18 de janeiro de 2023.
O ambiente controlado do teatro São Luiz em Lisboa é interrompido por Keyla
Brasil, uma travesti brasileira. Ela atravessou o corredor como uma faísca
elétrica. Dirigiu-se ao palco e interrompeu o espetáculo. Gritou seu manifesto
contra o transfake. Keyla é uma artista que precisou inserir-se no mercado
sexual para sobreviver. É como se a Agrado tivesse fugido da peça para nos
contar a guerra diária para sobreviver. Mas Keyla não tem um atributo de
Agrada, personagem da peça “Tudo sobre a minha mãe”, que estava sendo encenada.
Ela não é europeia, é uma ex-colonizada, que tenta sobreviver na capital de um
país que segue exibindo com orgulho os nomes de genocidas dos parentes
políticos de Keyla. Eles estão em todas as partes: em nomes de ruas, escolas,
avenidas, em centenas monumentos.
Da mesma forma que a
audiência não-escutou o filósofo, Keyla teve que gritar mais alto para
sobressair às vaias que emergiam de pontos difusos da plateia. O monstro
gritou.
Após esse ato
político, iniciaram as ameaças de morte à Keyla. Como ela ousou dizer que há
transfobia em Portugal? O Câmara de Vereadores de Lisboa atuou rápido para pôr
as coisas no lugar certo: aprovou uma moção de apoio aos artistas e negou que
haja transfobia em Portugal.
E se Keyla demandasse
o direito a ter seu trabalho como puta reconhecida, local de onde retira seu
sustento? Em Portugal há associações de mulheres trabalhadores do sexo que
estão em luta por esse direito e têm que enfrentar as feministas abolicionistas
que reiteram que o trabalho sexual é uma expressão máxima do domínio patriarcal
sobre os corpos das mulheres. Em uma conversa pública com feministas
abolicionistas portuguesas, escutei que “não admitiremos a legalização desse
trabalho. Que voltem para seus países, se querem esse tipo de proteção”. Ou
seja, negam o direito à aposentadoria e outros resguardos legais que as
trabalhadoras conquistaram, acionando o espectro do patriarcado. Que
importância tem se uma travesti brasileira passa fome? O documentário “No
coração do Bois”, de Claus Drexel, conta a história de travestis trabalhadores
sexuais no Bois de Boulogne em Paris. A grande maioria é oriunda de países
ex-colonizados pela Europa. Uma das entrevistadas lembra que elas sempre
tiveram de lutar contra os governos, as forças da repressão, mas nada se
compara ao ódio que as feministas têm de suas existências. Foram elas que, para
combater o patriarcado, defenderam uma lei que passou a criminalizar os
clientes. A luta não é contra o patriarcado, mas contra os corpos racializados
que instauram e reatualizam a luta colonial não nos espaços além-mar, mas
dentro da Europa.
Se eu apontei, na
primeira cena, a raça como elemento fundamental que antecede ao batismo humano,
a diferença sexual, aqui a raça retorna disfarçada com o nome asséptico de
“imigrantes”, e as fronteiras do Estado e da nacionalidade que aparecem com
recorrência no discurso de Preciado, saem da esfera da metáfora e
transformam-se em política de produção continuada da morte dos monstros, os
ex-colonizados, seja nos centros de detenção, dos campos de refugiados ou em
Lampedusa (uma ilha que, de fato, é um misto de base militar e campo de guerra
contra os ex-colonizados). Para fazer os resgates no Mediterrâneo, os
representantes do Estado italiano se vestem como se estivessem em uma guerra
bacteriológica. Seus corpos são completamente cobertos por um uniforme branco,
o que produz um forte contraste com os corpos negros que aportam com seus
corpos semi-desnudos, exaustos, com dificuldade de se manter em pé para pisarem
pela primeira no solo europeu. No cais em Lampedusa, não há nenhum banheiro,
nem comida ou quaisquer sinais de boas vindas que a Europa demonstrou
largamente ao receber os ucranianos. Depois, são transferidos para um “lugar de
acolhimento”. Dormem ao relento e compartilham o solo duro com o lixo que se
avoluma. Eu nunca tinha visto uma imagem que se aproxima tão intensamente das
descrições das senzalas, espaços destinados às pessoas escravizadas inventados
pelos colonizadores portuguesas. Eu olhava para aqueles corpos e me perguntava
quem seriam os dissidentes sexuais e de gênero, quem era o monstro? Quem seria
travesti ou gay em meio daquelas pessoas? E isso importa? Eram negros, eram
africanos, uma massa de gente despossuída de documentos, de palavras, de
importância, de história. A cada momento, a Europa reinstaura a produção dos
monstros, dos selvagens, dos incivilizados.
Voltei a presenciar a
guerra unilateral da Europa contra os ex-colonizados quando visitei um campo de
refugiados em Lesbos. Meu trabalho ali era simples: ajudar na preparação da
comida feita por uma ONG. A rica Europa não tem recursos suficientes para dar a
quantidade de calorias necessárias para assegurar a sobrevivência das pessoas
presas no campo. A jaula não é uma metáfora, mas um texto explícito: monstro
bom é monstro morto.
As técnicas de
produção da morte para evitar que ex-colonizados, monstros que assombram a
consciência europeia, desembarquem são inúmeras: intercepção de barcos, demora
em fazer os resgates, parcerias criminosas com as guardas costeiras da Líbia e
da Tunísia, principais locais de saída dos ex-colonizados africanos. A
quantidade de pessoas que perderam a vida no Mediterrâneo tentando entrar à
Europa Fortaleza são imprecisas, mas é um erro de análise e de sensibilidade
definir esse Mar como uma cova. O Mar Mediterrâneo é um campo de extermínio. O
novo campo de extermínio inventado pela Europa.
Participei de várias
atividades no Mês do Orgulho na Europa. Caminhei junto com os monstros nativos.
Busquei, obsessivamente, encontrar uma palavra de solidariedade aos deixados
para morrer nos campos de refugiados e nos inúmeros centros de detenção de imigrantes
na Europa. Tentei encontrar um “pare a deportação!”. A minha procura foi
inútil. Com uma única exceção: o coletivo Panteras Rosa, de Lisboa, que tem um
considerável arco de alianças e de atuação que não os restringem à questão
LGBTTIQ+ da Europa. Eu já tinha feito essa mesma busca durante as atividades do
8 de março. Fui para as ruas com as mulheres francesas, em Paris. Em um dia
chuvoso, tentei encontrar algum coletivo de mulheres que pautasse o racismo
constitutivo do Estado francês, a perseguição desvairada às mulheres muçulmanas
e algum tipo de denúncia contra a política de promoção de morte dos
ex-colonizados. Outra vez, minha procura foi inútil. As palavras de ordem
giravam basicamente em torno do patriarcado. Afinal, eu me perguntava: o que eu
tenho em comum com essas feministas?
Parece que, ao
contrário, do meu desejo, os monstros nativos tem preferido tornar-se parte da
política continuada de eliminação da presença dos ex-colonizados. Na eleição da
Espanha que aconteceu em maio desse ano, o bairro Chueca, conhecido por ser um
espaço acolhedor para os familiares políticos de Preciado, os monstros, votou
majoritariamente nos candidatos da extrema direita (VOX) e da direita (PP).
Essa tem sido uma tendência em toda Europa. Podemos inferir, que há uma
hierarquia impulsionadora do voto. Pode-se lutar contra o império do sistema
binário, contra a diferença sexual, mas se mantém os dois pés fincados na
defesa da proteção das fronteiras nacionais, contra a invasão dos selvagens.
Transiciona-se de gênero, nega-se a heteronormatividade, mas defende-se a
pureza da identidade nacional, porque essa é anterior e englobante.
Parte considerável dos
esforços das pessoas trans provenientes de ex-colônias está em convencer os
coletivos nativos da Europa a incorporar as especificidades das pessoas trans
imigrantes, os sem-papeis, nas suas agendas. Ou seja, há um momento anterior,
um passo atrás: fazer com que suas existências sejam notadas dentro dos
coletivos europeus e assim, transformar o “refugo da terra”, expressão de
Hannah Arendt para os refugiados, em sujeitos com voz audível internamente.
Preciado diz que
“desde 16 de novembro de 2016, sou portador de passaporte com nome e sexo
masculino, portanto não há mais obstáculos administrativos à minha liberdade de
movimento ou à minha capacidade de falar”. O monstro foi domesticado e
normalizado pelo Estado? Essa liberdade Keyla certamente nunca conhecerá. A
pergunta conhecida sempre retorna: “de onde você é?” Não existe passibilidade
para os/as ex-colonizados/as, mesmo que ele/a tenha nascido em Lisboa ou em
Paris, mesmo que sejam alemães de terceira geração. A pergunta virá. A Europa
desenvolveu um tipo de tecnologia para detectar os “invasores” muito antes dos
dispositivos de reconhecimento facial. A pergunta esconde uma exclamação: “Não
queremos você aqui!”.
• Cena 3: O monstro se cala
Enquanto eu lia o
texto de Preciado, eu vi uma bandeira gigante tremulando nos céus de Bruxelas.
Essa é uma daquelas coincidências difíceis de explicar. A nova versão da
bandeira LGBTTIQ+ estava ao lado de todas as bandeiras dos Estados europeus, na
entrada do parlamento da União Europeia. Enquanto lia me perguntava: que tipo
de monstruosidade é esse que foi assumida como elemento definidor da identidade
dos Estados europeus? O que se tem observado ao longo das décadas é o
desenvolvimento de linhas de financiamento de pesquisa e atividades que tenham
como eixo estruturando a questão dos gêneros e sexualidades dissidentes.
Sabemos, contudo, que entre a intenção política oficial (que obedece a disputas
narrativas que visam reproduzir a Europa como ápice da civilização) e a vida
cotidiana das pessoas LGBTTIQ+ há uma distância considerável. As violências
contra as pessoas LGBTTIQ+ no mercado de trabalho, nas escolas, nas famílias
não estão superadas. Esse reconhecimento, no entanto, não responde à questão:
por que os representantes dos Estados da Europa Fortaleza repetem orgulhosos
que não existe transfobia, a exemplo do que aconteceu com a Keyla?
A resposta não está
exclusivamente nas relações internas na Europa. Está acontecendo com a agenda
de luta dos dissidentes sexuais e de gênero, algo muito similar com que se
notou com o feminismo. A invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos e pela
OTAN inaugurou uma nova retórica global do poder das grandes potências. Nunca
antes a situação das mulheres tinha sido acionada para justificar políticas de
ocupação. Esse recurso retórico representou uma nova configuração discursiva
que tem como fundamento a instrumentalização das lutas feministas. A mulher
transforma-se em uma moeda nas disputas globais impulsionada pelos países
dominantes. Com o argumento de salvar as mulheres das garras do Taliban, o que
se observou foi uma verdadeira pilhagem dos recursos naturais e humanos do
Afeganistão por 20 anos. Qual foi o legado que mundo civilizado deixou para o
Afeganistão? Um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo.
Setores dos movimentos
LGBTTIQ+ e dos movimentos feministas encontraram nos braços quentes do Estado e
das grandes corporações o lugar para definir, circundar e limitar suas ações,
sem nenhum tipo de aliança política-ético fora das fronteiras nacionais. Por
isso, a ausência das políticas de alianças tanto nas atividades do Orgulho
quanto nas manifestações do 8 de março com os/as ex-colonizados/as que habitam
ou tentam entrar na Europa Fortaleza. A universalização dos valores vinculados
à agenda feminista e dos direitos LGBTTIQ+ como moralmente superiores passa a
ter outro alcance e efeitos quando transformados em retórica de poder de
Estados. Mas se o Estado passa a ser encarnação do espírito da época, a defesa
da diversidade, por que não apoiar esse Estado? A esse compromisso e fidelidade
com o ideário do Estado-nação que chamamos de “homonacionalismo”.
O conceito de
“estruturas de atitudes e referências” proposto por Edward Said, nos ajuda a
compreender a adesão da população europeia ao colonialismo e imperialistas. Sem
legitimidade interna, o genocídio das populações originárias das Américas e
africanas não teria perdurado por quase 400 anos. Como aponta o intelectual
palestino, “tanto o movimento das mulheres quanto o proletariado eram
favoráveis ao império (…). Havia, na prática, uma unidade de propósitos nesse
campo: o império devia ser mantido, e foi mantido. (SAID, 2020, p. 105)” A
Europa civilizada, para se manter pura, sem o contágio dos bárbaros, necessita
e tem o apoio de parte considerável dos monstros das dissidências sexuais e de
gênero.
Como é possível
teorizar sobre monstruosidade quando os Estados assumiram a normatização das
populações LGBTTIQ+ como a coluna vertebral para a produção da diferenciação
radical entre os civilizados e os selvagens? Ao par dicotômico racionalidade
versus irracionalidade, emerge o “man of diversity”, o que responde ao chamado
dos Estados para, por um lado, garantir que as fronteiras não sejam invadidas
pela turba selvagem oriunda de regiões do globo que não respeitam a diversidade
e que poderão contaminar a civilização com seus valores, com seus hijabs, com
seus cheiros, seus cabelos, suas peles escuras.
Se concordamos com
Preciado que “o monstro é aquele que vive em transição”, não seria importante
valorizar política e analiticamente a performance dos Estados europeus que
expõem com orgulho o Orgulho LGBTTIQ+? Para onde estão indo os monstros da
diferença sexual? Será queo trânsito já não foi concluído e se fez a opção pela
acolhida dos Estados? O monstro se calou? As feministas abolicionistas já
fizeram suas escolhas. Tornaram-se proxenetas do Estado, vivem de angariar
recursos dos Estados europeus pela instrumentalização reiterada dos corpos das
ex-colonizadas. São as carnes das ex-colonizadas que garantem suas
sobrevivências. Parte do movimento LGBTTIQ+ também entendeu que antes de ser
dissidente, são europeus. O passaporte lhes confere um tipo de posição
ontológica tal que, mesmo habitando internamente um lugar de dor imposto pela
diferença sexual, a origem nacional e continental é um tipo de patrimônio,
inegociável. Afinal, quem é o “nós”, o sujeito oprimido universal que aparece
reiteradamente em Preciado? Na “estrutura de atitude e referência” de tempos
neo-coloniais, não é possível tentar produzir um sujeito global dissidente, a
partir de políticas de alianças ficcionais. Se “ninguém pode te dar o que não
tem e nunca conheceu”, para recuperar Preciado, parece um esforço inútil
convocar os/as herdeiros/as dos/as colonizadores/as a escutar a voz de Keyla.
Fonte: Por Berenice
Bento, em Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário