RACISMO NA POLÍTICA: Dez anos depois, o
quanto as pessoas negras ocuparam a política?
Em 2014, por pressão
do movimento negro e organizações antirracistas, o Tribunal Superior Eleitoral
passou a exigir a declaração racial no registro de candidaturas, de acordo com
as cinco categorias de raça/cor do IBGE: branco, preto, pardo, amarelo e indígena.
Com essas informações, finalmente seria possível ter dados objetivos sobre a
presença de pessoas negras (pretas e pardas) nos espaços de poder, e criar
legislações para enfrentar a abissal desigualdade no retrato da política
brasileira, branca e masculina.
Dez anos se passaram,
e o retrato das casas legislativas e do poder Executivo pouco foi modificado. A
atuação dos movimentos negros, de mulheres negras e sociais antirracistas
emplacaram importantes mudanças para o avanço da legislação. Mas, o racismo, enquanto
uma estrutura, um sistema de poder, possui a capacidade de se reestruturar de
modo a sempre garantir a manutenção dos privilégios da branquitude e do
patriarcado. A cada novo pleito eleitoral, desde 2014, os tímidos avanços
ficaram subsumidos pelos diversos retrocessos, fruto de manobras dos partidos,
e pela falta de vontade política das instituições de construir políticas
públicas efetivas para a promoção da igualdade racial.
Em 2014, das quase 26
mil candidaturas, apenas 14,2% eram de mulheres negras. O PT tinha 41,9% de
candidatos(as) negros, o PSB 37,7%, o PSDB 32,8% e o PMDB apenas 26,5%. Pessoas
negras representavam 43,6% de candidaturas, mas somente 24% se elegeram.
Naquele pleito, foram
eleitas 51 deputadas (9,9%) e 462 deputados (90,1%), e, no Senado, foram 5
mulheres (18,5%) e 22 homens (81,5%). O Congresso Nacional passou a ter 10,37%
de mulheres – número muito abaixo da proporcionalidade por sexo, de 30% e 70%,
prevista no artigo 10, parágrafo 3º da Lei nº 9.504/1997. Se fizermos o recorte
de raça, a desigualdade é ainda maior: das mulheres eleitas naquele ano, 11 se
declararam negras, 10 na Câmara e 1 no Senado –, o que representou apenas 2% do
total de parlamentares.
Em 2016, observou-se o
impacto da coleta dos dados raciais pelo TSE e o aumento da pressão dos
movimentos negros e antirracistas juntos aos poderes públicos, o que fez o tema
da sub-representação se amplificar na sociedade. No entanto, o debate não se refletiu
em mudanças concretas: para as prefeituras, menos de 1% de candidaturas de
mulheres negras (pretas + pardas) e menos de 0,1% autodeclaradas pretas foram
eleitas. Para vereança, foram eleitas 32,9% mulheres, mas somente 15,3% de
mulheres negras, das quais, apenas 2,8% se declararam pretas. Nenhuma mulher
negra foi eleita para chefiar as prefeituras das capitais, e apenas 32
vereadoras negras foram eleitas no universo de todas as câmaras legislativas
das capitais do país.
Em 2018, o TSE decidiu
que os partidos deveriam repassar 30% dos recursos do Fundo Especial de
Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo da TV e rádio para as candidaturas
femininas. Do total de candidaturas para todos os cargos, 69% eram homens e 31%
mulheres. No comparativo com a eleição de 2014, cresceu em 70% o número de
candidatas que se autodeclaram pretas, e 23%
que se autodeclaram pardas, expressividade percentual que ficou
conhecida como “Efeito Marielle”: as mulheres negras se apresentavam para as
eleições como forma de resposta à cruel execução da vereadora negra do Rio de
Janeiro, Marielle Franco (PSOL).
Porém, ao olharmos
para o total das candidaturas, que também cresceu em 22%, a proporção de
mulheres negras se manteve relativamente estável: de 13% em 2014 para 14% em
2018. O Congresso Nacional passou a ter 15% de mulheres. Dentre elas, apenas 13
deputadas negras (9 pardas e 4 pretas) e 1 senadora parda. Juntas, elas
representaram 2,5% de mulheres negras no Parlamento em 2018 (um aumento de
apenas 0,5% em relação a 2014).
Em 2019, Benedita da
Silva realizou consulta ao TSE para distribuição proporcional dos recursos do
FEFC para pessoas negras, o que foi acatado pelo TSE em 2020, com aplicação
naquele mesmo ano. Das mais de 88 mil mulheres
negras candidatas naquele ano, 4,5% (4.026) foram eleitas (3.510 pardas e 516
pretas). As mulheres venceram em 12,1% dos municípios (659), e destas, 32% eram
mulheres negras e 66,5% brancas. Para o cargo de vereadora, foram 16% de
mulheres eleitas, das quais, 39,3% eram negras e 59% brancas.
Faltando duas semanas
para as eleições de 2020, as mulheres pardas receberam 52% a menos de recursos
que as mulheres brancas, e as mulheres pretas menos da metade de recursos do
que as pardas. Os homens brancos receberam 10 vezes mais do que os homens pretos,
e os homens pardos 61,5% menos que os homens brancos. No grupo de candidaturas
pretas, 616 homens e 316 mulheres não receberam recurso algum. Ao final do
pleito, a distribuição dos recursos não foi cumprida pela maioria dos partidos,
alguns não cumpriram a cota de gênero, outros a cota racial, outros ambas, como
apontam os dados do relatório da Plataforma 72 Horas. No cômputo geral, as
pessoas autodeclaradas brancas ficaram com 72% dos recursos e os homens com
73,4%.
Além disso,
identificou-se que os partidos demoraram mais de 15 dias, do início do
cronograma oficial para liberação dos recursos, para realizar o repasse
financeiro para mulheres e pessoas negras, alegando problemas de “adequação
interna”. A punição para essa “inadequação” dos partidos simplesmente não
existiu, pois foi aprovada uma anistia no Congresso Nacional eximindo os
partidos de multas pelo não cumprimento da decisão do TSE (PEC 18/2021). Para
coibir essa prática nas eleições seguintes, o TSE determinou que os partidos
seriam obrigados a repassar, um mês antes das eleições, 100% do recurso da cota
de gênero e raça/cor às candidaturas de mulheres e pessoas negras.
Em 2020, o Inesc, em
parceria com o coletivo de pesquisa Common Data, revelou que 30% das candidatas
negras recorreram ao auxílio emergencial, indicando a precariedade enfrentada
por uma grande parte das mulheres negras na corrida eleitoral. Outro dado que
revelou o conservadorismo do sistema político brasileiro foi de que 36,87% dos
municípios tiveram somente 2 candidatos, a maioria homens brancos de direita
disputando entre si, e também a existência de candidaturas únicas, a maioria
homens de direita. Este fenômeno se repetiu em 2024, com aumento de 11,4% desse
tipo de candidatura.
Em 2022, a Câmara dos
Deputados passou a contar com 91 mulheres (17,7%) e 422 homens (82,3%), sendo
13 mulheres pretas e 16 pardas, o que representou 5,7% de mulheres negras no
parlamento (o dobro de 2018). No Senado, foram eleitos 23 homens (85,2%) e 4 mulheres
(14,8%). Entre os homens, apenas 6 (22,2%) homens negros (3 pretos + 3 pardos),
e as 4 (14,8%) mulheres eleitas senadoras eram brancas. No cômputo geral, o
Congresso Nacional, alcançou 17,6% de mulheres eleitas em 2022.
Chegamos a 2024 com
novos retrocessos: a aprovação da PEC 9/2023, uma nova anistia aos partidos,
consolidou um processo de recorrentes perdões àqueles que descumprem a regra de
distribuição dos recursos. Além disso, um grupo de partidos (PT, Solidariedade,
PSD, PSOL e PSB) solicitou extensão de prazo para repasse de recursos para
mulheres e pessoas negras, alegando “dificuldades técnicas”, e antecipando o
que já é a regra na prática: os partidos políticos não repassam os recursos de
acordo com as regras estabelecidas pelas cotas de gênero e raciais.
Os resultados também
não foram animadores. Considerando todos os cargos, foram eleitos em 2024,
54,6% brancos, 37,8% pardos e 6,4% pretos (ou seja, 44,2% de pessoas negras).
As pessoas negras representam 33,5% de eleitos(as) na prefeitura e 45,8% para
vereança. As prefeituras serão chefiadas por mulheres em apenas 13,2% dos
municípios (729 eleitas + 5 sub judice), mas apenas 243 (4,3%) mulheres negras
chegaram a esse cargo.
Das 79 mil (34,2%)
mulheres negras candidatas para todos os cargos em 2024, 5.006 (6,3%) foram
eleitas, ou 7,2% se considerarmos o total de eleitos. Isso é um aumento de 1,4%
da proporção de mulheres negras eleitas em relação a 2020, quando tivemos 4,9% (4.254)
de mulheres negras eleitas, ou 6,1% do total. Considerando 2016, o aumento foi
de 2,5%, ou 4,8% do total de eleitos.
Os homens negros
representaram, em 2024, 33,9% do total de candidaturas para todos os cargos,
sendo 23,4% eleitos, 38,4% para vereador e 29,3% para prefeitos. Isso é um
aumento de 10,2% da proporção de homens negros eleitos em relação a 2020,
quando tivemos 13,2% dos homens negros eleitos em 1º turno, ou 35,5 do total de
eleitos. E, considerando 2016, o aumento foi de 8,4% ou 35,6%do total de
eleitos.
Considerando homens e
mulheres, e perfil raça/cor, os prefeitos brancos eleitos são quase o dobro dos
negros (pretos+pardos). Se considerarmos somente a cor/raça preta, a proporção
é de mais de 28 brancos para 1 preto nas eleições de 2024.
Numericamente, os
partidos que mais elegeram pessoas negras em 2024 foram MDB (3.971), PSD
(3.577) e PP (3.227), que também foram os partidos que mais elegeram mulheres:
MDB (1.818), PP (1.524) e PSD (1.379). Proporcionalmente, no entanto, são os
partidos de esquerda que ainda elegem mais pessoas negras: enquanto os partidos
de esquerda, somados, possuem 16,1% de seus eleitos da raça negra, nos partidos
de direita essa proporção é de 14,3% e de centro, 13,1%.
Diante desse
histórico, fica a pergunta: após 10 anos de lutas históricas dos movimentos
negros, feministas e antirracistas, e conquistas do ponto de vista da
legislação eleitoral, o quanto as pessoas negras ocuparam a política? A
população negra partiu de uma sub-representatividade de 42,1% no Legislativo e
29,2% no Executivo municipal em 2016, para 45,9% e 33,5% em 2024. E de 20% no
Legislativo federal em 2014 para 26,2% em 2022. Categoricamente, não houve
avanços na ocupação de espaços de poder e decisão por parte da população negra!
Nos parece que o
esforço e a energia despendidos por esse grupo social para alcançar os espaços
de poder é gigante em relação aos pífios percentuais de aumento ano a ano. Se
olharmos o espectro ideológico dos partidos, se tem pouca diferença entre
esquerda, centro e direita. Além disso,
são justamente estes os corpos que são as maiores vítimas de violência política
de gênero e raça, seja durante a corrida eleitoral, seja quando são eleitos.
Pessoas negras são
mais da metade da população brasileira, 55,5% de acordo com o Censo de 2022.
Estão organizadas em movimentos, e têm pautas para a política brasileira, mas
os mecanismos de reprodução de privilégios da branquitude e do patriarcado as
impedem de efetivamente ocuparem espaços de poder na proporção que tem direito,
tanto pelo que preconiza da Constituição Federal de 1988, tanto pelas questões
de reparação histórica que o País deve a este grupo social.
Os avanços risíveis
materializados pelos dados concretos que pudemos analisar, considerando essa
série histórica de 10 anos (2014 a 2024), demonstram a decidida posição do
racismo e sexismo à brasileira. A mesma legislação que criminaliza e encarcera
jovens negros, que não atua diante do crescente número de feminicídio de
mulheres negras, que não pune a violência política racial e de gênero, ou seja,
que não enfrenta de forma efetivas as estruturas que sustentam as desigualdades
raciais e de gênero, é àquela que impede que pessoas negras, sobretudo
mulheres, de chegarem aos espaços de poder e decisão institucional. A vergonha
desses resultados, concretizada pelas manobras dos partidos para se auto
anistiar e pela lentidão da justiça eleitoral em lidar com os números reais da
sub-representação, é de todas e todos nós.
Fonte: Por Carmela
Zigoni e Cristiane Ribeiro, no Le Monde
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