O Estado digital e suas armadilhas
Nos últimos anos, os
Estados nacionais estão empenhados em fazer a transição digital de seus
serviços, processos e canais de comunicação com os cidadãos. As iniciativas
envolvem adoção de tecnologias emergentes para melhor atender os cidadãos,
proteger dados estratégicos que custodiam, racionalizar e agilizar a prestação
de processos e serviços públicos, promover inclusão financeira e dar maior
transparência aos atos e ações oficiais.
Principais compradores
de produtos e serviços digitais em diversos países, os Estados têm a
possibilidade de induzir a configuração dos mercados digitais não apenas por
meio de compras públicas mas também na forma como escolhem as
características e os modelos das tecnologias que adotam, o ritmo com que as
implementam e como controlam as infraestruturas computacionais onde estes
serviços e dados são armazenados e processados.
Estes fatores
determinam legados tecnológicos, reduzem ou ampliam assimetrias regulatórias
entre monopolistas e novos competidores, oxigenam ou engessam ecossistemas
digitais nacionais e possuem impactos relevantes na geopolítica.
Longe de querer
criticar estas necessárias iniciativas de apoiar a transformação da máquina
pública visando a reforma do Estado, a intenção deste artigo é alertar para
como esta tendência, desprovida de diretrizes e princípios mais estratégicos,
aceleradas por hypes, pela pressão dos conglomerados e pelo efeito-manada, e
sem uma coordenação política entre os três Poderes, pode afetar negativamente
os quatros pontos destacados acima. E isso pode ser analisado através de três
campos correlatos que têm ganhado maior atenção nos últimos anos:
infraestruturas digitais, uso e reuso de dados e soluções públicas de
inteligência artificial.
·
1. Entre infraestruturas ou plataformas?
O assunto da
transformação digital do Estado via infraestruturas públicas digitais (DPIs na
sigla em inglês) voltou a receber visibilidade na semana passada com um artigo de Bill Gates, fundador da Microsoft, elogiando os
esforços de diversos países, inclusive Brasil e Índia, na implantação destas
plataformas e seus sistemas. O bilionário focou sua análise na importância que
a criação de identidades digitais e a inclusão financeira por meio de
transações móveis têm para estas economias no caso de países de renda média,
comparando-as a essential facilities.
“Existem alguns
componentes principais que constituem a DPI: sistemas de identificação digital
que comprovam com segurança quem você é, sistemas de pagamento que movimentam
dinheiro de forma instantânea e barata e plataformas de troca de dados que
permitem que diferentes serviços trabalhem juntos sem problemas. Esses sistemas
e plataformas são para o mundo digital o que as estradas, pontes e linhas de
energia são para o mundo físico – uma estrutura subjacente que conecta pessoas,
dados e dinheiro on-line. Uma DPI sólida pode impulsionar um país, facilitando
o acesso das pessoas a serviços essenciais, a participação na economia formal e
a melhoria de suas vidas. Por outro lado, uma DPI mal implementada (ou
simplesmente inexistente) pode retardar o desenvolvimento de um país e
perpetuar ineficiências e desigualdades.”
Quem poderia discordar
desta visão? Mas, como sempre, os silêncios são mais importantes que as
declarações. Apesar de colocar as plataformas de intercâmbio de dados como um
terceiro componente central para as DPIs, Gates não dedicou qualquer espaço no
texto para analisar este ponto. Muito menos, discutiu os aspectos da
infraestrutura física em si (data centers, cabos, servidores, redes de
telecomunicações, chips). A própria metáfora de seu texto – de infraestruturas
digitais como linhas de energia ou pontes – serve para confundir porque omite a
origem histórica destas instalações e ainda reforça a lógica de que DPIs são
infraestruturas no sentido tangível do termo quando elas estão mais para
plataformas ou sistemas que vão se empilhando (daí o termo strack) sobre uma
infraestrutura real.
As infraestruturas
físicas públicas citadas por Gates se expandem e são mantidas a partir de
vultosos investimentos públicos mesmo quando operadas via concessões reguladas
e supervisionadas por governos. Em uma estrada, por exemplo, o Estado mantém
seu aparato policial atuando para evitar qualquer ameaça à vida, riscos de
controle destas infraestruturas críticas por criminosos ou circulação de
mercadorias ilegais. Ao trazer às DPIs para esta analogia, mesmo que de forma
involuntária, o fundador da Microsoft acaba acrescentando um argumento
importante ao debate: se são infraestruturas de interesse público, quem deve
controlar a parte física em si também é o Estado? E como?
Esta omissão não
passou despercebido por aqueles que estão na batalha para desenvolver uma
política industrial que inclua infraestruturas computacionais independentes e o
controle de ativos digitais estratégicos nas mãos de governos nacionais de suas
democracias. Como já escrevi neste espaço, acadêmicos
e ativistas da agenda digital na União Europeia estão empenhados em convencer
os novos integrantes do Parlamento a implementar um projeto chamado EuroStack, que
reivindica justamente que estas infraestruturas e seus serviços nos países
europeus não sejam contratadas das três empresas dos Estados Unidos que
controlam cerca de 70% do mercado mundial (Amazon, Microsoft e Google). Uma de
suas idealizadoras, Cristina Caffarra, comentou o post de Bill
Gates com um alerta:
“Como todas as coisas
das Big Techs, esta postagem é profundamente enganosa. Os hiperescaladores
estão cooptando e se apropriando do conceito de ‘Infraestrutura Pública
Digital’, mas apenas para ofuscar e desviar a atenção de iniciativas de
infraestrutura reais realmente independentes. O truque é elogiar as DPIs da
Índia e do Brasil como um blá, blá, blá maravilhoso de democratização, mas
precisamos deixar claro que a versão de ‘DPI’ aqui apresentada é a versão
‘enxuta’: identidade digital, carteira digital… Nada de metal. Os
hiperescaladores adoram se isso for executado em SUA infraestrutura!”
Segundo Caffarra, a
proposta da EuroStack vai além:
“(…) um projeto de
investimento de estratégia verdadeiramente industrial para reduzir as
dependências da infraestrutura profunda das Big Techs. Ninguém deve se deixar
enganar se as instituições europeias começarem a dizer ‘já estamos fazendo o
EuroStack, é DPI’ – NÃO é disso que se trata (…). Isso é isca das Big Techs,
como de costume, colonizando e se antecipando.”
É importante perceber
como este discurso realmente está levando à criação de situações de fato em
várias partes do mundo. Os documentos propondo DPIs são geralmente omissos em
descriminar a natureza e a configuração da infraestrutura física que abrigará e
processará os serviços públicos e os dados dos cidadãos focando mais nas
condições para o desenvolvimento dos outros itens da “pilha”. Mais do que isso,
silenciam sobre a definição de quem as sustentará.
O que está ocorrendo é
o contrário. As principais empresas estrangeiras se apressaram em criar o
conceito de “nuvem soberana” para oferecer aos Estados nacionais plataformas e
sistemas digitais customizados no acesso e gestão da informação. Segundo essas
empresas, suas equipes apenas assumiriam a gestão das DPIs mantendo o controle
das informações e os processos de segurança na mão dos governos que não
quisessem contratar a solução como um todo atuando tanto no armazenamento
quanto no processamento dos dados.
Países diferentes do
Brasil, que somente no nível federal possui três estatais de tecnologia da
informação com infraestrutura própria, não têm esta opção e precisam deixar
todos os seus dados e sistemas nas mãos dos provedores das “nuvens soberanas”.
Também é importante notar que nos maiores mercados esta oferta de serviços vem
acompanhada de anúncios de investimentos locais para a instalação de centros de
dados destas empresas. Nos últimos dois meses, esta foi uma notícia corriqueira
na imprensa do Brasil, do Reino Unido, da Itália, da Malásia, da Índia e da
Indonésia apenas para citar alguns. Um assédio difícil de resistir.
Mesmo no caso do
Brasil, a independência, quando ocorre, parece ter tiro curto. Um bom exemplo
vem de uma declaração recente do
presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de que, em breve, o sistema
público de transferências digitais do país, o popular Pix, será vinculado à
carteira digital da Google para oferecer a funcionalidade de pagamento por
aproximação. Estamos falando de uma plataforma digital que opera 240 milhões de
transações por dia e custodia os dados de mais de 170 milhões de brasileiros e
empresas cadastradas. Ainda não foi informado publicamente quais serão as
condições em que estes ativos serão cedidos para a gigante digital e qual reuso
ela poderá fazer deles. Mas anunciar a decisão sem discuti-la com a sociedade
é, no mínimo, arriscado. Atualmente, 130 milhões de brasileiros possuem contas
digitais.
·
2. Apetite por dados
Neste assédio
subjacente ao conceito de DPIs, reside uma necessidade estratégica que as big
techs possuem pelo acesso, uso e reuso de informações públicas e
pessoais custodiadas pelo Estado. Ativos estratégicos, de valor financeiro e
econômico ainda não estimado pela maior parte das nações, os dados são uma
porta de entrada para impulsionar diversos negócios e gerar vantagens
competitivas em relação à concorrência nos mercados digitais. Por isso, a
tendência conhecida como G2B (government-to-business), uma via de mão
única, está muito presente nos discursos destas companhias quando os assuntos
são dados abertos e seu livre fluxo.
Parece uma postura
natural dada a enorme vantagem que esse tipo de modelo pode proporcionar. Por
exemplo, uma empresa de tecnologia com acesso aos dados do Sistema Único de
Saúde possui um diferencial considerável para desenvolver novas aplicações
nesta área e retornar ao Poder Público ofertando serviços quase personalizados.
O mesmo se dá no setor financeiro com uma empresa acessando a base de dados do
Pix e gerando informação para o desenvolvimento de sistemas de análise de
crédito e de risco, tendências de consumo de serviços e aquisição de produtos e
até mesmo mobilidade de clientes.
Dificilmente, porém,
seus executivos aceitam conversar quando se coloca na mesa a contribuição de
suas empresas ao ecossistema nacional de dados. O B2G (business-to-government)
permitiria ao Poder Público ter informações precisas para orientar suas
políticas públicas e outras ações que visem ampliar a qualidade dos seus
serviços ou orientar a tomada de decisão. Como sustenta o presidente do
IBGE, Márcio Pochmann, ter estes dados – principalmente os coletados por meio
de plataformas de mídias sociais – seria como realizar um censo diário e em
tempo real no Brasil.
Os esforços das big
techs para garantir acesso aos dados de governo sem grandes custos de
transação estão por trás de diversas iniciativas globais voltadas à abertura de
informações públicas, interoperabilidade de bases governamentais e o uso e
reuso de dados para o bem (no conceito de data for good). Algo que é meritório a princípio pode ser nocivo à sociedade
se não houver salvaguardas regulatórias e algum tipo de contrapartida, talvez
na linha do B2G. Somente no caso da plataforma Gov.br, administrada
pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, são mais de 150
milhões de usuários cadastrados, quase o mesmo número do Pix.
·
3. IA: entre a concentração e o legado
Este segundo fator da
transformação digital se relaciona diretamente com outro bastante em voga
atualmente no seio das estruturas das administrações públicas federal,
estaduais e municipais. Trata-se da adoção de sistemas de inteligência
artificial nos mais diferentes projetos de políticas públicas, processos
administrativos e serviços. O hype criado pelas grandes
empresas de tecnologia e consultorias privadas empurra os servidores e
dirigentes a um efeito-manada que leva a uma adoção acrítica e acelerada da
estrutura e dos modelos que suportam as plataformas de IA já dominadas
pelas big techs.
Este fenômeno é o
exemplo perfeito de como toda esta estratégia se complementa. Intensiva usuária
de dados, a IA está batendo no seu limite em termos do “arrastão” por conteúdo
promovido na web para a coleta gratuita de informações, que
foram a base do treinamento dos grandes modelos de linguagem dos cinco
principais conglomerados digitais. De outro lado, o tamanho destas bases de
dados e sua demanda por alta capacidade de processamento leva os governos a
contratar as nuvens soberanas para realizar seus experimentos uma vez que se
torna mais acessível para um Estado com escassos recursos orçamentários
adquirir uma solução de nuvem que já embute um serviço de IA para o
desenvolvimento de aplicações. Como não existe qualquer análise de impacto que
leve em conta estes fatores estruturais e as relações sistêmicas presentes no
ecossistema digital, algo inédito se comparados à aquisição de outros produtos
e serviços, as contratações não são sopesadas do ponto-de-vista concorrencial,
de conteúdo nacional e do custo que o legado e dependência tecnológica
representarão no futuro.
Ao fim do dia, temos
dezenas de iniciativas empolgantes sendo desenvolvidas no Executivo Federal, no
Judiciário e no Legislativo das quais muitas utilizam as plataformas de IA
estrangeiras hegemônicas atreladas a seus serviços de nuvem, incluindo aplicações
para armazenamento de informações sensíveis do Estado e comunicações
estratégicas realizadas por meio de sistemas de conferência e mensageria
privados. Em um evento da Microsoft realizado em março, o MGI informou que o
Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação (SISP), que é
formado por mais de 250 órgãos públicos, havia mapeado a existência de projetos
de IA em 33 órgãos federais, com 73 projetos em produção e outros 119 em
desenvolvimento.
Além do risco
geopolítico vinculado à questão de defesa nacional, parece claro que este
fenômeno resultará em uma situação de dependência muito semelhante de quando,
no primeiro Governo Lula, tentou-se implementar soluções de software livre que
esbarraram em uma cultura já arraigada de uso de aplicações proprietárias
fornecidas por empresas como a de Bill Gates. Por mais que as interfaces de uso
fossem praticamente idênticas, os servidores públicos rejeitavam a adoção de
ferramentas que não aquelas aonde foram inicialmente alfabetizados.
Experiência muito
similar foi vivida no primeiro Governo de Dilma Rousseff quando tentou-se
implementar o sistema de e-mails Expresso, provido pelo Serviço Federal de
Processamento de Dados (Serpro), após as denúncias de espionagem da presidente
da República e de empresas estatais realizadas por agências dos Estados Unidos
com o uso destas ferramentas digitais, no escândalo global revelado pelo
analista Edward Snowden. Na primeira oportunidade política, e com argumentos
sempre centrados em preço e conveniência, a burocracia voltou a sentar com
as big techs para fechar contratos milionários que até hoje
são mantidos. Como se vê, discutir transformação digital do Estado é também
enfrentar a questão da captura, das portas giratórias e do shady
lobbying na administração pública.
·
Uma transformação soberana
Olhando para esta
realidade, parece razoável considerar os argumentos que colocam a política
industrial como um motor para realizar esta transformação digital de forma mais
independente. A quebra desta relação de dependência e o direcionamento dos
orçamentos públicos bilionários destinados à contratação de produtos e serviços
digitais são ações fundamentais para não apenas escapar destas armadilhas, mas
também constituir ecossistemas digitais nacionais que aos poucos possam quebrar
estas amarras e desenvolverem algum tipo de autossuficiência tecnológica e de
controle de dados. Somos o 10º maior mercado do mundo em termos de serviços
digitais e temos empresas nacionais qualificadas para este desafio.
Quando se fala em
soberania digital é importante não se contentar com o conceito e o papel que
querem limitar o Brasil e o Sul Global. Transformação digital dependente de
agentes externos é uma condição insuficiente para garantir a autodeterminação
tecnológica da agenda digital do país, que tem impactos em diversos outros
setores econômicos e mesmo na transição ecológica. Assim como China e Rússia já
vinham fazendo, o esforço das democracias europeias com seu EuroStack é
um caminho importante que se descortina. É fundamental, também, dialogar com a
Índia para inserir estas preocupações em sua agenda vinculada às DPIs com
vistas a algum tipo de coalizão que busque soberania digital real. Para ser
viável em termos de escala, uma nuvem soberana pública só pode ser um projeto
internacional. Regionalmente, uma cooperação envolvendo México, Colômbia e
Chile poderia ser outra alternativa importante para iniciar este processo de
concertação.
E o Brasil vem tendo
oportunidades de aprofundar o debate. De certa forma, este caminho foi aberto
ao longo dos trabalhos do G20 desde a presidência indiana apesar da falta de
costura entre os quatro temas no grupo de economia digital ao longo deste
ano. Colocá-lo na mesa da nova composição do Brics, de uma forma mais
estratégica e qualificada, durante a coordenação brasileira em 2025 pode ser
uma forma de atrair outros países a promoverem uma transformação digital
nacional independente dentro de suas estruturas estatais indo muito além da
mera adoção de novas tecnologias e construindo uma saída para a transformação
digital do Estado com caráter soberano e que constitua em uma alternativa à
disputa hegemônica atual no campo da agenda digital.
Fonte: Por James Görgen, em Outras Palavras
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