O julgamento dos assassinos de Marielle
Franco pelo olhar de Monica Benicio
“Eles vão ressuscitar
a Marielle pra depois matar de novo”, desabafou Monica Benicio, viúva da
vereadora Marielle Franco, oito dias antes do início do júri que condenou
Ronnie Lessa e Élcio Queiroz a 78 e 59 anos de prisão, respectivamente, no dia
31 de outubro. Por um segundo, na sala reservada às testemunhas, na
quarta-feira, 30, início do julgamento, ela quase levou ao pé da letra a
própria profecia. Ao abrirem a porta da sala onde estavam para aliviar o calor,
ouviu ecoar a voz de Marielle.
“Fernandinhaaaa, minha
amiga!”
Monica paralisou.
Ágatha Arnaus, viúva do motorista Anderson Gomes, perguntou se ela estava bem,
e a lembrou dos áudios do documentário sobre o assassinato de seus
companheiros, que seriam reproduzidos pelo Ministério Público (MP) – as duas
viraram amigas depois do atentado, unidas pela compreensão da mesma dor. “Ou é
isso, ou a Marielle acabou passar gritando aqui no corredor”, disse
Monica.
Fernanda Chaves, amiga
e ex-assessora de Marielle, estava com a vereadora no carro e sobreviveu ao
atentado. Foi a primeira a depor e falou por quase uma hora e meia, seguida por
Marinete Silva, mãe da vereadora. Uma das estratégias da acusação para convencer
os jurados a dar a maior pena aos assassinos confessos, Lessa e Queiroz, era
emocioná-los. Relembrar o lado humano das vítimas – a mãe, a filha, a esposa, o
marido, o pai – e não apenas o símbolo, a mulher política.
Por isso, Monica
também teria de depor – seria a terceira na fila. Não só falar, mas reviver a
dor daquele 14 de março de 2018. Lembrar da ausência do grande amor da sua
vida. Por seis anos e sete meses, cobrou das autoridades uma investigação
séria, rodou o mundo cobrando respostas, em busca de justiça – e em fuga do
próprio sofrimento.
As últimas semanas não
foram diferentes. Monica se jogou na campanha vitoriosa à reeleição da Câmara
dos Vereadores e relegou os pensamentos sobre o júri. Até que não deu
mais.
Na semana anterior ao
início do julgamento, pediu afastamento médico para cuidar da saúde mental.
Marcou terapia três vezes nos últimos dez dias, consultou sua psiquiatra e
ajustou os remédios de emergência. Ignorou os pedidos de entrevista e deixou
quase 2 mil mensagens sem resposta no celular. Não tinha condições emocionais
para lidar com o que representaria o júri. E simplesmente não conseguia
alcançar resposta para a principal pergunta: como se sentia na iminência da
condenação dos executores de sua esposa?
Acordou na quarta,
depois de uma hora de sono, sem vontade de ir para o primeiro evento do dia, o
Amanhecer por Marielle e Anderson, marcado para às 7 da manhã, em frente ao
Tribunal de Justiça (TJ) do Rio. Na noite anterior, havia questionado uma amiga
sobre comparecer ou não ao evento. “Politicamente é bom. Mas você é um ser
humano. E humanamente eu acho péssimo. Você sabe como funciona, no fim é você
que precisa consolar as pessoas”, disse a amiga.
Seguiu o conselho e
não compareceu. Em vez dos pagodes que costuma colocar no início do dia, ligou
a playlist “Marielle e Monica”, que preparou para embalar a leitura de seu
livro, lançado em abril deste ano. Lá estão as músicas que mais lembram o amor
das duas. Uma delas é Oração, da Banda Mais Bonita da Cidade. Em
uma de suas viagens a São Paulo, em 2017, Marielle enviou a ela um áudio
cantando trechos da música.
Estava dentro dos
planos do MP usar esse áudio durante o depoimento de Monica. Não precisou de
mídia para emocionar o júri e a plateia. Era impossível não sentir a dor de
Monica. Com uma pulseira de Marielle na mão, Monica precisou de longas pausas e
respiros para conter o choro e responder às perguntas dos promotores.
“Marielle era a amiga
que você podia ligar de madrugada porque sabia que ela ia atender, parar o que
estivesse fazendo, sair de casa de pijama, se fosse necessário, para ajudar.
Tinha muita energia e ao mesmo tempo era muito afetuosa. […] Era uma pessoa com
um poder de empatia que nunca vi. A Marielle lia a vida e a dor das pessoas com
uma generosidade, uma solidariedade muito bonita”, contou.
Nenhuma pergunta foi
tão difícil quanto relatar a falta que Marielle ainda faz na vida dela. Monica
passou dois minutos sem dizer uma palavra, tentando se recompor do choro.
“Eu lembro do primeiro
dia em que vi a Marielle, minha vida nunca mais foi a mesma. […] Eu fui fazer
pré-vestibular porque a Marielle me incentivou. Quando eu passei no vestibular,
ela foi fazer a matrícula comigo. Quando eu passei no mestrado, ela foi fazer a
matrícula comigo. Eu larguei um emprego bom em um escritório de arquitetura
porque eu queria fazer mestrado e a Marielle me incentivou […]. Eu não consigo
dizer em palavras qual o tamanho da falta. Mas essa dor da ausência que se
apresenta diariamente, ela cobre tudo, cobre todos os detalhes e, por mais que
a gente aprenda a ressignificar isso, essa dor da ausência está sempre ali.”
Foram pouco mais de 30
minutos de depoimento. Monica saiu da sala de audiência e demorou para retornar
ao Tribunal do Júri, desta vez junto à plateia. Ainda assim, quando voltou,
ainda estava visivelmente emocionada – principalmente pelo depoimento sofrido
de Ágatha. Com a morte do marido, além da saudade, a viúva de Anderson precisou
lidar sozinha com o diagnóstico de onfalocele, uma doença de má-formação do
intestino, e autismo do pequeno Arthur, filho dos dois.
“O Arthur estava
vivendo com uma mãe que estava destruída, ele não andava, não falava. Ele tem
um atraso de desenvolvimento de modo geral. Mas o Anderson não teve a
oportunidade de estar com o Arthur num momento de pai e filho mais tranquilo”,
disse Ágatha.
Após os depoimentos,
no corredor do Tribunal do Júri, as famílias se consolaram. Entre todos os
abraços, nenhum comoveu mais a viúva do que o de Luyara, filha de Marielle. As
duas se conhecem desde que a garota tinha 5 anos.
Houve um respiro,
enquanto era a vez de policiais civis e federais prestarem seus testemunhos.
Mais calma, Monica usou de uma tática que executa com maestria: mascarar a dor
com piadas e humor.
·
Os depoimentos dos
réus
No começo da noite,
Ronnie Lessa foi escolhido como o primeiro dos réus a ser interrogado, por videoconferência.
Em tom frio, como quem conta do dia em que saiu para comprar pão, Lessa narrou
com detalhes técnicos sobre como posicionou a arma para os disparos. E elogiou
o comparsa Élcio: “Missão do Élcio era triste e fez bem”.
Explicou, ainda, como
funciona a rajada automática da MP5, arma escolhida por ele para o crime. “O
tempo que o senhor segura o gatilho vai ficar saindo a munição, se segurar até
esgotar do carregador vai…”
Na tentativa de
convencer os jurados a livrá-lo dos agravantes de dolo (com intenção de matar)
pela morte de Anderson e da tentativa de homicídio de Fernanda, que poderiam
aumentar sua pena, Lessa argumentou que queria matar só Marielle. Mas ele mesmo
se complicou. “Tentei concentrar ao máximo no alvo, que era a Marielle. Mas
sabia que a arma [uma submetralhadora MP5, de calibre 9 milímetros] não era
adequada para isso. Se fosse um revólver, só a vereadora teria morrido.”
Os promotores não
deram espaço para as desculpas de Lessa. Questionaram por que, então, o
executor havia escolhido uma metralhadora automática, com munição extremamente
perfurante (9 milímetros).
“O senhor escolheu
usar uma MP5, o senhor escolheu usar o calibre 9 milímetros, o senhor escolheu
usar no modo full auto, um acionamento do gatilho até esgotar o
carregador, o senhor tinha visão do que acontecia dentro do carro, porque o
senhor estava emparelhado e o vidro foi estilhaçado com os disparos, e mesmo
assim o senhor sustenta que só tinha intenção de matar a Marielle? Que com o
Anderson, o senhor e o Élcio só assumiram o risco. E que com a Fernanda nem
sequer isso. É isso que o senhor nos quer fazer acreditar?” Lessa argumentou
que a arma só funciona até esgotar “se houver necessidade” e que apenas um
acionamento já dispararia muitos tiros.
“Mas o senhor sabia
disso?” “Sabia”, disse Lessa.
A cena daquela noite
só piorou ao longo do depoimento. O defensor público Fabio Amado retomou a fala
de Lessa sobre se concentrar em Marielle.
— “O senhor disse que
tentou concentrar ao máximo no alvo. O senhor tentou focar na cabeça da
Marielle?”
— “Doutor… o
homicídio… é… você vai escolher peito ou cabeça.”
— “Focou na cabeça
dela?”
— “Foquei.”
Ao lado de amigos,
Monica sucumbiu à frieza de Lessa, à visualização da cena. E voltou, mais uma
vez, para 2018. Quando uma amiga perguntou se ela queria algo, murmurou que
“queria matar Ronnie Lessa”. “Eu chorei tanto quanto no dia 15 de março”,
relembrou no dia seguinte.
Duas horas e meia
depois, lá pelas 21h, seria a vez de Queiroz. Monica se retirou da plateia e
ficou nos corredores, sentada ao lado de amigos. Não ouviu uma palavra sequer
do depoimento de Élcio. “Ele, eu já vi falando as mesmas coisas no outro
depoimento. E eu já ouvi, cumpri minha missão ouvindo o Lessa, tá ótimo.”
Lá dentro, o MP
pressionava Élcio sobre os motivos de não ter desistido da empreitada – ou de
demover Lessa do plano. Em depoimento, o ex-PM chegou a afirmar que pensou em
desistir, enquanto perseguia o carro de Anderson. Segundo ele, no fim de 2017,
Lessa contou que outro motorista – Maxwell Simões Corrêa, preso por
envolvimento no assassinato de Marielle e Anderson – havia voltado atrás, o que
havia gerado raiva em Ronnie Lessa. E que, de alguma forma, colocaria sua vida
em risco se não concluísse a empreitada criminosa.
— “Quando o senhor
soube do refugo, suposto refugo do Maxwell?”, questionou o promotor.
— “No ano novo”,
respondeu Élcio.
— “O Maxwell tava
vivo?”
Élcio pareceu não
entender a motivação da pergunta. Balbuciou que sim.
— “E ele ainda está
vivo?”
— “Sim.”
— “Sem mais.”
Passava da meia-noite,
e a expectativa era que o júri rolasse madrugada adentro, até sair a sentença
final. Mas a juíza Lúcia Glioche, do 4º Tribunal do Júri, consultou os jurados
e decidiu suspender a sessão até às oito da manhã.
·
O dia da sentença
Monica chegou ao TJ
ansiosa, falando sem parar. Quando perguntei se havia tomado algum remédio para
se manter ligada daquele jeito, ela negou. “Ainda vou tomar meu alprazolam, por
isso tô assim.” Os remédios são receitados pela psiquiatra da vereadora.
Seria um dia
relativamente mais leve aos familiares, com a expectativa de, enfim, ver os
réus condenados – e sem passarem pelos depoimentos. Aquele era o momento de
acusação e defesa defenderem suas teses. A primeira queria convencer o júri a
culpá-los pela emboscada, motivo torpe, interceptação (por conta do uso de
veículo clonado), homicídio culposo de Marielle e Anderson, e tentativa de
homicídio de Fernanda. Já a defesa dos réus queria aliviar a pena.
Mas não foi tão fácil
assim. De pé, próxima à porta de entrada da plateia do júri, Monica assiste à
exibição do vídeo que reproduz o áudio enviado por Fernanda Chaves ao marido,
logo após sair, desesperada, do carro baleado. “Reza por mim, reza pela Marielle,
reza pelo Anderson”, dizia Fernandinha. “Esse áudio dela é muito forte”,
sussurra Monica, com os olhos marejados.
Na parte final da
sustentação da acusação, duas horas e meia após o início da sessão, o clima de
choro tomou a sala. No telão, os advogados e defensores passaram uma série de
fotos. Ágatha grávida, ao lado de Anderson, os dois com o filho Arthur. “Pai zeloso.
O pai que essa criança perdeu… Outra foto de Anderson com o filho, felizes,
essa vai ficar só na lembrança”, narrava a defensora Daniele Silva.
As primeiras fotos de
Marielle mostravam a vida dela ao lado dos pais, da irmã e da filha. “Marielle
Francisco com sua família”, seguia a defensora. Ao longo do julgamento, a
acusação fez questão de lembrar e mencionar o nome de registro da vereadora, Marielle
Francisco da Silva, para lembrar aos jurados do lado humano, da pessoa comum
assassinada.
Quando começaram as
fotos de Marielle e Monica, a defensora fez questão de enfatizar sobre o amor
das duas. “Ali o amor de duas pessoas, interrompido violentamente.” Monica
desatou a chorar mais uma vez. A sensação na sala era de que os corpos de
Anderson e Marielle estavam sendo velados naquele momento. “Marielle presente.
Hoje e sempre”, finalizou a defensora.
As argumentações dos
dois advogados de defesa tomaram pouco mais de uma hora e a sessão foi suspensa
para almoço. Os trâmites de réplica e tréplica de defesa e acusação demoraram
pouco mais de duas horas. E por volta de cinco da tarde, o júri se reuniu na
sala secreta para decidir a sentença final.
Nos corredores, os
jornalistas disputavam o espaço. Enquanto esperava, Monica dividia sua atenção
entre um texto para ser publicado após o veredito do júri, e seu assessor,
Luciano Victorino, que corria de um lado para o outro em busca de qualquer nova
informação.
Lá pelas seis da
tarde, chegou a informação de que o júri já havia tomado sua decisão. Monica e
os outros familiares se sentaram na primeira fileira, como haviam feito durante
quase todo o julgamento. A defensora Daniele Silva voltou ao plenário com um sorriso
largo, o punho erguido e fechado: o júri havia aceitado todas as acusações.
Promotores, advogados e defensores se abraçaram.
Faltavam ainda a
contagem dos anos de prisão e a leitura final da sentença. Mas a juíza só
entraria quando nenhum dos presentes na plateia estivesse com os celulares
ligados. Os seguranças pediam desesperadamente que todos, inclusive os
jornalistas, acatassem o pedido.
Houve um momento de
tensão, quando uma mulher desconhecida insistia em segurar o aparelho. O
segurança apontou para ela e informou que “ela só vai entrar quando essa aqui
guardar o celular”. Nervosas, Marinete e Monica esbravejaram contra a mulher,
que, enfim, deixou o celular de lado.
A juíza Lúcia Glioche
iniciou a leitura mencionando o júri como um ato democrático, “democracia esta
que Marielle Franco defendia”. Monica mantinha o rosto entre as mãos, chorando.
“A sentença que será lida, agora, talvez não traga aquilo que se espera da
Justiça. Talvez justiça que tanto se falou aqui fosse que o dia de hoje jamais
tivesse ocorrido”, disse ela, se referindo à frase que Monica usou durante seu
depoimento.
Ao relembrar, durante
a leitura, que as vítimas também são os familiares, a juíza mencionou todos
nominalmente, mas se esqueceu de seu Antônio, pai de Marielle. Anielle e Luyara
o consolaram. Gafes à parte, a magistrada foi enfática ao dizer que a Justiça,
embora lenta e falha, “alcança até aqueles que, como os réus, acreditam que
nunca serão responsabilizados”.
Àquela altura, Monica
já não escutava uma palavra. Era incapaz de ouvir qualquer coisa em meio ao
choro e ao alívio de ouvir, depois 2.422 dias desde o assassinato de Marielle e
Anderson, a condenação final dos executores.
“Por isso, fica aqui
para os acusados presentes”, dizia a juíza, enquanto apontava para o tablet,
por onde via os dois réus. “E serve para os vários Ronnies e vários Élcios que
existem por aí, soltos, a seguinte mensagem: a Justiça por vezes é lenta, é cega,
é burra, é injusta, é errada, é torta, mas ela chega.”
Ronnie Lessa foi
condenado a 78 anos e 9 meses de reclusão, enquanto Élcio pegou 59 anos de
prisão e 8 meses.
Seu Antônio teve uma
crise de choro – um choro guardado por mais de seis anos. “Eu tenho o direito
de chorar, eu tenho o direito”, gritava aos prantos. Monica se dividia entre
abraços, lágrimas e sorrisos.
Na hora de caminharem
até o hall do andar, os familiares deram as mãos e foram juntos até a imprensa.
Mais tarde, num restaurante próximo a sua casa, Monica contou, emocionada, que
foi Luyara quem a chamou e cruzou seu braço com o dela e relembrou do discurso
da garota. “Ela puxou a fala, foi a primeira a falar [Marinete havia respondido
brevemente a pergunta de um jornalista]. Eu nunca tinha visto ela puxar uma
fala assim. Falei pra ela ‘minha menina cresceu!!!’, aí ela chorou.”
Há rumores de que
o Supremo Tribunal Federal (STF) quer julgar
os mandantes, Chiquinho e Domingos Brazão, ainda este
ano. Seria o alívio final para os familiares. “Já pensou se meu 2018 termina em
2024?”, brinda Monica.
Fonte: Por Carol
Castro, da Agência Pública
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