Guilherme Paladino: ‘O que propõe a China
com a Nova Rota da Seda, da qual o Brasil hesita em fazer parte?’
O noticiário relacionado
à política externa brasileira ficou agitado desde a publicação, pelo jornal O
Globo, de uma entrevista com o assessor especial do presidente Lula para assuntos
internacionais, Celso Amorim, sobre a adesão ou não do Brasil à iniciativa
chinesa do Cinturão e Rota – também conhecida como a “Nova Rota da Seda”, em
referência às rotas comerciais desenvolvidas há mais de 2 mil anos para
interligar Ásia e Europa.
Há certo tempo, existe
uma expectativa dentro de parte da esquerda brasileira por uma intensificação
dos laços com a China e pela integração ao projeto internacional coordenado por
Xi Jinping. Tal expectativa sofreu abalos após as recentes declarações de
Amorim, que negou que o Brasil vá “entrar em um tratado de adesão” com os
chineses – apesar de ter ressaltado que o Brasil está “negociando sinergias”
com o gigante asiático e que o governo Lula propôs projetos de cooperação nas
áreas de infraestrutura, energia solar e de veículos híbridos e elétricos.
Mas, afinal, o que é o
Cinturão e Rota e qual a versão oficial do governo chinês sobre a iniciativa?
O Brasil 247 esteve presente em uma conferência em Pequim sobre o
tema, organizada pelo Centro Internacional de Imprensa e Comunicação da China
(CIPCC, na sigla em inglês), e agora mostra o que foi possível absorver da
visão do Partido Comunista Chinês (PCCh) sobre a política mais ambiciosa do
presidente Xi desde o início de seu mandato.
A NOVA
ROTA DA SEDA
A iniciativa foi
proposta ainda no primeiro ano de Xi como presidente, durante visitas ao
Cazaquistão e à Indonésia, em setembro e outubro de 2013, respectivamente. Em
um discurso na Universidade Nazarbayev, naquela ocasião, o líder chinês afirmou
que “devemos adotar um modelo de cooperação inovador para construir
conjuntamente a Faixa Econômica da Rota da Seda”. Menos de um mês depois, ao
parlamento nacional da Indonésia, cunhou o termo “Rota Marítima da Seda do
Século XXI”.
De lá para cá, o
projeto saiu do papel, ganhou corpo e até um nome oficial (‘Cinturão e Rota’).
Em uma década, foram firmados mais de 200 convênios de cooperação com 152
países e 32 organizações internacionais, gerando mais de 3 mil projetos de
cooperação e envolvendo investimentos de mais de 1 trilhão de dólares. Em
relação ao conteúdo principal da iniciativa, o governo chinês o define por meio
do conceito de “cinco conectividades”, a saber:
- Coordenação de políticas
- Conectividade de instalações
- Comércio sem barreiras
- Integração financeira
- União da vontade dos povos
Tais pontos são
considerados essenciais pelos chineses, de tal forma que afirmam que a Nova
Rota da Seda está “aberta tanto aos países como às organizações internacionais
e regionais comprometidos com a iniciativa em todos os campos”.
E vale destacar que a
formalização da parceria no âmbito do Cinturão e Rota exige, de fato, a
assinatura de um memorando de entendimento por parte do país interessado. O
documento, no entanto, tem um caráter mais simbólico e menos normativo, não
estipulando obrigações específicas ou sanções caso um dos países deseje
encerrar o vínculo – apenas há disposições relacionadas ao compromisso dos
países em aumentar sua cooperação em diferentes áreas em um período de cinco
anos, que pode ser renovado caso esta seja a vontade de ambas as partes. Os
documentos, inclusive, são públicos.
INFRAESTRUTURA
COMO PONTO CHAVE
Entre os cinco tópicos
acima destacados, o mais reconhecido internacionalmente é o da conectividade de
instalações, referente aos investimentos chineses na área da infraestrutura dos
países que compõem o Cinturão e Rota. Como seu ‘marco básico’, a iniciativa
propunha a criação de “6 rotas e 6 corredores”, conectando o gigante asiático
por meio dos corredores China-Paquistão; China-Mongólia-Rússia; China-Península
da Indochina; Bangladesh-China-Índia-Myanmar; China-Ásia Central-Ásia
Ocidental; e a Nova Ponte Terrestre da Eurásia.
Os projetos de
infraestrutura envolvem vias ferroviárias (como as de China-Laos,
China-Tailândia, Jakarta-Bandung e Hungria-Sérvia), portos (como os
de Gwadar, no Paquistão; Hambantota, no Sri Lanka; Pireu, na Grécia e Khalifa,
nos Emirados Árabes), energia (como o oleoduto de petróleo bruto
China-Rússia, gasoduto China-Ásia Central e dutos de gás e petróleo
China-Mianmar) e linhas aéreas (com a Rota da Seda Aérea firmando
convênios bilaterais de transporte aéreo com 126 países e regiões). Até
setembro de 2022, estavam estabelecidas 94 linhas marítimas com a denominação
da Rota da Seda, conectando 108 portos de 31 países.
AVANÇOS EM
DIREÇÃO À AMÉRICA LATINA
No ano seguinte ao
anúncio da pretensão de construir uma Nova Rota da Seda, o governo chinês
passou a direcionar cada vez mais suas atenções à América Latina e ao Caribe.
Entre 2014 e 2016
foram anunciadas iniciativas como a ‘Associação de Cooperação Integral entre
China e América Latina de Igualdade, Benefício Mutuo e Desenvolvimento Comum’ e
o lançamento, pelo Ministério de Relações Exteriores chinês, do segundo “Documento
sobre a Política da China para a América Latina e o Caribe”. Já em 2017,
iniciou-se oficialmente a cooperação no âmbito do Cinturão e Rota entre as
regiões, com a entrada do Panamá na iniciativa.
Desde então, outros 21
países da América Latina e Caribe assinaram memorandos de entendimento para
aderir ao Cinturão e Rota. A lista completa, por ordem de entrada, pode ser
conferida a seguir:
- Panamá (novembro de 2017)
- Suriname (maio de 2018)
- Trinidad e Tobago (maio de 2018)
- Bolívia (junho de 2018)
- Antígua e Barbuda (junho de 2018)
- Guiana (julho de 2018)
- Dominica (julho de 2018)
- Uruguai (agosto de 2018)
- Costa Rica (setembro de 2018)
- Granada (setembro de 2018)
- Venezuela (setembro de 2018)
- El Salvador (novembro de 2018)
- República Dominicana (novembro de 2018)
- Cuba (novembro de 2018)
- Chile (novembro de 2018)
- Equador (dezembro de 2018)
- Barbados (fevereiro de 2019)
- Peru (abril de 2019)
- Jamaica (abril de 2019)
- Nicarágua (janeiro de 2022)
- Argentina (fevereiro de 2022)
- Honduras (junho de 2023)
As principais áreas a
serem desenvolvidas na cooperação América Latina/Caribe-China são a
agricultura, mineração, energia e indústria, com parcerias em infraestrutura e
tecnologia. Os chineses apresentam, com orgulho, participações em projetos como
o megaporto de Chancay no Peru, a quarta ponte sobre o Canal do Panamá e a
Usina Solar Cauchari na Argentina – uma das maiores estações de energia
fotovoltaica da América do Sul.
Todos estes contatos
com a América também tiveram como consequência um maior fluxo de pessoas entre
as regiões – em uma anedota: atualmente, pode ser mais fácil para um jornalista
brasileiro encontrar um nicaraguense ou um hondurenho em Pequim do que em São
Paulo, dado o grande número de programas internacionais na capital chinesa
voltados aos países da América Central. As consequências econômicas também são
relevantes: em 2018, a China tornou-se a segunda maior parceira comercial da
América Latina e, entre 2000 e 2023, o comércio entre as partes cresceu de US$
12 bilhões para US$ 310 bilhões.
O QUE OS
CHINESES PEDEM?
Ainda existe um certo
temor no Brasil em relação às exigências para fazer parte do Cinturão e Rota,
como se aderir à iniciativa fosse o mesmo que assinar um vínculo de dependência
e subordinação ao poderio econômico e à influência política da China.
Contudo, como já
demonstrado anteriormente, o que o governo chinês pede é um comprometimento
diplomático com a cooperação em múltiplos campos. Na prática, assim que um país
adere à Nova Rota da Seda, ele sinaliza estar disposto a abrir suas portas para
receber empresas e indústrias chinesas, que irão passar a investir na
construção de infraestrutura em âmbito local, a fim de criar novos portos,
ferrovias, estradas, estruturas para mineração, etc.
Por um lado, pode
haver uma desvantagem para as indústrias e empresas locais dos países que
aderem ao Cinturão e Rota, porque é praticamente impossível competir com o
poderio chinês neste sentido. Além disso, também há preocupações em alguns
países quanto ao aumento do endividamento com a China, dado que outra parte
essencial da iniciativa se dá por meio do financiamento feito – em grandes
volumes – por bancos chineses às obras de infraestrutura desenvolvidas.
Por outro lado, a
proposta chinesa para a Nova Rota da Seda também surge como uma oportunidade
interessante para um incremento significativo na infraestrutura de países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Aderir à
iniciativa traria como consequência, por exemplo, já no curto e médio prazo, um
fortalecimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula,
impulsionando o setor de construção civil no Brasil, com a geração de novos
empregos e a possibilidade de inaugurar mais obras de melhorias em estradas e
ferrovias. E, apesar das preocupações de com o endividamento, os chineses
afirmam que o financiamento oferecido por seus bancos está sempre abaixo do
preço do mercado.
O governo chinês
assegura o cumprimento dos três princípios fundamentais de ‘Consulta
Conjunta’ (respeito às diferenças em nível de desenvolvimento, leis e
legislações, ambiente comercial, tradições e culturas), ‘Construção
Conjunta’ (participação de todas as partes, adaptando-se às estratégias
nacionais e regionais de desenvolvimento)
e ‘Compartilhamento’ (benefício mútuo e ganho compartilhado). Segundo
o presidente Xi, “embora o Cinturão e Rota tenha sido proposto pela China, as
oportunidades e os êxitos que gera pertencem ao mundo inteiro”.
A ADESÃO
OU NÃO DO BRASIL
Dado o tamanho do
projeto – tanto em ambição quanto em consequências práticas – o governo
brasileiro segue estudando as possibilidades antes de tomar uma posição
concreta. Os sinais dados por Celso Amorim vão no sentido de uma tentativa de
construir uma parceria mais sólida, mas sem a necessidade de uma formalização
de adesão a um determinado projeto, como o Cinturão e Rota.
É possível inferir que
o mais interessante para o governo chinês seria a entrada do Brasil de maneira
oficial na iniciativa, pelo significado político que tal decisão também teria:
o maior e mais rico país da América do Sul se juntando ao grupo formal de
amigos da China representaria uma derrota no poder de influência dos Estados
Unidos em seu próprio quintal. No entanto, a tradição diplomática brasileira de
manter neutralidade em meio às grandes tensões geopolíticas segue sendo levada
em conta.
Além disso, como diz
Amorim, o governo brasileiro também buscará o que for melhor para sua
indústria, economia e desenvolvimento. Tudo é sintetizado em sua resposta na
entrevista recente ao Globo: “eles (os chineses) falam sobre cinturão, mas não
é uma questão de aderir. Eles dão os nomes que eles quiserem para o lado deles,
mas o que interessa é que são projetos que o Brasil definiu e que serão aceitos
ou não”.
Fonte: Brasil 247
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