Pix será tecnologia do futuro no BRICS?
Experiência brasileira no novo sistema de pagamento do grupo
No próximo ano, o
Brasil assume a presidência rotativa do BRICS, em meio a fortes expectativas
sobre os projetos que devem ser liderados pelo país. O chanceler brasileiro,
Mauro Vieira, já deu uma pista: o novo sistema de pagamento internacional entre
os países-membros. Especialistas apontam que uma tecnologia financeira nacional
pode ser crucial.
Em novembro de 2020,
era lançado no Brasil um novo sistema de pagamento instantâneo que iniciaria
uma revolução financeira até então inimaginável no Brasil: o Pix. Mas os
estudos para o Banco Central viabilizar a ferramenta começaram bem antes, em
2016, ainda durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB). Na época, a
equipe técnica produziu o primeiro relatório sobre possíveis desenhos de novas
plataformas de pagamento mais ágeis que as existentes até então, como o DOC e o
TED, que, dependendo da situação, levavam um prazo superior a 24 horas para
efetuar transferências.
No trimestre anterior
ao do lançamento, o maior volume de transações no país era através do cartão de
débito (25% do total), seguido pelo cartão de crédito (19%). Passados quatro
anos, o cenário é totalmente diferente: o Pix foi o método usado em 45% das
movimentações financeiras do Brasil no segundo trimestre do ano, muito à frente
do segundo colocado, que foi o cartão de crédito. Em setembro, o sistema ainda
bateu um recorde de 227 milhões de transações em um único dia, o que mostra a
robustez da ferramenta.
Em meio a todo o
sucesso e inovação trazido pelo Pix, a criação de um novo sistema de pagamento
internacional será justamente um dos focos do Brasil à frente da presidência
rotativa do BRICS em 2025, conforme adiantou o ministro das Relações Exteriores
Mauro Vieira durante a cúpula dos chefes de Estado do grupo em Kazan, na
Rússia. Essa experiência brasileira será fundamental no processo? Para a
economista e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Carla Beni, sim.
"O trabalho
realizado com o Pix é fundamental inclusive para essa cooperação do Brasil com
a criação do sistema de pagamentos [do BRICS]. Vendo o gráfico da evolução do
uso da nossa ferramenta financeira, há uma guinada [ao longo do tempo]. É um
volume muito superior em termos de operações [do que] quando você pega saque,
boleto, TED e cartões de débito ou crédito. O Pix é de longe o número 1",
pontua à Sputnik Brasil.
Além disso, a
especialista observa que cada vez mais o mundo vê como as sanções aplicadas
pelos Estados Unidos contra os países são danosas. Com um sistema próprio
baseado, por exemplo, no Pix, os efeitos de medidas como essas seriam bastante
minimizados.
"O papel do
Brasil nessa cooperação é crucial, e a ideia de ter um sistema de pagamentos
internacional na estrutura do BRICS é muito importante. O país liderar esse
processo pode ter um ganho internacional e uma representatividade enorme, com
vários ganhos para todas as nações envolvidas", acrescenta.
A especialista
acrescenta que uma das principais barreiras para a implantação de um sistema de
pagamentos internacional é justamente a tecnológica, que, segundo ela, não
parece ser um problema entre os membros do BRICS. O processo pode se tornar
ainda menos desafiador diante da digitalização, em andamento, das moedas dos
países-membros, como o Drex (projeto de moeda digital do Brasil que ainda será
lançado) e o modelo de carteira digital que já existe na China há mais de dez
anos.
"Tirando essa
questão tecnológica, passamos a ter os arranjos e combinações políticas, que
também são questões difíceis no processo de implementação. Mas acredito que
estamos [o BRICS] em um patamar muito avançado em termos de tecnologia e
diplomacia [entre os países]", argumenta.
<><> Tem
Pix em outros países?
Sim, outros países
contam com sistemas de pagamento instantâneo aos moldes do Pix, apesar de cada
um ter a sua particularidade. Um levantamento da ACI Worldwide, empresa de
software de pagamentos em tempo real, mostrou que os países do Sul Global já
lideram esse mercado: em primeiro lugar aparece a Índia, parceira do Brasil no
BRICS, com 49% das transações mundiais, seguida por Brasil (14%), Tailândia
(8%) e China (7%).
A professora da FGV
explica que o sucesso da ferramenta brasileira também está ligado à
bancarização da população do país no pós-pandemia. Antes, cerca de 40% das
pessoas não possuíam uma conta bancária, índice que atualmente é inferior a
18%, conforme o Banco Central.
"Na pandemia, era
necessário ter uma conta para receber o Auxílio Emergencial, por exemplo, o que
posteriormente facilitou muito o processo para as pessoas fazerem essa
movimentação via Pix. Mas a aderência foi surpreendente, já que a população
brasileira, independentemente das questões de diferenças educacionais, sociais,
tecnológicas e de desconfiança do sistema financeiro, teve uma adesão enorme
[ao sistema] por conta da rapidez das transações. E o Pix se mostrou uma
ferramenta democrática", afirma.
Para além dessa
característica crucial para o BRICS, o coordenador do Núcleo de Estudos
Empresariais e Sociais (NEES), da Universidade Federal Fluminense (UFF),
professor Marco Aurélio dos Santos Sanfins, explica à Sputnik Brasil outro
trunfo do país a partir do Pix que pode ajudar e muito na implantação do novo
sistema pelo grupo: a ferramenta brasileira não exige um banco para intermediar
o pagamento entre dois usuários.
"Basicamente há
uma criptografia que faz com que o dinheiro saia de uma conta e vá para outra
através de um sistema centralizado no Banco Central. Esse é o grande sucesso do
Pix […] Isso permite uma facilidade extrema, por não ter necessidade de um intermediador
financeiro para que a operação ocorra. Os bancos centrais do BRICS já se
comunicam bastante, e acredito que existam entendimentos, porque o grupo tem
sido muito amigável em seus intercâmbios e cooperação tecnológica. Acredito que
deve vir coisa boa e inovadora por aí, e o Brasil com certeza vai ajudar [a
liderar esse movimento]. O Pix mostra o quanto o sistema financeiro brasileiro
é avançado, é um dos melhores do mundo", explica o especialista.
<><> Qual
é o maior desafio para criar um sistema internacional de pagamentos?
Atualmente, o sistema
de pagamento internacional mais utilizado é o SWIFT, criado em 1973 e que
conecta mais de 11 mil instituições financeiras em 200 países e territórios.
Porém a intensificação de sanções econômicas impostas por aliados ocidentais a
países considerados rivais do momento foi afetando cada vez mais a
credibilidade da ferramenta, que pode excluir uma nação a depender da vontade
dos Estados Unidos e seus parceiros. É nesse contexto que cresceram as
discussões no BRICS sobre uma alternativa.
O professor da UFF
considera um importante desafio na construção dessa alternativa a própria
diversidade de tributos cobrados por cada país nas importações e exportações.
"Criar um sistema
de pagamento internacional, mesmo baseado no Pix, para que as transações sejam
mais rápidas e eficientes não é algo tão simples de ser desenvolvido,
principalmente por todo o arcabouço tributário que existe entre importações e
exportações e também pela paridade de cada uma dessas moedas com relação aos
membros do BRICS e em relação ao dólar. Porém acredito que com grandes estudos
e pesquisas tudo isso pode ser superado", destaca.
Conforme o
especialista, quando o sistema estiver pronto, o grupo será muito mais forte e
menos propenso às oscilações e crises mundiais, além de não depender tanto do
dólar, atualmente usado como arma política pelo governo norte-americano para
atender aos seus próprios interesses.
¨
Os desafios dos e para
os BRICS. Por Flávio Aguiar
Além das duas
principais guerras em curso, a na Ucrânia e a no Oriente Médio, durante a
semana passada o noticiário e os comentários na mídia internacional ocuparam-se
significativamente com a reunião de cúpula dos BRICS em Kazan, na Rússia, sob a
presidência do governo de Moscou.
Para além das
declarações contidas no documento conjunto final, já esperadas, falando em paz,
manifestando preocupações humanitárias sobre Gaza e a Cisjordânia, condenando a
expansão regional do conflito no Oriente Médio por parte de Israel, sugerindo a
construção de uma nova ordem econômica mundial, a reunião deixou como saldo
algumas evidências muito significativas.
A primeira é que a
Rússia não está tão isolada quanto os Estados Unidos e seus aliados gostariam
que estivesse. Aliás, ela pode estar isolada em relação aos países do “Ocidente
ampliado”, mas fora deste círculo as sanções contra ela não encontram apoio. Pelo
contrário, o restante do mundo ou as ignora, ou as condena, nem que seja como
impróprias.
A segunda é que
cresceu bastante o interesse por parte de outros países em entrar ou se manter
próximos ao grupo. Além dos quatro países fundadores do grupo, Brasil, Rússia,
Índia e China, e da África do Sul que nele foi admitida em 2010, os BRICS agora
incluem como membros plenos ou convidados nesta qualidade, mais 5 países:
Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e o Irã. E há dezenas de
países interessados em ingressar ou se associar ao grupo, com destaque para a
Turquia, que é membro da OTAN, organização que apoia a Ucrânia contra a Rússia,
e da Sérvia, que também está se candidatando a entrar para a União Europeia,
que tem a mesma posição da OTAN naquela guerra.
A cúpula deste ano
convidou mais 13 países a integrar o grupo na condição de Estados Parceiros,
isto é, sem direito a veto nem voto: Cuba, Bolívia, Nigéria, Uganda, Tailândia,
Vietnã, Indonésia, Argélia, Bielorrússia (também chamada de Belarus), Malásia,
Uzbequistão, Cazaquistão e a já mencionada Turquia.
Ficou também evidente
a força da posição brasileira no grupo. Rússia e China manifestaram desejo de
incluir a Venezuela no convite. O Brasil vetou e os demais países aceitaram
este veto sem reclamação. A posição do governo brasileiro é controversa mesmo entre
seus apoiadores. Muitos destes defendem que o Brasil deveria apoiar
incondicionalmente a entrada da Venezuela no grupo, O assessor da presidência
brasileira, Celso Amorim, declarou que houve uma ruptura da confiança entre os
dois governos.
O fato é que Brasília
e Caracas já vinham trocando farpas diplomáticas há algum tempo. O Brasil ainda
não reconheceu a reeleição de Nicolás Maduro na presidência, alegando que as
atas eleitorais não vieram a público, ao contrário do que ele prometera. E o
Procurador-Geral da Venezuela, Tarek William Saab, acusou o presidente Lula de
“ser um agente da CIA, cooptado enquanto esteve preso”. O Ministério de
Relações Exteriores venezuelano apressou-se a não endossar a acusação.
Mas o Procurador-Geral
voltou à carga, dizendo que o presidente brasileiro forjara a versão de seu
acidente doméstico como pretexto para não comparecer à cúpula.
Para este articulista
a questão é espinhosa e a tensão só será resolvida por gestos de reciprocidade
diplomática. Ela envolve outros aspectos, como o fato do Brasil ter assumido a
administração e a proteção da embaixada da Argentina em Caracas, depois que a
relação entre esta e Buenos Aires entrou em colapso depois que o presidente
Javier Milei ordenou a entrega de um avião venezuelano aos Estados Unidos.
O interesse mundial
pelo projeto dos BRICS cresceu muito desde que os Estados Unidos e seus aliados
próximos, como a União Europeia, começaram a utilizar o sistema internacional
de pagamentos e de manutenção das reservas financeiras em dólares norte-americanos
para punir quem considerem adversários ou inimigos através de sanções
econômicas, como no caso da Rússia.
Esta teve reservas
internacionais congeladas e reaplicadas no mercado financeiro pelos agentes que
as detém, para seus dividendos servirem como garantia a empréstimos à sua
inimiga, a Ucrânia. Antes desta decisão ser tomada, divulgou-se que chegou-se a
considerar o confisco puro e simples das reservas russas. E como parte desta
versão também se divulgou a de que quem impediu o confisco foi o FMI, alegando
que este gesto provocaria um pânico sem limites no mercado internacional.
De todo modo, a
aplicação dos recursos na roleta financeira sem o consentimento de seu
proprietário e seu uso como garantia de um empréstimo a terceiro não deixa de
constituir um gesto pós-moderno de pirataria.
A própria insegurança
gerada pela guerra na Ucrânia e pelo conflito no Oriente Médio também
contribuiu para acrescer o interesse pelos projetos dos BRICS.
Um dos projetos
centrais dos BRICS é a criação de um sistema paralelo, independente do dólar,
para as transações internacionais dos países membros e outros interessados.
Isto é um claro
desafio à hegemonia financeira mundial dos Estados Unidos e de seus aliados
próximos, mantida através da hegemonia do dólar como meio de pagamento desde a
conferência de Bretton Woods, em 1944, que também criou o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial.
Naquele tempo a garantia
do dólar eram as reservas em ouro dos Estados Unidos. O governo Nixon, no
começo dos anos setenta do século passado, aboliu a conversibilidade do dólar
em ouro. A moeda norte-americana tornou-se “fiduciária”, no jargão financeiro,
isto é, mantida tão somente pela confiança dos usuários na credibilidade de seu
emissor.
Ao mesmo tempo, a
proposta de uma moeda nova como meio de pagamento internacional é um desafio
para o próprio grupo dos BRICS, pois a criação de um tal sistema paralelo
demanda uma engenharia financeira de grande monta e de longo prazo.
Embora a hegemonia do
dólar submeta o sistema financeiro aos Estados Unidos, que emite a moeda, e
seus aliados próximos do Ocidente, ela garante uma certa estabilidade nas
transações internacionais que, de outro modo, estariam sujeitas às inúmeras
variações cambiais e demais intempéries das outras moedas nacionais.
O sucesso deste
projeto dos BRICS depende, portanto, da construção de um meio de pagamento
alternativo, mesmo que seja inteiramente virtual, reconhecido por todos os
interessados. Não teria sentido substituir a hegemonia do dólar pela de uma
outra moeda nacional, como o renmimbi chinês, muitas vezes chamado pelo nome de
sua unidade, yuan, de pronúncia mais fácil. Lembro a moeda chinesa porque a
China é, dentre os BRICS, a economia mais pujante.
A criação, emissão e
administração desta moeda ou meio de pagamento virtual, que não substituiria as
moedas nacionais, mas correria paralelamente a elas, como faz o dólar
norte-americano, caberia ao Banco dos BRICS, hoje presidido pela ex-presidenta
Dilma Rousseff ou a um outro organismo especialmente criado para este fim.
Dada a heterogeneidade
dos países membros e/ou na mira dos BRICS, esta tarefa não será de fácil
execução. Esta heterogeneidade é o ponto forte do projeto BRICS, apontando para
um mundo de fato multipolar. Mas é também um complicador, exigindo, mais do que
uma engenharia financeira, uma arquitetura política de grande sofisticação. Sem
falar que certamente haverá resistências e possíveis retaliações por parte de
quem detém a atual hegemonia, isto é, os Estados Unidos. A ver.
Fonte: Sputnik
Brasil/A Terra é Redonda
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