segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Queimadas atingem ‘floresta do futuro’ e deixam terras indígenas mais secas

AO VOLTAR DE UMA CAÇADA, o pai de Mydjere contou que nunca tinha visto a floresta tão seca. “Debaixo das árvores as folhas estão muito secas, meu filho. Se pegar fogo aqui, vai queimar tudo”, previu. Não deu outra. Duas semanas depois, a Terra Indígena Baú, no sul do Pará, viu as chamas destruírem parte do território. Era final de agosto.

“Eu nunca tinha visto uma queimada como aquela. A gente ficou até assustado”, relata Mydjere Kayapó Mekrangnotire, liderança do povo Kayapó Mekrãgnotí, que vive entre os rios Xingu e Tapajós e próximo da BR-163, uma das regiões mais queimadas do país neste ano.

Ele conta que ficou surpreso ao ver como o fogo queimava a floresta por baixo, poupando as árvores mais altas, mas levando tudo o que via pela frente. “Perdemos muito pé de açaí, pequi, castanheiras, coqueiros, nossas roças, remédios medicinais, tudo”, descreve Mydjere, que também é relações públicas do Instituto Kabu, organização que representa os Kayapó Mekrãgnotí. “Em 2024, a queimada saiu do controle”, afirma.

O incêndio descrito por Mydjere chamou atenção também de pesquisadores do ISA, o Instituto Socioambiental. Ao analisarem os impactos das queimadas sobre as terras indígenas (TIs), eles constataram que os incêndios consumiram uma parte da floresta que não costuma pegar fogo, o chamado sub-bosque.

Um dos estratos de uma floresta tropical, o sub-bosque é formado por árvores menores que crescem abaixo do dossel florestal – o teto da floresta, composto pelas espécies mais altas. No sub-bosque, além da vegetação mais baixa, há ainda uma mistura de mudas e plantas jovens que irão crescer e formar a floresta no futuro.

“É uma região da floresta que não deveria pegar fogo [por geralmente ser úmida]. Com a perda do sub-bosque, a floresta perde a capacidade de manter a umidade do solo e fica mais suscetível a novas queimadas”, explica o antropólogo Tiago Moreira, um dos autores da nota técnica “Queimadas em Terras Indígenas”, divulgada nesta sexta-feira (1º) pelo ISA e assinada também por Luiza de Souza Barros, William Pereira Lima e Isabela Maeda Otsuki.

As queimadas na Amazônia geralmente estão associadas ao desmatamento, segundo os pesquisadores. Mas, nas terras indígenas, a derrubada da vegetação teve menor participação nos incêndios em 2024, prevalecendo a queima de áreas de savana ou pastagens e das matas de sub-bosque.

Para chegar às conclusões, o estudo analisou dados do monitor Amazon Fire Dashboard (“Painel de Queimadas na Amazônia”), iniciativa ligada à Nasa (agência espacial norte-americana) e à Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).

O painel considera a localização, a intensidade, a duração e a taxa de propagação das chamas para classificar as queimadas em quatro tipos: incêndio de desmatamento; incêndio florestal de sub-bosque; pequenos incêndios agrícolas; e incêndios de savana ou pastagens.

As informações foram cruzadas com os dados de focos de calor e de desmatamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), e com o Monitor do Fogo, do MapBiomas. O período analisado foi o de 1º de janeiro a 16 de setembro.

O estudo ressalta que a maior parte das queimadas está fora de áreas protegidas, com apenas 13% dos incêndios em TIs e 7% em unidades de conservação, enquanto que as áreas privadas com CAR (Cadastro Ambiental Rural) respondem por 56% dos focos de calor.

Nas terras indígenas, o que preocupa é que um terço do que foi queimado “eram áreas de vegetação nativa, degradando zonas de sub-bosque e colocando as florestas em risco”, diz o documento. A TI mais afetada pelo fogo é a Kayapó, também no sul do Pará, onde os incêndios de sub-bosque representaram quase 70% da área queimada.

“Essas queimadas afetam a capacidade das florestas de reciclar água, renovar o solo e armazenar carbono, funções essenciais para a saúde do ecossistema e para a mitigação dos impactos climáticos”, destaca a análise do ISA.

O aumento da queima de sub-bosque ocorre em um ano que vai entrar para a história como o de maior número de queimadas em terras indígenas, com mais de 28 mil focos de calor detectados até o final de outubro, segundo o painel BDQueimadas, do Inpe. Isso é quase três vezes mais do que o registrado nesses territórios em 2023 inteiro, ano já marcado por tempo seco e queimadas.

•        Fogo encontrou floresta muito seca após vários meses de El Niño

Quando o fogo entra em uma floresta fechada, ele caminha rasteiro e devagar. As chamas percorrem inicialmente a serrapilheira, uma camada de folhas e galhos sobre o solo que pode chegar a vários centímetros de altura.

Como a serrapilheira geralmente é úmida, ela apaga o fogo. Mas se o grau de ressecamento é alto, como ocorre em 2024, o fogo consome essa camada e sobe pela floresta. “Essa queima compromete as plantas mais baixas, que geralmente são mais novas em idade e mais sensíveis ao fogo do que as árvores já formadas, que possuem a casca mais grossa”, explica Kátia Ono, ecóloga e pesquisadora do ISA.

As árvores maiores também são afetadas. Elas não serão consumidas pelo fogo, mas podem morrer durante ou após a queimada, afirma Ane Alencar, especialista em monitoramento de incêndios e diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

“Uma vez que isso acontece, essa floresta fica muito mais suscetível a outros incêndios, porque várias árvores vão morrer e cair depois [da queima]. Elas vão machucar outras árvores, e assim vai ter mais material combustível para queimar. O dossel fica mais aberto. O interior da floresta vai ser mais seco. E na próxima estação seca, se o fogo entrar, vai ser mais alto, podendo até ter fogo de copa [das árvores]”, diz Alencar.

Embora os incêndios de sub-bosque sejam incomuns em uma floresta úmida como a Amazônia, eles se tornaram possíveis graças à ação humana, que deixou o bioma mais seco por meio de incêndios e desmatamentos criminosos.

Essa perda florestal acaba provocando alterações no microclima, ao deixar a floresta menos úmida. “Grande parte da chuva na Amazônia é gerada pela própria floresta tropical, mas conforme as árvores desaparecem, a precipitação diminui”, diz o relatório do ISA.

Outra parte da explicação se deve ao El Niño, fenômeno climático caracterizado pelo aquecimento da superfície do Oceano Pacífico, registrado de junho de 2023 a junho de 2024 na atual temporada. “É no final do ciclo do El Niño que fica pior, pois acumula a seca durante todo o período”, diz Ono.

“É muito difícil a gente ter incêndios florestais em um ano úmido ou mais ou menos úmido”, reforça Ane Alencar, do Ipam.

•        Rodovias como vetor do fogo

A expansão e o asfaltamento das rodovias na Amazônia também contribuíram para o aumento das queimadas em 2024, convertendo-se em vetores do fogo, segundo a análise do ISA.

Mais de 30% dos focos de calor na Amazônia Legal se concentraram no entorno de três rodovias federais: a BR-163 (Cuiabá-Santarém), a 319 (Porto Velho-Manaus) e a 230 (Transamazônia). “É possível ver o traçado da rodovia pelo caminho do fogo”, diz Tiago Moreira, do ISA.

Considerando 40 km para cada lado da pista, o entorno das rodovias federais na Amazônia Legal foi responsável por 8 milhões de hectares destruídos até setembro, segundo dados do MapBiomas, o que representa quase metade (44%) do total de área queimada no bioma.

Para os pesquisadores, a pavimentação da BR-163, ocorrida há cerca de 10 anos, é um exemplo de como grandes obras de infraestrutura podem impactar profundamente o uso da terra. “A pavimentação de uma grande rodovia como essa desperta interesses locais pela abertura de novas [estradas] vicinais, de onde também começam a ser criados novos ramais e estradas secundárias. As áreas mais acessíveis se tornam mais valorizadas, levando à grilagem de novas áreas, mais distantes, mas acessíveis através dos novos ramais. Por esses caminhos, a floresta é derrubada e depois queimada”, diz o texto.

Os especialistas alertam ainda que a destruição da vegetação nativa pode acelerar um processo de degradação das TIs, o que seria um risco para a preservação da Amazônia, já que as terras indígenas estão se tornando ilhas de conservação: sem ligações entre elas, e rodeadas de pastos e lavouras.

 

•        Empreiteira da Lava Jato comprou madeira de empresa autuada por trabalho escravo

A EMPREITEIRA Nova Engevix e a BBF (Brasil BioFuels), empresa de grande porte que atua na produção de biodiesel a partir do óleo de palma, compraram produtos derivados de madeira de uma serraria que submeteu seis trabalhadores a condições análogas à escravidão em 2019.

As duas primeiras companhias foram parceiras na construção da usina termelétrica Baliza (UTE Baliza), em São João da Baliza (RR), criada para produzir energia a partir de fontes renováveis.

Os seis empregados foram resgatados em fevereiro de 2019 após uma fiscalização do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) na Fazenda Estrela ZII, localizada no mesmo município de Roraima. Eles realizavam a derrubada de árvores nativas e, com trator, o arraste das toras até o local de carregamento em caminhões.

A extração de madeira era realizada pela Madeireira Roraima, que foi responsabilizada como empregadora da mão de obra. Por conta do caso, a empresa foi incluída na Lista Suja do trabalho escravo em outubro de 2022. A companhia esteve na lista por dois anos até a mais nova atualização, no último 7 de outubro.

A Nova Engevix ficou nacionalmente conhecida porque era uma das empresas investigadas pela operação Lava Jato. A companhia era citada por supostamente pagar propina ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. No dia 29 de outubro, o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a anulação de todas as condenações de Dirceu no âmbito da operação Lava Jato.

Lista Suja

Atualizada semestralmente, a Lista Suja é um cadastro mantido pelo MTE que torna públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas administrativamente pelo crime de submissão de trabalhadores à condição análoga à escravidão. Dois anos é o período previsto para que um empregador, flagrado pelo crime, permaneça no cadastro, segundo a legislação.

Diversas empresas brasileiras se comprometem publicamente a restringir relações comerciais com empregadores inseridos na Lista Suja. A BBF adquiriu da Madeireira Roraima sarrafos e resíduos florestais entre outubro de 2022 e outubro de 2023, quando a empresa já havia ingressado no cadastro.

Já a subsidiária da Nova Engevix em São João da Baliza comprou diversos lotes de ripas, sarrafos e madeira serrada entre novembro de 2021 e maio de 2022 – ou seja, após o flagrante de trabalho escravo, mas antes da entrada na lista.

Questionada pela reportagem, a BBF afirma que em 3 de agosto de 2022 firmou um contrato com a Madeireira Roraima para a aquisição de biomassa – conhecida como pó de serra – para utilização na caldeira de geração de vapor de sua fábrica em São João da Baliza.

“Como de praxe, em todos os contratos celebrados pelo Grupo BBF, é parte integrante e fundamental a cláusula 2.4 que obriga o fornecedor a não utilizar na execução do contrato mão de obra em condição análoga à escravidão”, diz a nota.

Ainda segundo a BBF, o fato de o acordo ter sido fechado antes da entrada da madeireira na lista suja do trabalho escravo [em 5 de outubro de 2022] fez com que esta estivesse apta na checagem de fornecedores realizada pela companhia de biodiesel.

O contrato, portanto, não foi reincidido, pois, durante sua vigência, até 2024, “não houve a implicação de novos casos de trabalho análogo à escravidão relacionados a este fornecedor que tenham sido divulgados”, diz a resposta enviada à reportagem. A nota completa pode ser lida aqui.

A Nova Participações, grupo que controla a Nova Engevix, respondeu que “a última relação comercial com a Madeireira Roraima foi em maio de 2022, sendo excluída da lista de fornecedores assim que as denúncias citadas vieram a público”. Disse também que não “compactua” com qualquer atividade ilícita praticada por seus fornecedores e que tem como um dos valores o “respeito incondicional aos direitos dos trabalhadores”. Veja a nota completa aqui.

A UTE Baliza, “primeira usina híbrida a combinar óleo vegetal e biomassa”, entrou em operação em 2023. A BBF afirma que seu modelo de produção evita a emissão de milhares de toneladas de carbono anualmente na atmosfera. Segundo a empresa, foram empregados consideráveis esforços para que a usina influenciasse positivamente os municípios diretamente afetados.

Condições degradantes

Segundo o relatório de fiscalização do MTE, acessado pela reportagem, os seis trabalhadores resgatados “estavam submetidos a situações de vida e trabalho que aviltavam a dignidade humana e caracterizavam condição degradante de trabalho”, critério suficiente para configurar a relação trabalhista como exploração de trabalho análogo à escravidão.

O alojamento e área de vivência dos empregados era um barraco improvisado de aproximadamente 13×4 metros, chão de terra batida, com cobertura de lona plástica e aberto nas laterais. Portanto, o local não tinha isolamento contra intempéries, animais peçonhentos, insetos ou outros animais.

O lugar de preparo das refeições era contíguo ao barraco, e não havia água limpa para a lavagem de mantimentos e utensílios domésticos. Não havia energia elétrica ou gerador, e os alimentos eram guardados em três caixas de isopor. A água para beber, cozinhar, lavar louça e tomar banho era retirada de cacimbas – buracos no chão – feitas pelos próprios trabalhadores, e apresentava coloração esbranquiçada.

Também não havia banheiros ou locais adequados para banho. Os empregados utilizavam vasilhas com água para se lavar. “Não havendo sanitários, os trabalhadores tinham que usar o ‘mato’ próximo ao barraco para satisfazerem suas necessidades fisiológicas, sem qualquer privacidade e dignidade”, diz o relatório do MTE.

Além disso, a fiscalização constatou que não havia fornecimento de EPIs (equipamentos de proteção individual ) e que a jornada dos empregados da Madeireira Roraima era em geral por 12 dias ininterruptos. Após esse período, iam até Rorainópolis (RR) – a cerca de 90 km de distância -, onde os pagamentos eram feitos.

“Ou seja, [os trabalhadores resgatados] laboravam de segunda-feira até a sexta-feira da semana seguinte, inclusive aos sábados e domingos, e depois folgavam no sábado e domingo da segunda semana de trabalho, retornando ao trabalho na segunda-feira seguinte. Todos declararam que recebiam apenas os dias que eram trabalhados, informação corroborada pelo próprio empregador”, afirma o relatório de fiscalização.

A Madeireira Roraima, além disso, tem um histórico de multas por desrespeitar a legislação ambiental. Entre 2018 e 2020, por exemplo, a empresa foi autuada ao menos 12 vezes pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Os valores das multas, somados, chegam a aproximadamente R$ 130 mil. Em fevereiro de 2019, a madeireira teve suas atividades embargadas pelo órgão ambiental após a constatação de que ela havia apresentado informações falsas nos sistemas de controle ambiental para o comércio de produtos florestais. No ano seguinte, a empresa voltou a funcionar após obter uma liminar judicial.

Procurada pela reportagem, a Madeireira Roraima não comentou o caso. O espaço segue aberto para futuras manifestações.

<><> Disputa fundiária com comunidades

A BBF foi fundada em 2008 em São João da Baliza “com o objetivo de descarbonizar a região Amazônica e mudar a matriz energética da região Norte do Brasil”, diz seu site. 

Além do plantio e produção do óleo de palma, a empresa possui 25 UTEs (usinas termelétricas) na região Norte do Brasil e planos para se tornar a primeira companhia brasileira a produzir combustível de avião a partir do dendê.

Cercados por plantações de dendê, fruto que dá origem ao óleo de palma, moradores dos quilombos Nova Betel, Alto Acará Amarqualta e da terra indígena Turé Mariquita afirmam vivenciar uma situação de conflito fundiário desde que a BBF se instalou na região, situada a 200 km da capital Belém.

Reportagem da Repórter Brasil de agosto de 2022 mostrou que quilombolas e indígenas reivindicam territórios aos quais os cultivos estão sobrepostos. Como reação às ocupações realizadas pelas comunidades, forças policiais e de segurança privada da empresa têm sido acusadas de atuar com violência extrema.

Em resposta à reportagem na época, a BBF afirmou que “não existe sobreposição de áreas com os territórios das comunidades tradicionais”, negou ter cometido qualquer violência contra quilombolas e indígenas, e os acusou de invadir suas terras para roubar o dendê.

Em agosto de 2023, três indígenas da etnia Tembé foram baleados em Tomé-Açu (PA). Representantes da Associação Indígena Tembé Vale do Acará acusaram a PM de intervir de forma truculenta na comunidade, “acompanhada de seguranças fortemente armados da empresa Brasil BioFuels (BBF)”.

Em nota, a BBF afirmou na ocasião que sua equipe de segurança havia agido para “conter a ação criminosa” de “30 invasores armados” que tinham entrado na sede da empresa.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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