Com medo de traficantes, moradores da
Muzema evitam até falar com a imprensa e só aceitam dar entrevista por escrito
O clima de medo tomou
conta de grande parte da Muzema nas últimas semanas. Moradores da região que
querem denunciar os abusos cometidos pelos traficantes que passaram a controlar
o bairro estão inseguros.
Até mesmo aqueles que
topam contar o que acontece na região evitam falar sobre o tema e só aceitam
dar entrevista por escrito.
Uma reportagem do RJ2
exibida na última sexta-feira (1) revelou como traficantes passaram a obrigar
os donos de imóveis na Muzema a irem ao Complexo do Alemão para provar que eles
são mesmo os proprietários de suas casas e que não possuem ligação com a milícia.
Essa é a nova regra
estabelecida pelo tráfico no bairro da Zona Oeste. Traficantes e milicianos
estão em guerra desde o ano passado pelo controle da região.
Já sabendo de algumas
denúncias sobre extorsões de traficantes da região, a equipe do RJ2 teve
dificuldade para conseguir falar com os moradores e conseguir novos relatos.
Para convencê-los a
falar e trazer a público essa realidade em que eles vivem, a equipe usou
algumas técnicas. Uma delas foi entrevistar um morador apenas por escrito, na
presença da equipe, mas sem ser identificado.
Outra técnica
utilizada foi fazer a entrevistas por telefone com a condição do anonimato.
Nesse caso, nem a voz da pessoa podia aparecer.
• Repórter - Boa tarde. Olha, a gente já
está gravando. Nesse momento, eu não vou mais falar o seu nome, ok?
• Morador - Tudo bem, obrigado.
• Repórter - Me conta assim, em linhas
gerais, como é o sentimento da população da Muzema em relação à segurança?
"Essa invasão do
tráfico já tem um bom tempo, já tem por volta de um ano. Mas nos últimos 60
dias tem ficado muito pior a segurança. Você vê que hoje o Estado atua mais na
Muzema, ali na região, com policiamento que ele pode utilizar, mas não dá conta.
Os bandidos continuam lá", disse o morador.
Outro morador que
havia aceitado falar com a reportagem, ao ver a câmera ligada, não quis mais
dar entrevista. Ele só topou falar se fosse por escrito.
• Repórter - Hoje, como é que está a
situação na Muzema? Quem é que comanda a Muzema?
• Morador - Os traficantes do Comando
Vermelho.
• Repórter - Qual é o sentimento dos
moradores da Muzema nesse momento em relação a isso?
• Morador - Todos estão apavorados e com
muito medo.
• Repórter - Os traficantes, eles impõem
taxas? Que tipo de taxas?
• Morador - Sim. Eles cobram condomínio.
• Repórter - Quanto que os traficantes
cobram por morador?
• Morador - R$ 70.
• Repórter - E o que acontece com quem não
paga a taxa?
• Morador - Não existe não pagar a taxa.
Eles obrigam.
• Repórter - Os traficantes estão exigindo
que os proprietários comprovem que são donos dos imóveis? Por que eles estão
fazendo isso?
• Morador - Eles pedem para levar os
documentos no Complexo. Quem não vai, perde o imóvel.
• Repórter - Qual é o sentimento dos
moradores da Muzema nesse momento em relação a isso?
• Morador - Todos estão apavorados e com
muito medo.
• Repórter - O que mudou com a presença da
polícia lá?
• Morador - Nada.
• Repórter - Qual a solução no seu ponto
de vista?
• Morador - Ter o estado presente sempre
em todos os lugares da comunidade.
Com medo de
traficantes, moradores da Muzema evitam falar e só aceitam dar entrevista por
escrito — Foto: Reprodução TV Globo
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Domínio do tráfico
Traficantes do Comando
Vermelho estão expulsando os moradores de condomínios da Muzema que não
conseguem comprovar que são proprietários de seus imóveis ou que possam ter
ligação com a milícia.
Nas últimas semanas,
criminosos que dominam o bairro passaram a controlar grupos de troca de
mensagens para exigir que os moradores levassem a documentação de suas casas no
Complexo do Alemão, o quartel general do Comando Vermelho, na Zona Norte, para
avaliação de cada caso.
A distância entre a
Muzema e o Complexo do Alemão é de aproximadamente 23 km, um trajeto que pode
levar mais de uma hora e 30 minutos de carro.
Segundo as ordens do
tráfico, quem apresenta a documentação "correta", ou seja, com
registros no próprio nome, pode ficar. Mas quem não consegue comprovar a
propriedade do imóvel ou é suspeito de ser inquilino da milícia é obrigado a
sair de sua casa.
As novas ordens
chegaram por mensagens de texto e áudio nos grupos de moradores dos condomínios
da região no mês passado.
"Os proprietários
vai (sic) ter que levar os documentos lá no complexo, no escritório. Os
proprietários vão ter que ir no complexo resolver com o chefe lá, mostrar a
documentação", dizia um trecho das mensagens.
Segundo moradores,
condomínios inteiros que ficam na Estrada Engenheiro Souza Filho e na Estrada
do Itanhangá tiveram de comprovar que eram proprietários dos imóveis.
Em outra mensagem de
áudio, um traficante avisa que uma pessoa do Comando Vermelho vai visitar cada
um dos moradores.
"Pessoal, a
Alessandra vai estar passando em cada apartamento para poder fazer levantamento
dos apartamentos, saber quem é proprietário, quem é inquilino, pra gente poder
estar ciente", disse o criminoso.
"Já vou deixar
ciente aqui, todos os proprietários, quem for proprietário do apartamento, se
não tem envolvimento com a Melissa (sic), se não tem envolvimento com o
tráfico, não tem envolvimento com nada, pode, deve ficar ciente que tem que
trazer o documento aqui no Complexo, tá? Aqui no Complexo do Alemão. Agora,
quem não for tranquilo, né? Já tira outras conclusões aí", orientou o
traficante em tom de ameaça.
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Moradores expulsos
Um morador que topou
falar com a reportagem sem revelar sua identidade contou que a maioria dos
imóveis da região não tem escritura formal.
"Aqui você não
tem escritura de venda. Hoje tu tem um documentozinho de registro de posse que
é feito na Associação de Moradores da Muzema mesmo".
"Eles dizem que
aquele não serve de nada. E é o único documento que você tem da área aí é esse
documento que você faz na Associação de Moradores. Eles querem que você tenha
um documento no seu nome. E se você não tem, tu perdeu. (O tráfico) Se apossa,
ele te expulsa, te tira do local, te expulsa, manda tu meter o pé e eles tomam
posse do imóvel", explica o morador.
De acordo com os
moradores, o tráfico toma seu imóvel e já coloca para vender ou alugar. Os
relatos são de muitas pessoas deixando o bairro sem nada.
"É nego deixando
as casas, é nego indo embora. São eles tomando as casas dos moradores. Só se vê
morador dizendo que já perdeu as casas, que não tem como voltar mais",
relata.
<><> Taxa
de aluguel
Após a divulgação das
novas regras e a visita para avaliação do imóvel, alguns moradores foram
expulsos de seus apartamentos. Porém, mesmo aqueles que conseguiram comprovar
que não tinham ligação com a milícia também sofreram consequências.
Quem não perdeu seu
bem passou a ter que pagar uma taxa mensal de R$ 70 ao tráfico. A taxa foi
batizada de "aluguel" e mesmo quem é dono do imóvel precisa pagar. A
taxa é paga via pix, como mostra o interlocutor do tráfico no grupo:
"Lembrando que o
pagamento do aluguel é nessa conta abaixo", orienta o traficante.
Questionado pela
reportagem sobre o que aconteceria se o pagamento não fosse feito, um morador
explicou: "Não existe não pagar a taxa. Eles obrigam".
O RJ2 procurou a
pessoa indicada no áudio com as orientações do tráfico, que seria a responsável
por cadastrar os imóveis, mas ela não quis dar informações por telefone.
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Moradores aterrorizados
Em contato com a
reportagem, outro morador que não terá sua identidade revelado disse que
somente quem é ligado ao tráfico ou está identificado como morador é que pode
circular pela região.
"Todos estão
apavorados e com muito medo".
"Eles estão
identificando todos os moradores, identificando carro por carro. Tu tem que ter
o adesivo que tu é morador para tu poder entrar e sair. Se chegar uma pessoa
que não mora na região, não vai conseguir entrar. Imagina se um Uber tentar
entrar. Coitado do Uber. Vão sumir com o cara, vão sumir com o táxi. Só eles
podem circular dentro", explicou.
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Guerra tráfico x milícia
Milicianos e
traficantes brigam pelo controle da região há pelo menos um ano. A disputa não
está restrita a Muzema. Praticamente toda a região de Jacarepaguá está sofrendo
com a guerra.
Em março, o g1 mostrou
que no ano de 2023 teve recordes em vários indicadores de violência em
Jacarepaguá, região que foi um dos berços da milícia no fim dos anos 90 e virou
palco de intensas disputas entre paramilitares e traficantes.
No último dia 21, um
confronto entre milicianos e traficantes da Muzema durou cerca de duas horas.
Na ocasião, a Estrada do Itanhangá foi fechada, homens armados levaram as
chaves dos ônibus e ainda assaltaram os passageiros. No dia seguinte, o
conflito impactou diretamente na vida de quem mora ali.
No início da manhã do
dia 22, moradores ficaram com poucas opções para ir trabalhar. Sete linhas de
ônibus mudaram o trajeto por causa da violência. Uma semana depois, a equipe da
TV Globo flagrou ônibus sendo escoltados por viaturas da PM para impedir ataques.
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Denúncias sem respostas
Enquanto a polícia não
consegue acabar com a guerra, moradores ficam sem saber a quem recorrer.
A pedido do RJ2, o
Disque Denúncia reuniu queixas feitas por moradores da Muzema. De janeiro até o
meio de outubro, foram 84 denúncias, sendo 66 sobre traficantes e 18 pobre
milicianos.
As denúncias falam
sobre extorsão, sobre como é feito o monitoramento dos moradores e comunicaram
assassinatos de dois moradores.
De acordo com as
informações recebidas pelo Disque Denúncia, os principais locais de extorsão a
moradores e comerciantes são:
• Estrada da Barra da Tijuca, esquina com
a Rua Doutor Luís Capriglione;
• Estrada de Itajuru, na parte alta do
Morro do Banco;
• Travessa Cambucá da Floresta, na
localidade conhecida como Praça dos Gaúchos;
• Rua João Carlos, perto da quadra de
esportes da comunidade;
• Rua Engenheiro Souza Filho, perto de uma
pizzaria.
Mesmo com tantas
denúncias, os moradores afirmam que não percebem resultado algum.
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Governo tem um plano
Questionado pelo RJ2,
o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, Victor Santos, disse que a
polícia está presente na Muzema.
"A presença hoje
é maciça. Até porque hoje o efetivo está redobrado. A força COE, lá com o
Batalhão de Choque e o Batalhão de Operações Especiais, está atuando, cada um
na sua especificidade", afirmou o secretário.
"O Bope está
vasculhando aquelas matas, aquele complexo. O Maciço da Tijuca, ele é uma mata
bastante fechada, uma mata bem densa. (...) E no asfalto, na parte da
comunidade, está lá o Batalhão de Choque e mais o reforço do 31 BPM e do 18
BPM. Então o policiamento ali está bastante ostensivo", reforçou Santos.
De acordo com o
secretário, o Governo do Estado tem um plano para combater o domínio de
criminosos na região da Muzema.
"A gente pretende
desenvolver um projeto perene para aquela região. A gente vê que a desordem
urbana naquela região levou à criminalidade. Isso é uma realidade", disse
o secretário.
"Eu não quero
aqui imputar responsabilidade a ninguém, mas nós estamos prontos para, junto
com a Prefeitura e o Governo Federal. (...) Essas comunidades precisam ter um
atendimento social. Essa urbanização precisa chegar lá, e, obviamente, a
segurança pública vai estar lá para viabilizar que esses outros serviços também
cheguem", explicou Victor Santos.
Até que o futuro plano
para acabar com o domínio de traficantes e milicianos seja colocado em prática,
os moradores seguem sofrendo.
"Você já saiu da
sua terra natal, do Ceará, do Piauí, do Maranhão, para buscar algum recurso. E
agora está perdendo tudo, todo mundo está perdendo".
"Hoje em dia,
quem mora dentro da comunidade não mora porque quer. É por conta de uma
necessidade. Porque senão você morava em um apartamento na Barra, no Recreio,
em outros bairros do Rio de Janeiro".
<><> O
quem dizem os citados
Em nota, a Polícia
Civil informou que a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e
Inquéritos Especiais (Draco) trabalha em conjunto com as delegacias da região e
investiga a ação tanto de traficantes quanto de milicianos na Muzema.
Já a Polícia Militar
afirmou que tem um "amplo" esquema de apoio de policiamento para
prender criminosos que atuam na região da Muzema.
Fonte: g1
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