segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Oceanos quentes transformam chuvas em catástrofes pelo mundo; entenda elo entre Espanha, RS e Saara

A chuva que atingiu a Espanha nesta semana transformou ruas em rios, causou destruição e matou mais de 200 pessoas. No início de outubro, o furacão Milton deixou parte dos EUA em alerta e obrigou moradores a evacuarem cidades inteiras. Na África, parte do deserto do Saara ficou alagado. No Rio Grande do Sul, mais de 180 pessoas morreram após temporais em abril.

Não é apenas impressão, as chuvas estão cada vez mais intensas. Segundo especialistas, os fenômenos estão interligados pelo aquecimento dos oceanos.

🔥 Estamos vivendo extremos de calor. O ano de 2023 foi o mais quente já visto na história, e 2024 segue esta tendência. As temperaturas poderiam ser ainda mais elevadas se não fosse a atuação dos oceanos: eles retêm 90% de todo o calor gerado na atmosfera pelo aumento das emissões de gases do efeito estufa.

Como resultado, as águas estão mais quentes, provocando consequências. O que os especialistas explicam é que, devido ao aumento da temperatura, os oceanos estão emitindo mais umidade, fazendo com que as chuvas tenham mais volume.

Os oceanos têm papel importante na contenção do calor sobre a atmosfera, só que isso está elevando significativamente sua temperatura e impactando a atmosfera. Se continuar assim, vamos viver catástrofes em série.

— Regina Rodrigues, referência em pesquisas sobre o Atlântico e suas ondas de calor e que atua na Organização Meteorológica Mundial (OMM).

<><> Por que os oceanos transformam chuvas em catástrofes?

O primeiro ponto é entender como e por que os eles estão ficando mais quentes. Tudo começa com o aumento das concentrações de gases do efeito estufa gerados pela atividade humana, responsáveis pelo aquecimento global.

🔥 Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a concentração desses gases atingiu níveis sem precedentes em 2023 – os dados são divulgados sempre no ano seguinte.

Em 2023, as concentrações médias globais de dióxido de carbono (CO2), o gás de efeito estufa mais abundante na Terra, ultrapassaram os níveis da era pré-industrial em 151% (definida pelo ano de 1750), alcançando o pico de 420 ppm (partes por milhão - o número de moléculas do gás a cada milhão de moléculas de ar).

🔥 Quando há mais desse gás no ar, o planeta se aquece mais do que o normal. Os oceanos são grandes ‘bolsões’ de calor, retendo o excesso de temperatura que está na atmosfera.

Esse calor é, depois, liberado pouco a pouco em forma de umidade na atmosfera. O problema é que, com o aumento das temperaturas e absorvendo cada vez mais calor, esse processo está acelerado e intensifica a umidade presente na atmosfera, tornando as chuvas muito mais fortes.

Quando o oceano está muito quente, ele evapora mais e leva muita água para a atmosfera. Com isso, toda a circulação, que sempre ocorreu, acontece em uma situação de maior volume. Isso faz com que as chuvas se formem com mais intensidade e mais rápido.

— Regina Rodrigues, que pesquisadora em aquecimento dos oceanos.

Segundo a WMO, agência da ONU, a cada aumento de 1°C de aquecimento, o ar saturado contém 7% a mais de vapor de água em média. Assim, cada fração adicional de aquecimento aumenta o teor de umidade atmosférica, elevando o risco de desastres.

Ou seja, os fenômenos recentes que estamos vendo já são reflexos das mudanças climáticas.

No caso de Valência, na Espanha, por exemplo, a World Weather Attribution (WWA) aponta que as temperaturas do Atlântico que alimentaram com umidade a tempestade estão 50-300 vezes mais prováveis por causa das mudanças climáticas.

<><> Como o calor das águas impactou os últimos eventos?

•        Enchentes em Valência

Valência, no leste da Espanha, viveu uma chuva torrencial que em poucas horas transformou a cidade em palco da pior tragédia do século no país. Segundo os especialistas, o temporal trouxe em poucas horas o volume de chuva esperado para um ano inteiro.

Nesse caso, a região viveu o reflexo de uma "depressão isolada em altos níveis", sigla DANA em espanhol. O fenômeno é comum e acontece quando uma massa de ar frio se encontra com o ar quente e úmido próximo ao solo, causando a chuva.

Segundo especialistas e relatórios como o da World Weather Attribution (WWA), o problema em Valência foi o aquecimento no Atlântico Norte. Há um canal, chamado de rio voador, que transporta umidade para a atmosfera, passando por várias regiões pelo mundo (veja abaixo).

Com o oceano mais aquecido, havia muito mais umidade no sistema, que se somou ainda com o Mar Mediterrâneo, também mais quente, e resultou em uma quantidade imensa de chuva. Em algumas regiões de Valência, os pluviômetros registraram 491 milímetros em apenas oito horas - o equivalente a um ano de chuvas.

Infográfico explica influência dos oceanos nas enchentes — Foto: Arte/g1

A OMM já relaciona a intensidade do fenômeno DANA com o aquecimento dos oceanos.

“A presença de ar quente perto da superfície, alimentado pela umidade excessiva do ainda quente Mar Mediterrâneo, e a instabilidade gerada pelo conflito com o ar frio na atmosfera superior, levam a grandes nuvens convectivas com chuvas torrenciais e inundações repentinas”, disse a OMM.

Chuva no Saara cria lagoas entre as dunas do deserto; veja FOTOS — Foto: AP Photo

•        Deserto do Saara

A atmosfera, camada de ar que envolve a Terra, é uma só e as massas de umidade que estão sobre ela não atingem apenas uma região, mas podem se espalhar. Segundo a especialista Regina Rodrigues, o mesmo canal de umidade que impactou a Espanha também causou as chuvas no Saara.

Em setembro, o deserto ficou com vários bolsões de água – o que nunca havia sido visto antes. As chuvas aconteceram por um transporte de umidade excessiva, justamente vinda dos rios voadores do Atlântico, segundo Rodrigues.

•        Furacão Milton

Outro fenômeno intensificado pelos oceanos foi o furacão Milton. Ele subiu de categoria, se transformando em um risco para várias regiões dos Estados Unidos, em menos de 12 horas.

Segundo especialistas, isso aconteceu depois que ele passou pela região das águas do Golfo do México, que também está com a temperatura acima da média.

A World Weather Attribution (WWA) emitiu uma análise sobre o furacão, apontando que ele passou por 'intensificação extremamente rápida' para uma categoria 5, com ventos de 290 km/h, enquanto passava por águas que estavam cerca de 2 a 3 °C acima da média.

Além disso, a análise aponta que esse contexto de mudança climática aumentou os ventos do furacão Milton em 10%. Isso significa que, sem águas aquecidas e calor na atmosfera, ele poderia ter sido um furacão de categoria 2, muito menos intenso do que o visto.

•        Desastre do Rio Grande do Sul

A tempestade que transformou o Rio Grande do Sul em palco de um dos maiores desastres climáticos do país, com mais de 180 mortes, também está ligada ao aquecimento das águas oceânicas.

Segundo os especialistas, naquele fim de abril havia um cavado, que é uma corrente intensa de vento, agindo sobre a região. Esse fenômeno causa instabilidade e pode formar chuva.

Ao mesmo tempo, a região recebia umidade por um corredor, chamado rio voador. O que os especialistas apontam é que a quantidade de umidade é reflexo justamente das águas aquecidas. Isso se somou ao calor que havia na atmosfera e fez com que um cenário comum para a região resultasse em um temporal com volume de água nunca antes visto.

“O oceano mais quente, como estamos vendo agora, faz com que seja gerada mais energia para a formação das chuvas. Com isso, elas chegam nesses níveis, que nunca vimos antes. A mudança no padrão do clima interfere na atmosfera e muda o ciclo dos fenômenos que aconteciam, deixando-os mais intensos”, afirma o meteorologista Fábio Luengo.

<><> Qual o risco para o futuro?

Especialistas e entidades vêm fazendo alertas sobre o aumento das temperaturas e a necessidade urgente de redução dos gases do efeito estufa. Atualmente, a emissão líquida do Brasil é de cerca de 2,3 bilhões de toneladas de gases – o país é o sexto maior emissor de gases do planeta.

Segundo Regina Rodrigues, para além das catástrofes em sequência a que estamos expostos, há ainda a vulnerabilidade para esses eventos. Os sistemas de previsão não conseguem antecipar essas intensidades, o que coloca em risco a população, que não consegue ser avisada a tempo.

“É muito mais imprevisível. Os sistemas de previsão não conseguem prever essas intensidades e isso faz com que o tempo de reação para a população seja menor, o que aumenta o risco de mortes e tragédias”, explica.

 

<><> 'Esta catástrofe é maior do que muita gente pode imaginar': os brasileiros voluntários em Valência

"Estamos cansados, mas ainda temos bastante ânimo para ajudar nesse terceiro dia", diz a paulista Andrea Bonin.

Enquanto caminha por mais de uma hora com um grupo que carregava pás e rodos nas mãos, Bonin atende uma ligação da BBC News Brasil para contar como está a situação nos arredores de Valência, terceira maior cidade da Espanha.

Ela mora a poucos quilômetros de uma das áreas mais afetadas pela enchente histórica que fez grandes estragos na parte leste do país na última terça-feira.

Como boa parte das estradas continuam bloqueadas por conta de carros abandonados e várias pontes caíram, o acesso a esses locais só é possível a pé.

Através da sua conta do Instagram a brasileira conseguiu reunir um grupo de 30 pessoas que na manhã desta sexta-feira estava caminhando até as pequenas cidades mais afetadas da região para levar doações.

O grupo carregava itens de primeira necessidade, fraldas, água, lenços umedecidos, leite, alimentos que já preparados e produtos de higiene.

Uma cena que se repetiu ao longo do dia na região leste da Espanha, centenas de voluntários caminharam quilômetros pelas estradas para ajudar nessa força-tarefa conjunta.

A ajuda de voluntários tem sido tão grande que a Defesa Civil do país pediu para que as pessoas deixem de caminhar até as regiões afetadas para que o fluxo de pessoas não atrapalhe nos resgates.

Até agora o número de vítimas já passou de 205, nessa que já é considerada a pior catástrofe climática dos últimos 60 anos na Espanha.

Andrea, que mora em Valência há seis anos, conta que começou a ajudar quando recebeu o pedido de uma amiga brasileira que estava presa dentro da sua própria loja com seu bebê. "Ela ligou desesperada pedindo ajuda já com a água na cintura. Na hora entrei em contato com os serviços de emergência, mas eles disseram que não poderiam chegar até lá porque as pontes tinham caído e o acesso era difícil. Então eu e meu marido fomos para lá, conseguimos resgatá-la e a trouxemos para a nossa casa", relembra.

Desde então, Andrea não parou de receber pedidos de outros brasileiros que estão precisando de ajuda ou querem encontrar familiares. Ela tenta chegar até a casa dessas pessoas para comprovar que estão bem. "A maioria dos pedidos que recebo é de brasileiros, já que tudo o que posto nas redes sociais é em português", explica.

•        Desabastecimento

Como algumas estradas seguem bloqueadas, caminhões não estão conseguindo abastecer o comércio dessa região. Andrea conta que faltam produtos e alimentos nos supermercados, até mesmo na capital Valência que não foi afetada.

"Não tem mais nada nas prateleiras porque as pessoas começam a se desesperar e compram o que não precisam por medo de ficarem sem, então acabam pegando mais do que é necessário e faltam produtos para quem realmente está precisando neste momento", desabafa.

A voluntária não consegue calcular o número de pessoas que já conseguiu ajudar até agora. "A maioria das pessoas que a gente tem socorrido são brasileiras. Conheço várias amigas que perderam loja, carros e até mesmo as suas casas", conta.

Durante a forte tempestade, em poucas horas caiu o equivalente a um ano de chuva. Três dias já passaram do início da tragédia e alguns lugares seguem sem água potável e algumas casas continuam sem energia elétrica. O governo da região de Valência anunciou que vai liberar nos próximos dias dinheiro para que as vítimas possam comprar móveis e reparar sus casas. "O governo está fazendo a sua parte, mas se não fosse pela população que está aqui com a mão na massa a situação seria bem pior", diz a brasileira.

•        Desaparecidos

A polícia espanhola segue fazendo buscas com drones e helicópteros nas áreas mais afetadas. Militares também foram enviados para a ajudar na região. Dezenas de corpos já foram retirados de dentro dos carros. Na hora da tempestade as pessoas quiseram salvar seus veículos e acabaram ficando presas dentro das garagens.

Até agora o governo não divulgou um número oficial de desaparecidos, mas calcula-se que esse número seja grande.

"A gente que está aqui desde o primeiro dia sabe que o número de vítimas vai aumentar ainda mais. Tem lugares que continuam inacessíveis, muito barro, muita gente incomunicável. É muito grande esta catástrofe, maior do que muita gente pode imaginar", se emociona ao contar.

Andrea diz que o plano é continuar atendendo as chamadas que forem chegando e ajudar a população a retirar o barro das casas.

"Estou em estado de choque, estou me movendo para fazer o que tem que ser feito e ainda não parei realmente para ver como estou. A gente está para o que der e vier. Cada dia é um cenário, cada dia é uma história", diz.

Na Espanha a população segue doando alimentos e roupas em várias cidades. Em Valência um dos pontos de recolhida é o estádio de futebol, o Mestalla. Várias partidas de futebol, entre elas a do Real Madrid contra o Valência, que deveriam ser disputadas neste fim de semana, foram adiadas por causa das inundações.

 

Fonte: g1/BBC News

 

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