Alípio de Sousa Filho: ‘Eleições e lutas
por reconhecimento’
Campanhas
eleitorais que reconheçam a importância das lutas por reconhecimento demonstram
compromisso verdadeiro com a democracia, com a justiça social
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Lutas de mulheres,
gays, lésbicas, transexuais, negros, indígenas e outros grupos por
reconhecimento (de suas identidades e de seus direitos) têm sido chamadas de
“lutas identitárias” e, às vezes, pejorativamente, de “identitarismo”. Muitos
ataques são dirigidos aos movimentos que empreendem essas lutas, sobressaindo
aqueles da direita conservadora e da extrema direita.
Porém, ataques são
também realizados, surpreendentemente, por intelectuais e militantes de
esquerda. Nos últimos dias, após o resultado das eleições municipais,
apareceram avaliações críticas formuladas por estes últimos que sugerem que as
lutas identitárias “interferem negativamente” para votos em candidaturas da
esquerda e seria uma das causas de um desempenho eleitoral considerado “pífio”
dessas candidaturas em muitas cidades do país. Seriam lutas cuja “pauta moral”
– e se diz isso em sentido pejorativo! – não é bem recebida por amplos setores
da sociedade.
Ainda que não seja o
caso de compreender essas críticas como oposições às lutas por reconhecimento
(contra seus princípios, teses, ideais, objetivos) – pois, considerando o que
expressam alguns de seus formuladores, elas são, ao que parece, antes críticas
ao modo de sua comunicação pública, por parte de alguns de seus militantes e
representantes, do que oposição às concepções, objetivos e ideais dessas lutas
–, considerá-las como uma das causas que teriam impedido a vitória de
candidaturas de esquerda é não apenas simplificar a avalição de evento
multifacetado e multicausal mas também contribuir com a reificação de valores
morais conservadores praticados na sociedade brasileira.
Tais críticas revelam
uma visão simplória dos processos eleitorais, minimizando a complexidade de
fatores que participam de processos e períodos eleições, como políticas
econômicas, problemas sociais, valores morais correntes e os próprios acertos e
desacertos das chamadas “estratégias“ eleitorais de candidatos e partidos.
É bem verdade que o
modo como às vezes as lutas de mulheres, gays, lésbicas, transexuais, travestis
e negros por reconhecimento (dignidade, respeito, direitos) têm sido
comunicadas, assumidas e performadas promove exasperações e tensões sociais
desnecessárias, e até mesmo criam divisões contraproducentes, tanto quanto
muitas vezes é modo que sequer exprime os sentidos mais profundos dessas lutas.
Tão pior para o caso de uma sociedade despedaçada por desigualdades que são
causas de mazelas que não podem mais perdurar.
Todavia, não se torna
o caso de confundir modos de comunicação pública equivocados, performances e
proferimentos insensatos de alguns dos integrantes dessas lutas com os próprios
movimentos sociais maduros, sérios, profundos, em seus conceitos, teorias e
objetivos, sem cujas conquistas, na atualidade, não permitiria que falássemos
de democracia nas nossas sociedades. As lutas por reconhecimento são sumamente
importantes para tornar nossas sociedades sempre mais democráticas. Lutas
essenciais para a inclusão de excluídos morais, sociais, econômicos, e, pois,
para a existência de justiça social.
Passados tantos anos
de uma discussão que já rendeu centenas de livros, análises e reflexões no
campo progressista e crítico – e poderia evocar aqui diversos autores e autoras
dos campos da filosofia e ciências sociais –, alguns intelectuais e militantes
voltam ao argumento segundo o qual “a ênfase em questões identitárias fragmenta
a base de apoio da esquerda”, que seria uma idealizada “classe trabalhadora”,
pois seriam questões que desviam o foco das questões econômicas que a
afetariam.
A sugestão de alguns
do necessário retorno – trata-se de um retrocesso! – à primazia dos “interesses
de classe” de operários, trabalhadores, tem a estranheza não apenas de uma
fantasia em relação aos trabalhadores atuais, cuja configuração como categoria
conhece muitas transformações, como também parece abrigar a espantosa crença de
que esses mesmos trabalhadores não seriam afetados pelos preconceitos e
discriminações da misoginia, homofobia, racismo, menosprezo por status de
classe etc.
O que seria mesmo,
então? A classe trabalhadora não tem sexo, gênero, sexualidade, cor de pele?
Não sofre com as violências dos preconceitos e das discriminações por eleições
do que os seus integrantes desejam ser, almejam ou realizam? Alguns estão quase
a pedir que, principalmente, gays, lésbicas e trans calem-se! Voltem para o
armário! A evidência gay afasta votos! As mulheres e negros não entram no
argumento, seriam mais fáceis de acomodar nos objetivos eleitorais.
Aqui, repete-se o que
se torna possível observar até mesmo para certos assuntos da comportada “pauta
econômica” e da conciliatória “pauta política”: harmonizar com o
conservadorismo social. Tudo em nome da elegibilidade e, depois, da
governabilidade.
Atribuir, ainda que
não exclusivamente, às lutas por reconhecimento a causa do insucesso eleitoral
de algumas candidaturas de esquerda só contribui para reforçar discursos
conservadores que buscam deslegitimar essas lutas como relevantes. Além disso,
esse entendimento desfoca as injustiças que os movimentos por reconhecimento e
direitos denunciam e buscam combater e superar.
Em todos os países, a
consideração contemporânea da importância das lutas por reconhecimento e
igualdade social não só enriqueceu a agenda de partidos e movimentos de
esquerda e progressistas, mas, igualmente, ampliou a base social de apoio
desses partidos e movimentos. Portanto, simplificar o debate sobre o resultado
eleitoral é empobrecer a compreensão do cenário social brasileiro e da política
nele e arriscar perder percepções e contribuições críticas e progressistas para
a construção de uma nova imaginação política para muitos e diversos assuntos e
problemas, assim como construção de novas instituições e relações sociais na
sociedade.
Ao ser confrontada a
abordar questões como racismo, preconceitos com identidades de gênero,
preferências sexuais, status de classe, e tudo o que deriva daí como produção
de inferiorizações, discriminações, exclusões, violências, por força das lutas
daqueles que as sofrem, desafiando estruturas de poder, a ideologia, a
sociedade é levada a pensar suas contradições, incoerências, podendo progredir
moralmente.
As lutas por
reconhecimento são também educação da sociedade para valorizar e respeitar a
diversidade social, as diferenças e as aproximações e misturas de gentes,
povos, culturas, indivíduos, sexos, grupos étnicos. O que fortalece o sentido
de cidadania plena e democracia, todos podendo participar da vida social em
igualdade e podendo influenciar as decisões que afetam a vida de cada um e de
todos.
Uma sociedade que não
acolhe e apoia as lutas de mulheres, gays, lésbicas, trans, pessoas
discriminadas pela cor de sua pele, status de classe, ou comunidades de origens
étnicas diversas, entre outros grupos de pessoas, tende a perpetuar a violência
dos preconceitos e da discriminação. E tende a negar a participação igualitária
dessas pessoas na vida social e pública. Pessoas e grupos que frequentemente
enfrentam desafios específicos que, se ignorados, podem se transformar em
normas sociais que não há mais qualquer dúvida que são a eles prejudiciais.
Sem a mobilização e a
voz dessas pessoas e grupos violentados pelos preconceitos e discriminações, as
desigualdades se mantêm e aprofundam-se. As lutas por reconhecimento são
essenciais para trazer à tona essas questões, questionar estruturas de poder e desconstruir
discursos ideológicos que buscam naturalizar e normalizar desigualdades e
injustiças. Lutas que buscam promover mudanças que visam a igualdade e a
consideração de todos como merecedores de respeito e vida digna.
Uma sociedade
verdadeiramente democrática deve assegurar a participação igualitária de todos,
sem que preconceitos e discriminações estorvem a liberdade de ninguém nem seus
direitos, por opções, preferências, escolhas no âmbito de identificações do que
chamamos de “gênero” ou “sexualidade”, pela cor da pele com a qual se nasce
(transformada em “raça” pelo racismo!) ou por pertencimentos a categorias ou
classes sociais.
É não apenas
politicamente equivocado mas também moralmente indefensável negar espaço às
“lutas identitárias” em campanhas eleitorais apenas para “não perder votos” –
conclusão, aliás, absolutamente subjetiva e impressionista. Tal entendimento
pode parecer uma estratégia pragmática no curto prazo, mas representa também o
abandono do ideal de justiça social e de participação igualitária ou paridade
participativa que inclua a todos (um tema que a filósofa Nancy Fraser
desenvolveu em suas obras).
Campanhas eleitorais –
mas não apenas eleitorais, mas continuadas na ação política – que reconheçam a
importância das lutas por reconhecimento demonstram compromisso verdadeiro com
a democracia, com a justiça social, e também criam autênticas conexões com
aqueles que estão submetidos ao sofrimento evitável dos preconceitos e
discriminações. Portanto, é vital que candidatos e partidos considerem essas
questões de forma séria e integrada em suas propostas e não apenas também por
“estratégias eleitorais”.
¨ Reação a que? Por Marga Ferré
O
crescimento da extrema direita na última década é uma reação e, além disso, uma
reação global. Mas uma reação a quê?
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Há anos que leio
análises sobre a extrema direita sem encontrar uma resposta que explique por
que razão tem tanto apoio. Até que nos últimos meses, um estudo do jornal Financial
Times, um antigo livro feminista e um artigo de história desencadearam uma
resposta que, decantada, pretendo argumentar convosco.
A ascensão da extrema
direita não é uma expressão de descontentamento político, nem uma patologia
social, muito menos uma expressão antissistema. O crescimento da extrema
direita na última década é uma reação e, além disso, uma reação global. Mas uma
reação a quê?
Para um deslocamento.
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A história mudou
Um sector da academia
historiográfica, que me deslumbrou, propõe que a mudança mais profunda que
emerge como consequência da aceleração da globalização é a transformação do
próprio conceito de história e isso tem muito a ver com a ascensão da extrema
direita.
O que defendem é que,
comumente, a história universal tem sido estudada e aprendida como uma história
linear, uma série de etapas (que até têm nome e data de início e de fim) pelas
quais a humanidade caminha para frente, em direção ao “progresso”. Para o bem
dos impérios europeus, a História foi concebida como história ocidental, uma
árvore ascendente em cuja copa estão as nações desenvolvidas (as potências, os
impérios) lideradas por homens brancos de elite que possuem a tecnologia e a
visão do progresso (civilização) e, mais abaixo, as nações a caminho desse
modelo de desenvolvimento e todos os outros grupos subalternos.
Hoje, grupos
subalternos sub-representados ou invisibilizados na história contemporânea
entram em cena levantando novas exigências.
O que propõem estes
novos historiadores, cujo pensamento está descrito no artigo de Hugo e Daniela Fazio, é
que este conceito de História é hoje insustentável. Não é apenas a ascensão da
Ásia, especialmente da China, como desconstrutora desta ideia de história
ocidental, mas a emergência do feminismo e do anti-racismo, com a sua proposta
decolonial, que mudou esta visão da história para uma muito mais global e
diversificado.
Batizaram-na como
história global, a partir do prisma da seguinte verdade preciosa, que, sem
cegueira de gênero ou de classe, é evidente: hoje, grupos subalternos
sub-representados ou invisibilizados na história contemporânea irromperam em
cena levantando novas exigências com novas lideranças e epistemologias, pois há
um deslocamento do mito do Ocidente para um mundo muito mais diversificado.
Esse deslocamento gera
ressentimento em quem os vê perder sua posição de privilégio num mundo que não
os vê mais como autoridade e que, por isso, disputa sua posição de poder. A
extrema direita é isso, uma reação de quem está perdendo privilégios ou teme
perdê-los e, por isso, o sentimento de manipular é o ressentimento.
Não é nem raiva, nem
desencanto político, mas sim uma vitimização ressentida, o apelo ao narcisismo
ferido de alguém que sente que perdeu o seu papel de liderança na história, em
casa ou no trabalho. O aumento do militarismo e da guerra fazem parte desta
reação violenta a um mundo que os está a deslocar.
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A quarta onda
Reação, a
guerra não declarada contra as mulheres modernas é um livro feminista que teve enorme impacto na década de
1990. Nele, Susan Faludi denunciou a reação conservadora contra o avanço das
mulheres naqueles anos e destacou, lucidamente, que essa reação não ocorreu
porque as mulheres haviam alcançado a igualdade plena, mas porque “era possível
para elas alcançá-la”. O livro de Susan Faludi me ajuda a compreender que a
ascensão da extrema direita é uma reação, antes de tudo (embora não só), à
quarta onda do feminismo e garanto que os dados são irrefutáveis.
As mulheres jovens são
muito mais progressistas e os homens mais conservadores e mais propensos a
apoiar a extrema direita.
Em 25 de janeiro deste
ano, o jornal Financial Times publicou um estudo que fez explodir a mente de muitos analistas de extrema direita. Mostra o voto de homens e
mulheres jovens na Coreia do Sul, nos EUA, na Alemanha e no Reino Unido,
concluindo que existe uma enorme lacuna na sua atitude política: as mulheres
jovens são muito mais progressistas e os homens jovens são mais conservadores e
mais inclinados a apoiar a extrema direita.
O que choca mais de um
é que se trata de um fenômeno global que ocorre em todo o planeta.
Li, espantado, as
explicações mais bizarras para este fenômeno que vão desde o fato de as
mulheres serem mais moderadas até ao fato de termos menos contacto com
migrações e disparates desse calibre. É óbvio, sem a cegueira de gênero que
permeia a academia, que é a consequência da quarta onda que assolou o mundo.
Quando surgiu, há quase uma década, fê-lo numa base global, como um movimento
de massas, articulado por meio de redes sociais e com uma forte componente
intergeracional.
É também uma onda
feminista mais anticapitalista do que as anteriores, um feminismo que
desmantela o papel histórico do patriarcado e que venceu a batalha pela
igualdade como aspiração. A extrema direita é uma reação violenta a este
deslocamento, a este destronamento do paterfamilias, do homem
dominante, do criador da história.
Observo que muitas
análises reduzem o machismo e o racismo a atitudes morais e culturais,
recusando-se a assumir que ambas as construções são usadas no capitalismo para
nos explorar ainda mais. O fato óbvio de que as mulheres e os migrantes
constituem uma mão-de-obra mais barata em todo o planeta não parece ter impacto
nas suas análises. Devemos fazer todos os esforços para negar os dados e
continuar a insistir que as mulheres e os migrantes são minorias e que nos
tratam como tal quando a realidade é exatamente o oposto. Quase admiro sua
teimosia.
Posso estar errada,
mas também percebo que a cegueira analítica não está apenas relacionada com o
gênero. Detecto uma resistência obstinada em aceitar que não existe uma relação
direta entre a desigualdade econômica e o crescimento da extrema direita; Ou
seja, a ortodoxia econômica não é útil para analisar o fenômeno. Se assim
fosse, não haveria como explicar o que ocorre nos países escandinavos (os menos
desiguais do mundo) nem que no país onde a desigualdade é mais grave, a África
do Sul, onde a extrema direita não é relevante. É claro que a situação
econômica pode ser um gatilho para o crescimento da extrema direita, mas não é
a sua causa.
Suponho que a fria
métrica econômica não compreende o ressentimento e é o sentimento que
impulsiona a reação. Para entender melhor sugiro o magnífico estudo de Tereza
Capela et al. sobre jovens coreanos de extrema direita que conclui
decisivamente que as suas atitudes são construídas
exclusivamente sobre o ressentimento e a vitimização.
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Sussurros reacionários
Sinto cheiro, de certa
tendência política (da qual nem mesmo a esquerda europeia está livre) que tende
a contemporizar com alguns postulados da extrema direita quando se sente
ameaçada pela sua ascensão; e este também é um fenômeno global. Estou começando
a ouvir, sutil como um sussurro, que talvez nós, feministas, tenhamos ido longe
demais, que devemos atender às demandas dos jovens que estão se movendo para a
direita, que a imigração é um problema, que o que aconteceu na Palestina é não
é um genocídio, que temos que comprar mais armas, que a ecologia não é uma
contradição fundamental…
Defendo a tese oposta:
a antítese da extrema direita e do seu inimigo é defender o feminismo,
especialmente as mulheres jovens e as suas reivindicações, o conceito de classe
versus o de nação, a paz, a diversidade, a igualdade, a justiça social, a
solidariedade, a ecologia e uma mundo comum e fazê-lo, além disso, com uma
visão que vai além da visão estreita e hierárquica do mundo do Ocidente.
Afirmo que a extrema
direita é uma reação ao impulso com que nós, subalternos, começamos a mudar o
mundo. Mas aviso, voltando ao alerta de Suzan Faludi, que a reação não é apenas
a uma mudança produzida, mas à possibilidade da mesma existir; Na verdade, eles
reagem violentamente às mudanças para evitar que elas ocorram. Essa é a extrema
direita: pura reação.
NOTA: *Marga
Ferré, ex-deputada na Espanha, é copresidente da Transform Europe.
Fonte: A Terra é
Redonda