sábado, 5 de outubro de 2024

Superbactéria que representa risco de saúde global é detectada no Nordeste

Uma cepa da bactéria Klebsiella pneumoniae isolada de uma mulher de 86 anos com infecção urinária, admitida em um hospital em uma cidade da região Nordeste em 2022, mostrou-se resistente a todas as opções de antibióticos disponíveis. A paciente faleceu 24 horas após a admissão naquele centro de saúde.

Um grupo de pesquisadores apoiado pela FAPESP sequenciou o genoma da bactéria e comparou com um banco de dados de 408 outras sequências parecidas. O resultado é alarmante. Trata-se de uma cepa detectada anteriormente nos Estados Unidos e que já estava circulando no Brasil, com risco de se espalhar pelo mundo.

Os resultados foram publicados na revista The Lancet Microbe.

“Ela é tão versátil que se adapta às mudanças de tratamento, já que adquire facilmente outros mecanismos de resistência não contemplados pelas drogas existentes ou pela combinação delas. É possível que se torne endêmica nos centros de saúde em nível mundial”, alerta Nilton Lincopan, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e coordenador do estudo.

O pesquisador coordena a One Health Brazilian Resistance (OneBR onehealthbr.com), plataforma que reúne dados epidemiológicos, fenotípicos e informações genômicas de microrganismos classificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como de “prioridade crítica”.

Essa classificação contempla bactérias com escassas opções terapêuticas disponíveis e que merecem medidas de contenção para não serem disseminadas, além de terem prioridade para a pesquisa e desenvolvimento de novos antimicrobianos.

A plataforma tem apoio da FAPESP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Bill e Melinda Gates.

Quando encontram cepas multirresistentes como essa, os serviços de saúde devem notificar a vigilância epidemiológica local. O paciente deve ser isolado e a equipe que o trata deve tomar cuidados redobrados para não transmitir a bactéria para outros pacientes.

“Como patógeno oportunista, em pacientes com imunidade normal a bactéria pode nem causar doença. Mas, em pessoas com imunidade baixa, pode ocasionar infecções graves. Em nível hospitalar, pacientes internados em unidades de terapia intensiva [UTIs] ou em tratamento para outras patologias podem adquirir infecção secundária, como pneumonia. Sem tratamentos disponíveis e com o sistema imune deprimido, muitas vezes podem ir a óbito”, conta o pesquisador.

•                                         Favorecida pela pandemia

Os autores notam que cepas coprodutoras de carbapenemases (enzimas capazes de hidrolisar compostos antimicrobianos) como essa, resistentes a todos os beta-lactâmicos, classe mais utilizada de antibióticos, passaram a ser largamente detectadas durante a pandemia da Covid-19 em países da América Latina e Caribe.

Os achados geraram um alerta epidemiológico pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e pela OMS. Uma análise genômica global publicada recentemente por um grupo liderado por Fábio Sellera, professor da Universidade Metropolitana de Santos, registrou ainda uma rápida evolução dessas bactérias, ressaltando uma nova tendência de resistência e um sério problema de saúde pública.

O medicamento de última geração ceftazidima/avibactam, indicado para o tratamento de bactérias críticas para saúde, como K. pneumoniae produtora de carbapenemase (KPC), foi liberado pela agência norte-americana que regula medicamentos (FDA) em 2015.

Sua aprovação de registro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ocorreu em 2018, por conta do grande número de infecções registradas por KPC.

“Muito provavelmente, internações por Covid-19 associadas a infecções secundárias por esse tipo de bactéria levaram a um aumento global no uso de ceftazidima/avibactam, favorecendo o aparecimento de cepas resistentes a este novo antibiótico”, diz Lincopan.

O procedimento padrão seria que pacientes admitidos com suspeita de infecção bacteriana tivessem seu material clínico coletado para confirmar o diagnóstico e testada a suscetibilidade aos diferentes antimicrobianos disponíveis.

“Provavelmente, cepas produtoras de KPC tratadas com ceftazidima/avibactam evoluíram rapidamente, adquirindo mecanismos de resistência para esta última opção terapêutica. Agora, temos cepas coprodutoras de carbapenemases que não respondem ao tratamento por beta-lactâmicos”, lamenta.

Além do monitoramento permanente das cepas bacterianas encontradas nos hospitais, os pesquisadores ressaltam a importância da prescrição racional dos antibióticos. Atualmente, a plataforma OneBR conta com 700 genomas de patógenos humanos e animais em seu banco de dados.

Para os pacientes, a mensagem é que, quando tiverem antibióticos prescritos para si, façam o tratamento até o fim, mesmo que se sintam bem após dois ou três dias. A prática também evita o surgimento de cepas resistentes.

O trabalho, que teve como primeiro autor o doutorando Felipe Vásquez Ponce, do ICB-USP, foi apoiado ainda por meio de bolsa de doutorado para Johana Becerra na mesma instituição.

 

•                                         Resistência a antibióticos poderá matar mais de 39 milhões até 2050, diz estudo

Mais de 39 milhões de mortes por infecções resistentes a antibióticos são estimadas até 2050, segundo análise global publicada na segunda-feira (16) na renomada revista científica The Lancet. O estudo do Projeto Global Research on Antimicrobial Resistance (GRAM) é o primeiro a se aprofundar sobre os impactos globais da resistência antimicrobiana na saúde.

A análise mostra que mais de um milhão de pessoas morreram devido à resistência a antibióticos em todo o mundo entre 1990 e 2021. No período, as mortes relacionadas à condição entre crianças menores de cinco anos diminuíram em 50%, enquanto aquelas entre pessoas com 70 anos ou mais aumentaram em mais de 80%.

O estudo também faz uma previsão futura, indicando que as mortes diretamente causadas por resistência antimicrobiana aumentarão de forma constante nas próximas décadas, crescendo em quase 70% até 2050 em comparação a 2022, impactando principalmente os idosos. Além disso, no mesmo período, as mortes nas quais as bactérias resistentes a antibióticos desempenham um papel (ou seja, as mortes indiretas) poderão aumentar em quase 75%, de 4,71 milhões para 8,22 milhões por ano.

As descobertas destacam a necessidade de intervenções que incorporem prevenção de infecções, vacinação, minimização do uso inapropriado de antibióticos e pesquisa de novos antibióticos para mitigar o número de mortes causadas pela resistência antimicrobiana previsto para 2050.

“Os medicamentos antimicrobianos são um dos pilares da assistência médica moderna, e o aumento da resistência a eles é uma grande causa de preocupação. Essas descobertas destacam que a RAM tem sido uma ameaça global significativa à saúde por décadas e que essa ameaça está crescendo. Entender como as tendências nas mortes por RAM [resistência antimicrobiana] mudaram ao longo do tempo e como elas provavelmente mudarão no futuro é vital para tomar decisões informadas para salvar vidas”, afirma o autor do estudo, Mohsen Naghavi, líder da equipe de pesquisa de RAM no Institute of Health Metrics (IHME), Universidade de Washington, nos Estados Unidos, em comunicado à imprensa.

O estudo produziu estimativas para 22 patógenos, 84 combinações patógeno-medicamento e 11 síndromes infecciosas, incluindo meningite, infecções da corrente sanguínea e outras infecções. As estimativas foram baseadas em 520 milhões de registros individuais de uma ampla gama de fontes, incluindo dados hospitalares, registros de óbitos e dados de uso de antibióticos.

Uma modelagem estatística foi usada para produzir estimativas de mortes diretamente por resistência a antibióticos e aquelas nas quais a condição desempenhou um papel. Com base nas tendências históricas calculadas, os autores estimaram os impactos globais e regionais prováveis da RAM na saúde de 2022 a 2050.

Também foram produzidas estimativas para cenários nos quais a qualidade da assistência médica e o acesso a antibióticos melhoram no futuro e o desenvolvimento de medicamentos tem como alvo bactérias gram-negativas.

•                                         O que é resistência antimicrobiana?

A resistência antimicrobiana acontece quando bactérias, vírus, fungos e parasitas deixam de responder aos medicamentos, tornando as pessoas mais doentes e aumentando o risco de propagação de doenças e de morte.

No caso das bactérias, esse fenômeno é conhecido como resistência a antibióticos e os microrganismos que apresentam essa resistência são chamados de “superbactérias“.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a resistência é motivada, na maioria, pelo uso indevido e excessivo de antibióticos por parte dos pacientes.

Até o momento, nenhum estudo tinha avaliado as tendências históricas da resistência antimicrobiana, nem havia feito previsões detalhadas dos impactos globais futuros. Em 2022, um primeiro estudo revelou que as mortes globais relacionadas a bactérias resistentes a antibióticos em 2019 foram maiores do que os óbitos por HIV/Aids ou malária, levando diretamente a 1,2 milhão de mortes e contribuindo para outros 4,95 milhões de óbitos.

•                                         Tendências globais

As descobertas revelam que mais de um milhão de vidas foram perdidas por ano entre 1990 e 2021 como resultado direto da resistência antimicrobiana. Em 1990, houve 1,06 milhão de mortes diretamente devido à resistência a antibióticos de um total mais amplo de 4,78 milhões de mortes associadas. Em 2021, a RAM levou diretamente a 1,14 milhão de mortes e foi associada a um total mais amplo de 4,71 milhões de mortes.

Em 2021, houve uma redução nas mortes por RAM em comparação a 2019 (1,27 milhão de mortes diretas por RAM; 4,95 milhões de mortes associadas), devido a reduções na carga de infecções respiratórias não relacionadas à Covid-19. Isso, provavelmente, está relacionado às ações de distanciamento social e outras medidas de proteção adotadas durante a pandemia. A análise da equipe sugere que esse declínio nas mortes por RAM foi apenas temporário.

Ao longo das três décadas, as tendências nas mortes por resistência antimicrobiana passaram por mudanças significativas relacionadas à idade. As mortes entre crianças menores de cinco anos diminuíram em mais de 50% – redução de 59,8% nas mortes diretas por RAM, de 488 mil para 193 mil mortes; redução de 62,9% nas mortes ligadas à RAM, de 2,29 milhões para 840 mil mortes. Isso pode estar relacionado a melhorias na entrega de medidas de prevenção e controle de infecções, como vacinação, entre bebês e crianças pequenas.

No mesmo período, as mortes por RAM entre adultos com 70 anos ou mais aumentaram em mais de 80% — aumento de 89,7% nas mortes diretas por RAM, 519 mil em 2021; aumento de 81,4% nas mortes relacionadas à RAM, 2,16 milhões em 2021. Segundo os pesquisadores, isso pode estar relacionado ao rápido envelhecimento da população e à maior vulnerabilidade dos idosos à infecção.

As regiões onde houve maior aumento nas mortes diretamente causadas pela resistência antimicrobiana, segundo o estudo, foram a África Subsaariana Ocidental, América Latina Tropical, América do Norte de alta renda, Sudeste Asiático e sul da Ásia. De acordo com a análise, as mortes anuais aumentaram em mais de 10 mil entre 1990 e 2021 nesses locais.

Entre os patógenos com maior importância crítica, ou seja, que representam um maior risco de morte, no estudo estão seis dos sete patógenos classificados pela OMS como os mais difíceis de tratar. É o caso da S. aureus resistente a meticilina, cujas mortes aumentaram globalmente de 57.200, em 1990, para 130 mil, em 2021.

Entre as bactérias gram-negativas – algumas das mais resistentes a medicamentos antimicrobianos – a resistência aos carbapenêmicos aumentou mais do que qualquer outro tipo de antibiótico, passando de 127 mil, em 1990 para 216 mil, em 2021.

•                                         Projeções futuras da resistência a antibióticos

Os autores estimam que as mortes por resistência antimicrobiana aumentarão de forma constante nas próximas décadas com base nas tendências atuais. Segundo o estudo, são 1,91 milhão de mortes anuais diretamente relacionadas à RAM projetadas até 2050 — um aumento de 67,5% em relação aos 1,14 milhões de mortes em 2021.

Até meados do século, a RAM também deverá desempenhar um papel em 8,22 milhões de mortes mais amplas – um aumento de 74,5% em relação aos 4,71 milhões de mortes associadas em 2021. No total, entre 2025 e 2050, estima-se que a resistência a antibióticos levará diretamente a mais de 39 milhões de mortes e estará associada a 169 milhões de mortes indiretas pela condição.

As tendências de redução nas mortes entre crianças menores de cinco anos serão mantidas, segundo o estudo, caindo pela metade em 2050 em comparação a 2022 — queda de 49,6%, de 204.000 para 103.000 mortes. No entanto, outras faixas etárias serão acometidas pelo aumento nos óbitos decorrentes da RAM, principalmente entre idosos acima dos 70 anos — aumento de 146% até 2050, de 512.353 para 1.259.409. De acordo com a análise, o maior aumento nessa faixa etária ocorrerá nos países de alta renda.

De maneira geral, mortes futuras por resistência antimicrobiana serão mais altas no Sul da Ásia, segundo o estudo, o que inclui países como Índia, Paquistão e Bangladesh — total de 11,8 milhões de mortes diretas previstas entre 2025 e 2050. As mortes pela condição também serão altas em outras partes do sul e leste da Ásia e da África Subsaariana.

Por fim, o estudo sugere que melhorar o tratamento geral de infecções e o acesso a antibióticos pode evitar 92 milhões de mortes entre 2025 e 2050. Os maiores benefícios seriam no sul da Ásia, África subsaariana e partes do sudeste da Ásia, leste da Ásia e Oceania, com 31,7 milhões, 25,2 milhões e 18,7 milhões de mortes evitadas, respectivamente.

Em um cenário em que novos antibióticos direcionados a bactérias gram-negativas foram desenvolvidos, no estudo, as estimativas indicam que 11,08 milhões de mortes atribuíveis à resistência antimicrobiana poderiam ser evitadas globalmente no mesmo período.

“Houve um progresso real no combate à RAM, principalmente entre crianças pequenas, mas nossas descobertas indicam que mais deve ser feito para proteger as pessoas dessa crescente ameaça global à saúde. Até 2050, infecções resistentes podem estar envolvidas em cerca de 8 milhões de mortes a cada ano, seja como causa direta de morte ou como fator contribuinte”, afirma Stein Emil Vollset, do Instituto Norueguês de Saúde Pública e professor afiliado do IHME.

“Para evitar que isso se torne uma realidade mortal, precisamos urgentemente de novas estratégias para diminuir o risco de infecções graves por meio de vacinas, novos medicamentos, melhor assistência médica, melhor acesso aos antibióticos existentes e orientação sobre como usá-los de forma mais eficaz”, completa.

 

Fonte: CNN Brasil

 

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