Pai de Santo tenta se eleger num Rio de
Janeiro abandonado e cercado de violência religiosa
Uma cidade desolada
após anos de bonança econômica exterminados pelo golpismo que reinstalou a
ideologia do Estado mínimo no Brasil. Este é o Rio de Janeiro que chega às
eleições municipais, após agravamento de crises sociais, como moradia,
transporte e saúde, além da emergência ambiental associada ao modelo de
desenvolvimento que marca o ano de 2024. No meio disso, um aumento da violência
religiosa diretamente relacionado ao poder evangélico na cidade, que atravessa
as fronteiras da legalidade. É neste cenário que se insere a candidatura de Pai
Dário Onísègun, que tenta ser o primeiro pai de santo da câmara dos vereadores.
Na entrevista ao
Correio, pai Dário descreve um cenário comum a quase todas as grandes cidades
brasileiras. Governadas por políticos ligados ao privatismo e de mandatos quase
inexpressivos, às vésperas da eleição o discurso de corte de gastos some e uma série
de intervenções do poder público é realizada. Por um instante, suspende-se a
agenda que inviabiliza qualquer gestão pública focada em bem estar social, suas
políticas de austeridade e regimes de recuperação fiscal paralisantes. De
repente, o Estado tem dinheiro.
“O Rio está todo
maquiado. Há viaturas novas na rua, espaços públicos estão cercados em obra,
manutenção. Por que só agora, do meio do ano para cá? Mas o transporte público
de massa continua o mesmo, as pessoas continuam esperando o mesmo tempo. Não
adianta maquiar nada agora. A poucas semanas da eleição, tudo começa a
acontecer e ser movimentado na cidade. Porém, a cidade precisa ser movimentada
e as pessoas precisam ser atendidas sempre. Na saúde, todos precisam de bom
atendimento. A clínica da família precisa funcionar sempre. Os teatros, os
espaços de cultura, as lonas e arenas culturais precisam funcionar”, criticou.
Candidato que
representa a religiosidade de matriz africana e sua cultura, pai Dário também é
assumidamente gay, o que o coloca como alvo direto do ódio instalado o país
pelas direitas brasileiras. No caso do Rio, um epicentro de conservadorismo,
fundamentalismo religioso e crime organizado no comando da cidade, a situação é
particularmente agressiva em relação a figuras como o babalorixá, que foi alvo
de ameaças recentes. E há uma espécie de anuência silenciosa da prefeitura de
Eduardo Paes, que se vende ao público como uma figura tolerante e amigo de uma
cultura popular frequentemente agredida por tais expressões político-sociais.
“Estou falando de
território. De pessoas de religião de matriz africana que precisam, dentro do
Rio de Janeiro, sair do seu local de nascimento. Terreiros com 50, 60 anos de
existência que foram agredidos. Num contexto onde se tem facção criminosa
formada por pessoas que falam em “soldados de Jesus”, “Complexo de Israel”,
essas pessoas e expressões culturais ou religiosas saem, já que não podem
professar sua fé, andar com a sua roupa ritual. E essa prefeitura não faz um
movimento para que isso seja cuidado. Além disso, os líderes religiosos que
ocupam cadeiras no parlamento, e são muitos, não conseguem passar uma mensagem
clara aos seus fiéis”.
Na visão de pai Dário,
os tempos são difíceis e mesmo a vitória de Lula em 2022 pouco alterou a rota
de esgarçamento social e ambiental que vive o país. Representante de movimentos
sociais e culturais, tem clareza de que o caminho para mudanças sociais está
quase interditado na via institucional, mas diminuir o monopólio político de
alguns grupos tem efeitos práticos.
“Não é só a eleição
que muda o país, mas contribui muito porque colocar pessoas que representam
lugares e movimentos sociais incide na realidade. Nós que viemos de movimento
social precisamos. E cada um levanta a sua bandeira. Precisamos ocupar o lugar
de ‘candidatos enlatados’, isto é, alguém preparado para ser um político
profissional, mas que não sabe o que está fazendo”, afirmou.
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Confira a entrevista completa com Pai Dário Onísègun.
• Como está o cenário eleitoral do Rio? Há
possibilidades de avanço de figuras progressistas na Câmara de Vereadores, num
contexto onde a eleição para a prefeitura parece decidida?
Pai Dário: Só existe
eleição ganha depois que se conferem as urnas. E a cidade está muito acostumada
com um prefeito que bota fama de bon vivant. Isso o Eduardo Paes faz muito bem.
Mas isso não significa que não possamos reagir, não só contra o Eduardo Paes,
mas principalmente contra o bolsonarismo que está aqui, como está no Brasil
inteiro.
De algum modo,
tentamos com as nossas forças, com a nossa ideologia, parar isso. Com relação à
câmara, nosso campo progressista e de esquerda precisa começar a entender que
todas as campanhas são válidas, seja ela majoritária (executivo) ou
proporcional (legislativo). Estamos falando de uma cidade cuja câmara tem um
número mínimo de mulheres. De 51 cadeiras, só 11 ocupadas por mulheres. Uma
cidade que não tem um vereador eleito LGBTI assumidamente, um Pai de Santo.
Precisamos dar uma virada de chave que sirva de exemplo para o resto do país.
Hoje, a eleição para
vereador é uma coisa feita por bairros, por setores. É como se cada bairro e
setor da cidade tivesse seu próprio programa, dada a diversidade de
necessidades entre si. A minha candidatura, para além disso, vem com uma cara
muito específica, que é o povo de terreiro, o povo de axé, do candomblé, da
umbanda, das religiões de matriz africana, que sofrem muito dentro dessa
cidade, com preconceito, racismo religioso e todo um histórico de intolerância
religiosa, pois essas expressões são agredidas já há algum tempo.
O fundamentalismo
religioso vem crescendo a cada dia dentro dessa cidade e deixamos de ter
espaço. Para além disso, eu sou um homem ligado à cultura, à arte, à educação,
tenho mil projetos de trabalhos enquanto movimento social, enquanto pessoa
física, enquanto Babalorixá, que é o sacerdote de religião de matriz africana.
Agora estou me colocando para representar este setor na vereança do município
do Rio de Janeiro, justamente porque acredito nessa mudança.
• Quais seriam as áreas e temas gerais
onde uma câmara dos vereadores com sua presença poderia atuar positivamente?
Pai Dário: O Rio de
Janeiro, de fato, é uma cidade maravilhosa, cartão postal, mas precisa ser
maravilhosa de verdade para todo mundo. Quando eu me coloco no lugar de um
homem preto, favelado, LGBTI, um homem de terreiro para disputar esse lugar, é
porque essa diversidade precisa acontecer no parlamento também. Temos uma
bancada enorme da Bala, da Bíblia, do Boi, em todos os lugares. No Rio de
Janeiro não é diferente.
A cidade é
majoritariamente preta, mas cadê esse empretecimento nos poderes dessa cidade?
O maior espetáculo da terra está dentro do município do Rio de Janeiro. E o que
deixa para o meu povo, que constrói esse espetáculo? O que fica depois que
passa a semana do carnaval? A cidade precisa dialogar e ouvir, talvez até ouvir
mais do que dialogar, com quem a constrói todos os dias.
Quem movimenta a
cidade, quem mobiliza a cidade, são as pessoas como eu, os favelados, os que
moram nas periferias, os mais pretos, os mais pobres, que de algum modo só
somos lembrados em época de eleição ou no carnaval. Eu não quero ser lembrado
só no carnaval. Eu quero ajudar a legislar para a cidade, porque estou dentro
da cidade, eu faço parte disso.
• Políticas culturais seriam um foco de
seu mandato no sentido de serem um bom caminho para a inclusão social e
econômica?
Pai Dário: Quando
falarmos de educação, devemos cumprir a lei nº 10.639, e inserir cultura e
história africana nas escolas de ensino médio e fundamental, também em creches,
asilos e orfanatos. Através da arte-educação chegamos em espaços onde muitas
vezes o poder público não chega, como se vê em nossa experiência com a
Companhia de Aruanda.
Como membro do
movimento cultural de Madureira, terra do jongo e do samba, destaco que a
cidade, que tem o segundo maior PIB do país, não chega a 2% de orçamento para a
cultura. Como uma cidade vendida enquanto referência e patrimônio cultural não
reconhece, não valoriza a sua própria cultura? Não só escolas de samba, são
também rodas de jongo, os artistas populares, pessoas que às vezes não
conseguem se inscrever num edital, porque o edital é exclusivo, não inclusivo.
Deve-se ter determinado tempo de CNPJ, e outras exigências que afastam. Gente
que tem um trabalho lindo numa praça pública, mas não tem um CNPJ, fica fora. O
edital é preparado para que não se consiga fazer inscrição.
Falo isso pois tive,
com o perdão da frase, de me capacitar e institucionalizar no que hoje chamamos
de Companhia de Aruanda, a fim de escrever um projeto e captar recursos para
trabalhar com arte, educação e cultura. Colocar um espetáculo dentro dos teatros
hoje é dificílimo, porque são as mesmas companhias que ocupam os mesmos
espaços, os horários nobres, ganham os mesmos editais. Não tem alguma coisa
errada aí? Precisamos de alguém que vá legislar para o povo.
Não dá para o Rio de
Janeiro do tamanho que é, com a diversidade cultural que tem, ficar preso a um
único grupo. Sempre são os mesmos que ganham os mesmos editais e não tenho nada
contra nenhuma companhia que ganha edital. Mas sou da política quilombola, que
pensa em compartilhamento, pensa que todo mundo precisa ser atendido, desde
quem mora na zona sul até quem mora em Santa Cruz, Sepetiba, bairros
esquecidos. Madureira, de onde venho, ainda é famoso pelo samba, o jongo, mas
existem bairros com uma população enorme que não estão bem cuidados.
• Como avalia a atuação desta mesma câmara
nos últimos anos e nesta legislatura?
Pai Dário: O Rio está
todo maquiado. Há viaturas novas na rua, espaços públicos estão cercados em
obra, manutenção. Por que só agora, do meio do ano para cá? Mas o transporte
público de massa continua o mesmo, as pessoas continuam esperando o mesmo
tempo. Não adianta maquiar nada agora. E aí eu quero ver em janeiro, por
exemplo, depois que passar a eleição, ou já em novembro.
Repito: as coisas têm
de ser feitas para todo mundo. A poucas semanas da eleição, tudo começa a
acontecer e ser movimentado na cidade. Porém, a cidade precisa ser movimentada
e as pessoas precisam ser atendidas sempre. Na saúde, todos precisam de bom atendimento.
A clínica da família precisa funcionar sempre. Os teatros, os espaços de
cultura, as lonas e arenas culturais precisam funcionar.
Outra coisa importante
é ter um funcionalismo público para esse lugar, não pode funcionar como acerto
político partidário. Se estou legislando, governando um espaço, não pode ser o
meu partido político que vai governar aquilo ali. Precisa ter um funcionário
público, concursado, capacitado para reger, tomar conta, dirigir ou coordenar
um espaço público.
Não dá pra ser um
lugar onde só é aceito aquilo que convenha ao partido que governa no momento.
As ruas do centro da cidade estão tomadas por pessoas em situação de rua. E a
prefeitura tentou criar um sistema de internação forçada de tais pessoas. O que
é isso? A prefeitura precisa ter uma rede de apoio com assistente social, isso
sim.
Além disso, por que
tais pessoas estão em situação de rua? Ninguém deve tirar as pessoas da rua à
força para levar ao abrigo, mas vamos dialogar para entender o que está
acontecendo. E 80% dos abrigos da sociedade são evangélicos. Nada contra o
evangélico. Mas por que uma denominação religiosa abriga essas pessoas? Porque
é um outro acordo político. Acredito que possamos juntar a política com
religiosidade, sim. É o que estou fazendo quando levanto a bandeira do povo de
terreiro. Mas não podemos pegar uma denominação religiosa, promover seus
interesses particulares e fazer dela a cereja do bolo da campanha de ninguém.
• Há uma política de privilégio tácito a
igrejas evangélicas na gestão Paes?
Pai Dário: O espaço
religioso precisa ser cuidado como espaço religioso, até porque o Estado é
laico. Por um Estado laico é que eu me coloco nesse momento, nesse lugar, como
pai de santo, como Babalorixá, por conta desses últimos quatro anos, quando o
número de crimes e episódios de intolerância religiosa só aumentou.
Estou falando de
território. De pessoas de religião de matriz africana que precisam, dentro do
Rio de Janeiro, sair do seu local de nascimento. Terreiros com 50, 60 anos de
existência que foram agredidos. Num contexto onde se tem facção criminosa
formada por pessoas que falam em “soldados de Jesus”, “Complexo de Israel”,
essas pessoas e expressões culturais ou religiosas saem, já que não podem
professar sua fé, andar com a sua roupa ritual. E essa prefeitura não faz um
movimento para que isso seja cuidado.
A cidade precisa tomar
conta de todos os territórios. Mas tem alguma coisa acontecendo que precisamos
entender. Para além disso, os líderes religiosos que ocupam cadeiras no
parlamento, e são muitos, não conseguem passar uma mensagem clara aos seus
fiéis: parem de tacar pedra no semelhante, parem de agredir as pessoas de
terreiro, parem de remover, de tirar as pessoas da força de forma brutal dos
seus territórios.
• Como observa essas eleições municipais
no meio do mandato de um presidente eleito pela esquerda em um contexto social,
econômico, ambiental, institucional tão duro como o que se vive hoje no Brasil?
Pai Dário: Estamos
passando por um processo muito ruim, mesmo com a vitória de um candidato de
esquerda nas eleições presidenciais. Mas a carga do impeachment e do golpismo
continuem pesadas. Nem precisa dizer o que foi o mandato do inominável, o
número imenso de mortes na pandemia o fascismo que ele desperta em grupos que
flertam com o terrorismo. Eles já existiam, estavam dormindo, acordaram e
ganharam força. Agora, se não tivermos uma esquerda pensante e unida pra
combate-los, não adianta nada ter o Lula na presidência.
Vemos que a situação
geral não está nada maravilhosa, como deixa evidente a crise climática e outras
questões, como economia, dentro de um contexto de forte influência das direitas
neste e outros temas. Mas me coloco na esquerda politicamente porque é onde
vejo possibilidades de futuro melhor. E acredito na importância de criarmos um
processo político que possa eleger, por exemplo, um pai de santo, quilombolas,
homens e mulheres pretos, por todo o país.
Afinal, se pudemos
construir esse país, também podemos legislar e sabemos comandar. Esse país é
construído por mãos de homens e mulheres pretas. Por que não podemos tirar a
mão do cimento e colocar na caneta? Passou da hora.
• Diante de todas as crises e dilemas aqui
mencionados, ainda é possível modificar a realidade das desigualdades
estruturais do país por meio das instituições, no atual estágio de predomínio
do capital sobre os sistemas políticos tradicionais?
Pai Dário: É um
momento onde todos os dias sofremos todos os tipos de preconceito. Eu acabei de
sofrer um ato de intolerância religiosa a 200 metros da minha casa. A pessoa
que pichou o meu carro poderia ter me dado um tiro ou uma facada. É um momento
muito delicado. Vemos um circo de horrores e barbárie todos os dias na TV,
promovido por quem gosta disso pra vender e, de forma dissimulada, fazer
campanha para certas candidaturas.
Mas tem jeito, sim.
Não é só a eleição que muda o país, mas contribui muito porque colocar pessoas
que representam lugares e movimentos sociais incide na realidade. Nós que
viemos de movimento social precisamos. E cada um levanta a sua bandeira.
Precisamos ocupar o lugar de “candidatos enlatados”, isto é, alguém preparado
para ser um político profissional, mas que não sabe o que está fazendo. Assim
não conseguimos mudar nada.
Nada está crescendo e
avançando. Ainda assim, realmente acredito na representatividade. Quando se tem
um candidato preto, uma candidata preta, um candidato LGBTI, um candidato de
terreiro, um candidato quilombola, a sociedade passa a olhar tais setores de um
jeito diferente e quem se identifica também se sente de forma diferente.
Mas não é só eleição
que muda a realidade. Investir em movimento social, em arte e educação na
juventude é algo que precisa ser feito sempre, diariamente. É fundamental
investir na juventude. Por fim, precisamos governar para o todo social e suas
distintas representações, acabar com a cultura dos acordinhos de espaço no
poder de grupos específicos, que fazem dessa forma de atuação política um fim
em si mesmo.
Fonte: Por Gabriel
Brito, no Correio da Cidadania
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