quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Para ir além do discurso, governo Lula precisa liderar o tratado global contra poluição plástica

À medida que a Semana do Clima da ONU reúne líderes globais em Nova Iorque, a atenção se volta para uma crise muitas vezes subestimada: a crescente ameaça dos plásticos ao clima e a ausência de posicionamentos dos líderes de estados sobre a redução da produção de plástico como medida de mitigação das emissões de gases de efeito estufa. A indústria de combustíveis fósseis é a principal ameaça às mudanças climáticas, mas foi somente na COP28 (2023) que a sua transição foi aprovada, sendo essa uma conquista importante. No entanto, uma brecha significativa permanece: o impacto dos combustíveis fósseis na produção de plásticos. Com o avanço das tecnologias de eletrificação, a indústria do petróleo e gás redireciona seus investimentos para a petroquímica e produção de plásticos, o que pode triplicar as emissões de gases de efeito estufa provenientes desses materiais até 2050, ameaçando 20% do orçamento global de carbono (Laboratório Nacional Lawrence Berkeley – 2024)

Neste contexto podemos destacar a fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizada na abertura da 79ª Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (24/09). Em seu discurso sobre a questão climática, o presidente Lula reconheceu os desafios enfrentados pelo Brasil, destacando os esforços de seu governo para superá-los. Ele afirmou que o mundo está cansado de acordos climáticos não cumpridos, da falta de ação em relação à redução de emissões de carbono e da ausência de auxílio financeiro aos países pobres, ressaltando que 2024 caminha para ser o ano mais quente da história moderna. Entretanto, o Brasil tem sido resistente em defender a redução da produção de plástico durante as sessões de negociações do Tratado Global sobre a Poluição Plástica. Segundo apuração da Folha de S.Paulo, essa resistência tem sido liderada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).

A crise climática global exige medidas imediatas e contundentes em todos os setores, e a produção de plásticos é um dos grandes vilões que ameaçam os esforços internacionais para limitar o aquecimento global. Segundo um recente estudo do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, a produção de plásticos primários sozinha poderá comprometer drasticamente o orçamento global de carbono, colocando em risco as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris. Mesmo que setores como transporte, energia e agricultura atinjam uma descarbonização completa, a contínua expansão da produção de plásticos poderá consumir, até 2060, todo o orçamento de carbono disponível (LBNL plastic policy brief ES – GAIA 2024).

A fim de evitar um colapso climático, especialistas afirmam que cortes profundos e rápidos na produção de plásticos são essenciais. Para alinhar a produção com os objetivos do Acordo de Paris, será necessário reduzir a fabricação de plásticos primários entre 11,8% e 17,3% ao ano a partir de 2024 (LBNL plastic policy brief ES – GAIA 2024). Essa medida não só reduziria as emissões de gases de efeito estufa associadas à extração e produção de polímeros, como também preservaria o orçamento de carbono para setores essenciais à economia global.

As evidências apontam que o impacto dos plásticos no clima começa já na extração de combustíveis fósseis, utilizados como matéria-prima e fonte de energia para a produção de plásticos. O ciclo de vida completo dessa cadeia produtiva precisa ser rigorosamente avaliado e regulamentado para evitar que o aumento da produção inviabilize os esforços globais de mitigação climática (LBNL plastic policy brief ES – GAIA 2024).

É imprescindível que políticas internacionais, como o Tratado de Plásticos – atualmente em negociação, estabeleçam metas anuais de redução de produção, com foco em resultados concretos e mensuráveis. Apenas dessa forma será possível evitar o esgotamento prematuro do orçamento de carbono global e garantir que as futuras gerações não herdem um planeta irreversivelmente impactado pela crise climática.

Os plásticos são compostos de petróleo, gás e substâncias químicas, muitas delas altamente tóxicas. A reciclagem foi apresentada como uma solução pela indústria na década de 1980 como parte da gestão de resíduos, mas ela não atinge sequer 10% da produção mundial, falha em mitigar a crise, uma vez que continua a poluir com substâncias químicas perigosas. Estudos recentes destacam que mais de 16.000 substâncias químicas estão presentes no plástico, das quais 4.200 são consideradas substâncias químicas perigosas para a saúde e para o meio ambiente. A produção crescente de plásticos ameaça tanto o clima quanto a biodiversidade e a saúde pública, com impactos comprovados sobre a fertilidade, o desenvolvimento cerebral e o sistema imunológico dos seres vivos, entre outros danos de difícil reversão.

O Tratado de Plásticos, atualmente em negociação na ONU, deve ser considerado não apenas um acordo ambiental, mas também de saúde, abordando o ciclo de vida completo dos plásticos e sua superprodução. Se falharmos em regulamentar essa expansão, as consequências climáticas e sanitárias para as futuras gerações serão desastrosas.

Diante deste cenário, grupos de organizações da sociedade civil pedem que os negociadores do Tratado sobre a Poluição dos Plásticos cheguem a um acordo que aborde de forma eficaz a poluição por plásticos em todo o seu ciclo de vida. Com mais de 3500 sugestões de texto, após a rodada de negociações que ocorreu em abril deste ano no Canadá, o desafio para os sete dias restantes de negociação (INC-5) previstas para ocorrerem na Coréia do Sul, em novembro, é grande. Como consequência deste cenário, uma série de reuniões estão ocorrendo sem transparência e sem a participação da sociedade civil. Para enfatizar a necessidade de garantir uma participação pública robusta no processo de negociação, as organizações da sociedade civil organizaram diversas ações simultâneas que serão realizadas por grupos em vários países para apoiar um tratado ambicioso e eficaz, que inclua medidas juridicamente vinculantes e normas que abracem todas as fases da cadeia produtiva dos plásticos.

As reivindicações incluem a eliminação de substâncias químicas perigosas, apoio a sistemas de reutilização, um mecanismo financeiro robusto para transferir recursos dos países desenvolvidos para os em desenvolvimento e medidas para uma transição justa para trabalhadores afetados pela cadeia de produção de plásticos. Com a última sessão de negociação (INC-5) prevista para novembro em Busan, Coreia do Sul, os grupos continuam a pressionar por um tratado que trate a crise do plástico de forma integral, indo além da difícil tarefa de regular a gestão de resíduos, para garantir soluções globais duradouras e eficazes.

 

•        Direitos humanos na agenda do clima no Brasil: uma ausência sentida

“Sempre que uma floresta estiver em pé no Brasil, isso é graças ao trabalho de pessoas defensoras de direitos humanos”. Este é um trecho das Observações e Recomendações preliminares da Relatora Especial das Nações Unidas sobre a situação das pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, em missão realizada no Brasil em abril de 2024. Esta afirmação é provocadora quando os três poderes do Estado brasileiro assinaram um Pacto pela Transformação Ecológica. Mais ainda considerando que a nova versão do Plano Clima está sendo debatida amplamente por meio de plenárias presenciais e processo participativo virtual, e que passaremos pela revisão da Contribuição Nacionalmente Determinada – NDC no âmbito do Acordo de Paris.

As agendas de clima e direitos humanos no Brasil precisam avançar conjuntamente. As emissões de gases de efeito estufa no Brasil são compostas majoritariamente pelos setores de agropecuária e mudança de uso da terra e floresta. Em 2022, de acordo com dados do Observatório do Clima, estes setores responderam por 65% do total de 1,7 milhões de toneladas de CO2. Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que o Brasil é um dos países onde mais defensores das florestas são assassinados no mundo. De acordo com a ONG Global Witness, 34 foram mortos em 2022 no Brasil, sem contar ameaças, invasões e todos os tipos de violências.

Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, publicado no Observatório Nacional de Direitos Humanos indicam que mais da metade das pessoas inseridas no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas são povos indígenas e comunidades tradicionais e mais de 70% estão no programa devido a atuação em conflitos no campo. Além disso, dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos também publicados no ObservaDH indicam que a principal motivação para denúncias entre 2020 e 2024 foram crimes ambientais (20%), relacionados a expansão urbana, expansão agropecuária, extrativismo mineral e vegetal, e caça, seguidos por conflitos agrários (19%) relacionados também a expansão urbana, expansão agropecuária e regularização fundiária.

Assim, se o Brasil quiser ser protagonista na agenda de mudanças climáticas e apresentar compromissos compatíveis com o teto de 1,5ºC, seja na frente de mitigação ou na de adaptação, deve o ser também na agenda de direitos humanos.

Dentre os compromissos do Pacto pela Transformação Ecológica, estão aceleração do ordenamento territorial e fundiário, medidas de celeridade e segurança jurídica em procedimentos administrativos e processos judiciais, estrutura e capacidade institucional, geração de trabalho e elaboração de estratégias de adaptação com especial atenção a populações em situação de vulnerabilidade. No entanto, a expressão “direitos humanos” não aparece uma vez sequer no documento.

Já a versão preliminar do Plano Clima tem como visão colocar “o Brasil na trajetória de ser um país resiliente, sustentável, seguro, justo e desenvolvido, com o governo e sociedades engajados diante de um clima em mudança.” O plano apresenta a transição justa como estratégia transversal para a ação climática e define justiça climática como um eixo norteador, com “enfoque plural sobre as relações e desigualdade sociais e institucionais históricas que produzem as alterações climáticas, tornam as pessoas vulneráveis às ameaças e moldam as respostas às mesmas.” Dentre os objetivos específicos do Plano, há o enunciado de direitos como segurança alimentar e hídrica, bem-estar de populações e redução de desigualdades. Dentre os princípios, está a promoção da justiça climática com perspectivas de gênero, raça, etnia, idade, classe social e territórios. Ainda, na Estratégia Nacional de Mitigação, há previsão de análise de impactos socioeconômicos do plano. Neste documento, contudo, também não há uma menção sequer aos direitos humanos de maneira direta.

O Plano Clima foi submetido a consulta por meio da plataforma Brasil Participativo entre os dias 5 de junho e 17 de setembro de 2024. Dentre as 1.290 propostas apresentadas, apenas oito[1] têm menção direta a direitos humanos. A busca de propostas sobre justiça climática gera resultado maior (17) e quantidade superior de votos[2].

A ausência de diálogo entre a agenda do clima e de direitos humanos não é novidade. Os princípios e objetivos da Política Nacional da Mudança do Clima (Lei nº 12.187/2009) mencionam a participação cidadã, o desenvolvimento sustentável, distribuição de ônus e encargos de modo equitativo e equilibrado, o atendimento às necessidades comuns e particulares de populações e comunidades e a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático. A PNMC não trata, porém, o combate e a adaptação às mudanças climáticas como essencialmente relacionados à realização de direitos humanos.

O Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM), criado em 2023, é o órgão responsável por coordenar as estratégias do Brasil no combate às mudanças climáticas, incluindo a definição das contribuições nacionalmente determinadas no âmbito do Acordo de Paris e a implementação da PNMC. Os Ministérios da Mulher, da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas passaram a fazer parte do CIM a partir de junho de 2024, quando houve alteração da composição do CIM. Já o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não faz parte do CIM.[3]

A relação de reforço entre a proteção de um meio ambiente sustentável, limpo e saudável e a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos é tema presente tanto nas resoluções da Assembleia Geral quanto no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.[4] No caso do Brasil, a relação entre as agendas deve acontecer para além de enunciados de vontade abstratos como está no Pacto pela Transformação Ecológica, em que a questão aparece sob o guarda-chuva da justiça social, ambiental e climática, apresentadas sob um enfoque de justiça distributiva, de redução de desigualdades e distribuição mais equitativa de benefícios do progresso econômico.

O discurso do Presidente Lula na abertura da 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas reforça uma visão parcial de justiça, com enfoque distributivo, ao mencionar por exemplo, a tradicional ênfase no argumento de que o país possui a matriz energética mais limpa. Uma consulta ao Atlas de Justiça Ambiental[5] apresentou mais de 20 casos de barragens ou conflitos sobre água no Brasil, dentre eles casos relacionados a hidrelétricas como Balbina, São Luis do Tapajós, Teles Pires, Dardanelos, Jirau e Santo Antônio, e Belo Monte, dentre tantos outros. A métrica da justiça distributiva, ao ser utilizada como parâmetro para a “transformação ecológica” do país, torna palatável essas consequências, naturalizando violações de direitos humanos como um mal necessário para o desenvolvimento – ainda que limpo, a partir do enfoque na contabilidade de carbono emitido.

Em resumo, a justiça, terminologia utilizada no Plano Clima e no Pacto pela Transformação Ecológica, é orientada por princípios de proteção que definem o que é o bem e para quem ele é devido. Os direitos descrevem as regras para a implementação da justiça. Apesar destes documentos apontarem avanços nas frentes de justiça social e retributiva, a política pública para enfrentamento da mudança climática no Brasil deveria reforçar que fará a transição ecológica junto com a promoção, a proteção e a defesa dos direitos humanos e o reforço dos compromissos com os quais o país é signatário, pois estas agendas se reforçam.

Um posicionamento mais assertivo sobre a relação entre as agendas do clima e direitos humanos resultaria, por exemplo, na mudança de perspectiva sobre as chamadas “externalidades negativas” na Estratégia Nacional de Mitigação – ou seja, quando políticas de mitigação envolvem, por exemplo, o deslocamento de pessoas e a ausência de consultas prévias, informadas, livres e consentidas. Na Estratégia Nacional de Adaptação, há a necessidade de revisão de arcabouços normativos, de governança e desenho de protocolos de resposta a ações emergenciais motivadas especialmente por desastres ambientais, além de previsão de orçamento em pastas marginalizadas na agenda, dentre elas os ministérios que atendem públicos em situação de vulnerabilidade e que lidam com a intersecção das agendas.

Explicitar a agenda de direitos humanos não significa reforçar uma abordagem antropocêntrica de justiça ou de direitos, desde que o conceito de justiça também se amplie para além do aspecto distributivo e reforce as questões procedimentais – como o respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – e de reconhecimento, com destaque para saberes e visões de mundo indígenas e de comunidades tradicionais, que estão diretamente relacionadas e imbricadas com o território.

Por fim, e reflexo desta ausência sentida, há o Acordo de Escazú sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, aprovado em 2018 e encaminhado ao Congresso brasileiro para ratificação em 11 de maio de 2023. A ratificação do Acordo é  uma oportunidade do país melhorar  suas políticas ambientais e de proteção aos defensores ambientais, e junto com o enunciado direto do Governo Federal com os compromissos de direitos humanos na agenda climática – em especial no Plano Clima, nas questões contextuais da nova versão da NDC, e nos desdobramentos do Pacto Nacional pela Transformação Ecológica – indicariam  uma posição brasileira pela mitigação e adaptação coerente, enraizada na situação atual do país e comprometida com reconstrução de ambas as agendas. A ausência sentida é oportunidade de refazer.

 

Fonte: Le Monde

 

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