quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Fernando Nogueira da Costa: ‘Leis da economia digital’

As sete leis universais são princípios filosóficos derivados do Hermetismo, tradicionalmente atribuídos ao antigo sábio Hermes Trismegisto. Essas leis não são “herméticas”, mas sim entendidas como princípios fundamentais para se aproximar da realidade (“a verdade”) em diferentes níveis, tanto no plano físico quanto no mental e espiritual.

Usarei aqui essas leis como uma abordagem simbólica ou metafórica para entender as dinâmicas mais profundas e as interações sistêmicas via moeda digitalizada nas economias contemporâneas. Interpretarei essas leis como metáforas para a circulação da moeda escriturada digitalmente, um fenômeno econômico e tecnológico.

A lei do mentalismo é: “o todo é mente; o universo é mental”. Essa lei sugere a realidade ser construída e influenciada pela mente e pelo pensamento. Tudo começa no campo mental de acordo com uma das duas maiores tradições da filosofia ocidental: a idealista. A outra é a materialista.

De acordo com esse “mentalismo”, o sistema monetário digital é criado e moldado pelas ideias humanas. Nesse sentido, o valor da moeda é, em última instância, uma construção mental baseada na confiança e aceitação social.

A lei da correspondência é: “o que está em cima é como o que está embaixo; o que está dentro é como o que está fora”. Essa lei reflete a ideia de existirem padrões e correlações entre diferentes níveis da realidade (microcosmo e macrocosmo).

Essa “correspondência” aparece nas dinâmicas de fluxo de capital digital. Refletem padrões econômicos maiores (resultante macro) e menores (decisões micro), como a relação entre a economia global e a local.

A lei da vibração é: “nada está parado; tudo se move; tudo vibra”. Tudo no universo está em constante movimento e vibração, desde a matéria até as frequências mais sutis do pensamento.

Essa “vibração” monetária aparece por as transações financeiras digitais estarem em constante movimento e transformação. O dinheiro nunca permanece estático, assim como o fluxo constante de dados e informações circulantes no sistema financeiro digital.

A lei da polaridade é: “tudo é duplo; tudo tem dois polos; tudo tem o seu oposto”. Tudo tem dois aspectos contrastantes, e os opostos seriam essencialmente a mesma coisa, em diferentes polos.

A “polaridade” é comum por haver diversos opostos no sistema econômico capitalista, antagônico por definição, como abundância e escassez, riqueza e pobreza. A moeda digital também é facilitadora tanto do crescimento da renda e riqueza quanto da desigualdade, dependendo do seu uso.

A lei do ritmo é: “tudo flui, para dentro e para fora; tudo tem suas marés; tudo sobe e desce”. Essa lei reconhece os ciclos e movimentos de oscilação no universo se refletirem também na vida cotidiana e nos processos naturais.

Como é esse “ritmo” na economia financeira? O sistema monetário segue ciclos econômicos de crescimento e recessão, quando não depressão, e as oscilações do mercado digital refletem esses movimentos de expansão e contração.

A lei de causa e efeito é: “toda causa tem seu efeito; todo efeito tem sua causa”. Essa lei expressa o princípio de nada acontecer por acaso, mas sim como resultado de uma cadeia de causas e efeitos.

A “causa e efeito”, na atividade econômico-financeira é o objeto de pesquisa da ciência econômica. Decisões econômicas e políticas (causas) afetam diretamente a circulação e o valor da moeda digital (efeitos). Políticas monetárias ou mudanças na confiança no sistema financeiro desencadeam efeitos em cadeia.

A sétima lei universal é a lei de gênero: “o gênero está em tudo; tudo tem seus princípios masculino e feminino”. Isso se refere à presença de energias criativas masculinas e femininas em tudo no universo, não apenas em termos de biologia, mas como princípios de criação e equilíbrio.

O “gênero” também é metafórico. A criação de moeda digital envolve aspectos ativos (masculino) como a emissão e circulação, e receptivos (feminino), como a aceitação e armazenamento, sugerindo um equilíbrio entre forças criativas e estruturais no sistema financeiro inseparável da economia capitalista.

A aplicação das sete leis universais à circulação da moeda escriturada digitalmente em uma economia sem papel moeda exige a confiança nas escriturações digitais em tempo real. Desempenha um papel central na viabilização de todo o fluxo econômico, desde o pagamento de salários até a acumulação de riqueza financeira via juros compostos.

Em um sistema baseado exclusivamente em moeda digital (escritural ou criptomoedas), todo o fluxo de recursos ocorre de maneira virtual. A economia, portanto, depende de um sistema de escrituração digital capaz de registrar, verificar e autenticar transações em tempo real, garantindo a integridade e a confiança no processo.

Quando as empresas pagam salários, o dinheiro é transferido eletronicamente para as contas correntes dos trabalhadores. Esse processo depende de escrituras digitais. Elas documentam a transação, assegurando o depósito à vista ter sido corretamente realizado e permitem a moeda digital ser validada e transferível.

Ao utilizar esse dinheiro para gasto em consumo (compra de bens e serviços), novamente, a transação é registrada digitalmente, e as partes envolvidas confiam no valor ser transferido com segurança e precisão, sem intermediários físicos. O processo de compra e venda digital depende da confiança mútua nos sistemas de pagamento e escrituração.

Quando o dinheiro não é gasto e, em vez disso, é aplicado em ativos financeiros (como investimentos ou depósitos a prazo e de poupança), ele entra em processos seguidores das mesmas regras de confiabilidade e escrituração digital. A acumulação de riqueza via juros compostos, por exemplo, é um processo de matemática financeira (prazo, juros e rendimentos periódicos até o valor futuro), registrado digitalmente, onde a confiança reside no cálculo preciso do rendimento e na credibilidade da instituição financeira com plataforma digital ofertante de tal serviço de gestão do dinheiro.

A confiança nas escriturações digitais, portanto, sustenta todo o ciclo econômico, permitindo as transações acontecerem de forma fluida e segura. Além disso, essa confiança deve ser protegida por mecanismos como criptografia, auditorias financeiras, regulação estatal, supervisão bancária do Banco Central e confiança pública nas instituições financeiras.

A ideia de o capital ser trabalho acumulado tem raízes em teorias do valor clássicas, como as de Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. Em um contexto de economia digital, essa ideia continua a fazer sentido, mas com algumas adaptações.

O capital – entendido como riqueza acumulada em forma de dinheiro, propriedades imobiliárias, ativos financeiros – é visto como o resultado de um processo no qual o trabalho gera o valor adicionado. Quando o trabalhador recebe salários digitais pelo seu esforço produtivo, esses salários representam a recompensa pelo trabalho realizado.

O dinheiro digitalizado representa uma forma de acumulação de valor criada pelo trabalho. Mesmo na economia digital, o trabalho, seja físico, seja intelectual ou criativo, gera um retorno financeiro. Esse retorno, se não for imediatamente gasto, é acumulado e investido, tornando-se capital crescente com o tempo, por meio de juros compostos ou investimentos.

Quando o capital é investido, os juros compostos funcionam como multiplicadores de capital, porque aumenta a quantidade de riqueza acumulada ao longo do tempo. Nesse sentido, o dinheiro digital, gerado pelo trabalho, deve ser visto como uma forma de trabalho acumulado, cujo valor se expande através dos mecanismos financeiros da economia digital. Assim como o aluguel é o pagamento pelo usufruto de propriedade imobiliário por um locador, os juros remuneram o custo de oportunidade por o próprio possuidor não usufruir diretamente de seu uso.

Em uma economia sem papel moeda, a distinção entre trabalho e capital não muda essencialmente, mas a forma como o capital é gerido e acumulado sim. O capital continua a ser visto como a materialização de trabalho passado, porém, agora ele existe predominantemente em forma digital. Isso cria outras dinâmicas.

O dinheiro digital circula mais rapidamente diante o dinheiro físico, acelerando o processo de acumulação e investimento, mas também de consumo. O acesso ao capital se torna ampliado ou restrito, dependendo de fatores como inclusão financeira digital, ou seja, quem tem acesso a contas digitais, plataformas de investimento e outros recursos financeiros digitais. E, claro, educação financeira!

A digitalização também traz novos riscos, como ciberataques, fraudes digitais e a centralização de dados. Esses “phishings” contínuos comprometem a confiança nas instituições gerenciadoras o dinheiro digital.

Portanto, o capital em uma economia digital pode ser entendido como uma extensão do trabalho acumulado, medido, transacionado e multiplicado por meio de sistemas de escrituração digital. A confiança nesse sistema de moeda digital e nas plataformas de transação e investimento é fundamental para o capital continuar a representar a riqueza criada pelo trabalho e, ao mesmo tempo, se tornar um ativo (forma de manutenção de riqueza) fluido, disponível para reinvestimento, consumo ou acumulação de reserva financeira em qualquer momento.

 

•        IA: Em busca da “alma das máquinas”. Por Cristian Arão

A inteligência artificial (IA) tem causado fascínio e medo sempre que as suas inovações são noticiadas. Sistemas capazes de interpretar e gerar textos, como o ChatGPT, tornaram-se muito populares e ensejaram diversos debates acerca de sua natureza, suas limitações e seus impactos sociais. No mundo contemporâneo, essas tecnologias estão redefinindo diversos setores da sociedade, desde a indústria até o cotidiano individual. Algoritmos complexos, capazes de aprender e se adaptar autonomamente, assumem tarefas que antes eram consideradas exclusivas do domínio humano.

Em meio ao avanço acelerado da tecnologia, o aprendizado de máquina tem se destacado como uma força motriz, permitindo que as inteligências artificiais aprendam de maneira aparentemente autônoma. Este fenômeno tem gerado tanto fascínio quanto inquietação, pois nos confrontamos com a ideia de sistemas automatizados que parecem operar independentemente. No entanto, é crucial entender que essa suposta autonomia é, em grande parte, uma ilusão. Embora os algoritmos possam aprender e se adaptar, eles ainda dependem fortemente do trabalho humano para funcionar corretamente. Este trabalho muitas vezes permanece invisível, oculto atrás da cortina da tecnologia.

A realidade por trás dessa tecnologia costuma ser mais banal e precária do que normalmente noticia-se. A revolução nessa área, que ocorreu no final dos anos 1990, fez com que as máquinas pudessem, de certa forma, aprender “sozinhas”, daí o nome machine learning (aprendizado de máquina). Porém, esse aprendizado, para ser mais efetivo e acurado, demanda muitos ajustes provenientes do trabalho humano. Sem esses constantes arranjos e redirecionamentos, a precisão das máquinas em tarefas complexas é bastante insatisfatória, nos explica David Sumpter em Dominados pelos números.

Há, portanto, toda uma rede de trabalhadores que, além de programarem as IAs, realizam diversas tarefas que acreditamos que são automatizadas. Esses trabalhadores são como fantasmas, porque seu trabalho é invisível para a sociedade. Esse termo “trabalho fantasma” foi cunhado por Mary L. Gray e Siddharth Suri no livro “Ghost Work: How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass” (Trabalho Fantasma: Como Impedir o Vale do Silício de Construir uma Nova Subclasse Global). Após pesquisa com milhares de trabalhadores na Índia e nos Estados Unidos, os autores concluem que por trás da aparente autonomia das inteligências artificiais, existe um exército de indivíduos lendo textos, analisando fotos, avaliando as respostas geradas pela IA, dentre outras microtarefas indispensáveis para o bom funcionamento dos algoritmos.

Essa estrutura esconde intencionalmente o trabalho humano, segundo Gray e Suri. Com isso, mantém-se a aura mística da tecnologia e passamos a enxergar cada vez mais a inteligência artificial como algo realmente autônomo; é um truque parecido com o Turco Mecânico. O Turco Mecânico foi uma invenção do cientista Wolfgang von Kempelen, apresentada como a primeira máquina capaz de jogar xadrez. Porém, a invenção consistia em uma caixa que escondia um jogador que operava as peças. Curiosamente, o nome do programa que a Amazon usa para essas microtarefas é justamente Mechanical Turk (https://www.mturk.com/).

Diante disso, Hamid Ekbia e Bonnie Nardi em Heteromação1 e outras histórias sobre computação e capitalismo (em tradução livre), afirmam que não existe de fato uma automação, porque a máquina não é completamente autônoma ou independente. Em vez disso, ela depende da intervenção ou supervisão humana em muitos níveis. Há, portanto, muito trabalho humano em um contexto em que as pessoas não recebem os devidos créditos. Embora a IA não seja exatamente um Turco Mecânico, pois existe algum nível de automação que dialoga com o trabalho humano, é importante compreender como o ser humano costuma ser escondido nesse sistema. Por trás da suposta autonomia das máquinas, há uma real exploração do trabalhador e até dos usuários que contribuem com reviews, comentários, produção de conteúdo etc.

Em suma, a revolução da inteligência artificial não é apenas um testemunho de avanços tecnológicos impressionantes, mas também revela uma camada oculta de trabalho humano essencial para seu funcionamento. Embora as IAs, como o ChatGPT, possam parecer autônomas, elas ainda são profundamente dependentes de uma vasta rede de trabalhadores invisíveis, cuja contribuição é muitas vezes subestimada ou ignorada. A realidade por trás da tecnologia é que, em vez de uma autonomia pura e imaculada, temos um processo onde o trabalho humano continua a desempenhar um papel crucial. A consciência dessa dinâmica é vital para uma compreensão mais completa da inteligência artificial e para assegurar que o progresso tecnológico não ofusque a importância e o reconhecimento de quem está por trás desse desenvolvimento. A próxima etapa no avanço da IA deve, portanto, incluir uma reflexão ética e uma valorização justa dos indivíduos que sustentam essa era de inovação.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Outras Palavras

 

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