quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Candidato à reeleição, prefeito de Arataca (BA) despeja caminhões de entulho em plantação de orgânicos do MST

Depois de 40 anos trabalhando em condições análogas à escravidão para os coronéis do cacau, de cinco despejos e de inúmeras outras opressões, Lourisval José Mendes finalmente conseguiu mudar sua vida. Seu Louro Camacã, como é conhecido, deixou a exploração para trás e passou a tirar seu sustento produzindo alimentos orgânicos em sua própria terra, em Arataca, no sul da Bahia, a 100 km de Ilhéus.

Ele vive desde 1994 no Terra Vista, assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, onde a comunidade recuperou o solo totalmente degradado, fez o reflorestamento e a transição agroecológica. Os processos foram tão bem sucedidos que Seu Louro e outros agricultores conseguiram adquirir o certificado de produção orgânica e agregar valor à venda de cacau e de chocolate.

Mas todas essas conquistas foram soterradas por uma montanha de lixo. Literalmente. Desde 2021, a Prefeitura de Arataca, sob a gestão de Fernando Mansur, do PSD, candidato à reeleição, vem transformando o lote do Seu Louro no lixão da cidade.

Em meio à plantação de cupuaçu, mamão, couve, cacau, banana, açaí e outros cultivos orgânicos, veículos da empresa Alicerce despejavam caçambas lotadas de lixo, incluindo seringas, pilhas, carcaças de animais, resíduos hospitalares, embalagens plásticas e todo o tipo de entulho que se possa imaginar.

“Quando começaram a colocar o lixo aqui, chamei a prefeitura para conversar, falando que estavam prejudicando não só eu, mas toda população de Arataca. Aqui é uma área certificada [para a produção orgânica] que investimos muito trabalho, pra fazerem uma bobagem dessas”, indigna-se Seu Louro, cabisbaixo. “Com 78 anos, quando voltarei a produzir orgânicos dessa forma?”

Segundo os assentados, o descarte de lixo é uma das maneiras que autoridades locais vêm utilizando para perseguir os agricultores. “O prefeito é um negociante do cacau que se associou à onda do neoliberalismo e do bolsonarismo. E aí acha que pode tudo, mas precisa respeitar que temos aqui uma construção de 32 anos”, defende uma das lideranças do assentamento agroecológico, que falou sob condição de anonimato.

A Justiça da Bahia já determinou que o descarte de lixo seja interrompido e que a área seja totalmente limpa. No entanto, apesar de oficialmente o despejo por parte da prefeitura não ocorrer mais desde meados do ano passado, assentados vizinhos de Seu Louro dizem ter  testemunhado, no final de julho, um veículo usado pela Prefeitura, com funcionários conhecidos pela comunidade, depositando resíduos em frente ao lote do idoso, bem diante de uma placa onde se lê: “Proibido jogar lixo”.

•        Contaminação de nascente e decisão da Justiça ignorada

Em junho de 2023, o Incra, responsável legal pela área, emitiu um laudo atestando que o despejo clandestino de lixo “contamina deliberadamente o assentamento” e que os detritos na área de nascente tornam possível a poluição da água que abastece o município.

O órgão então oficiou o Ministério Público Federal, o MPF, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, o Inema, do governo baiano, e notificou também a prefeitura de Arataca.

A contaminação da água mencionada pelo Incra pode estar ocorrendo porque o ponto transformado em lixão, além de lote do Seu Louro, também é uma Área de Preservação Permanente, APP, por ser zona de amortecimento do Parque Nacional Serra das Lontras e por abrigar nascentes do Rio Aliança.

Nas últimas três décadas, dentro do território do assentamento, este rio teve 90% da sua mata ciliar recuperada. Além disso, a 200 metros do lixão, fica uma estação onde a Empresa Baiana de Águas e Saneamento coleta água para abastecer as torneiras da população de Arataca. A empresa se pronunciou sobre o caso em 2023, alegando que a água é própria para consumo, mas os assentados querem uma análise autônoma da água.

Desde o ano passado, Seu Louro e a coordenação do assentamento lutam pela responsabilização da prefeitura de Arataca pelos possíveis crimes e por reparação digna pela violência que sofreram.

A Justiça da Bahia determinou, em junho, que a prefeitura e a Alicerce paguem um salário mínimo por mês a Seu Louro até o fim do processo, sob pena de multa diária caso o pagamento não seja feito. No entanto, o agricultor ainda não recebeu nenhum valor, nem da empresa nem da prefeitura.

No processo, consta que a Alicerce não foi encontrada pelo Oficial de Justiça, que informou que a empresa “mudou de endereço”. No entanto, a empresa segue prestando serviços de limpeza urbana para a Prefeitura de Arataca, conforme a reportagem testemunhou.

Eleito em 2012, 2020 e agora tentando seu terceiro mandato, o prefeito Fernando Mansur, conhecido como Ferlú, também é sócio das empresas Mansur Comércio de Produtos Agrícolas e da Resicau, ambas do setor de compra e venda de cacau, café e gado, além da Klironomia, que faz gestão de terras e também comercializa cacau e cria gado.

Ele e seu filho, Vitor Marcel Ferraz Mansur, se revezam na administração das empresas – uma parceria que se estende também para a gestão pública, já que Vitor é também o Secretário Municipal de Planejamento e Administração, levantando acusações de nepotismo. 

Além de não pagar para Seu Louro o salário mínimo determinado pela Justiça, a prefeitura de Ferlú contestou judicialmente o pedido de indenização do agricultor, alegando já ter cumprido com suas obrigações. No entanto, o assentado afirma que o lixo continua lá, como foi atestado pela reportagem, em visita ao local feita no início de setembro.

“Foram nove hectares de roça atingidos. É só caminhar e mexer as folhas. O lixo continua aí, você acha de tudo”, denuncia Seu Louro. Entre jacas, cacaus e bananeiras, há restos de televisão, pneus, carcaças de animais, muito vidro quebrado, fraldas, sprays aerosol e embalagens de plástico das mais diversas. 

•        Perseguição também nas decisões sobre a escola

A tentativa de transformar o assentamento em lixão não é, no entanto, a única estratégia da prefeitura para perseguir os agricultores e enfraquecer o território, de acordo com as lideranças do Terra Vista.

Eles afirmam que a gestão municipal vem tentando restringir e até impedir que a comunidade participe das decisões referentes ao Centro Integrado Florestan Fernandes, que é referência em educação do campo e uma instância fundamental para valorizar os saberes da terra e manter a autonomia dos assentados.

Uma das principais críticas está na decisão unilateral da prefeitura de reformar a escola, a partir de um projeto que, segundo os assentados, não condiz com as necessidades da comunidade.

Para fazer a reforma, a prefeitura contratou uma empresa chamada Terra Nova Construtora e Terraplanagem para um obra orçada em mais de R$ 305 mil. Iniciada em março, a reforma segue a passos lentos – enquanto as crianças são obrigadas a estudar em salas improvisadas, com entulhos e mesas empilhadas.

“A autonomia pedagógica no território é fundamental e inegociável”, defende uma liderança do território que prefere não se identificar. “O princípio é a terra e o território e a educação do campo é o meio para as pessoas evoluírem nos seus conhecimentos, nos seus processos de ter um território digno.”

Após meses de denúncias dos assentados pelo desrespeito à participação histórica da comunidade nas decisões escolares, de reuniões infrutíferas com a Secretaria de Educação, Esportes e Cultura e de ofícios sem resposta enviados à prefeitura, em março a relação entre assentados e secretaria virou caso de polícia.

Após lideranças do assentamento tentarem participar de uma reunião de gestão escolar no Florestan da qual não foram informados, a prefeitura – por meio da Procuradoria – registrou um Boletim de Ocorrência.

Nele, as lideranças foram denunciadas por esbulho possessório, como se tivessem tomando a posse da própria escola e, assim, impedindo os funcionários da Prefeitura de acessarem o local.

O caso avançou para uma ação movida pelo município, representada por Ferlú. Em abril, o juiz de primeiro grau da Comarca de Camacã proferiu uma decisão liminar proibindo alguns assentados que atuam no Setor de Educação e na Coordenação do Assentamento de circularem livremente pela escola, sob pena de multa de 50 mil reais para cada pessoa em caso de descumprimento. Os assentados recorreram e aguardam o julgamento no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.  

“A proibição do livre trânsito da comunidade em seus próprios espaços é um forte ataque à realidade local, à educação do campo, bem como aos direitos democráticos e à autonomia da comunidade”, argumenta a assessoria jurídica dos assentados.

“Não queríamos uma educação que produzisse mão de obra barata para ser super explorada nos latifúndios vizinhos. No Terra Vista, a escola é o assentamento, e o assentamento é a escola”, relata uma das lideranças processadas pela prefeitura.

•        Entre amigos

Além de marcarem investidas contra o Terra Vista, os casos do lixão e da escola têm outro ponto em comum: ambos têm o envolvimento de empresas contratadas pela prefeitura, cujos proprietários têm vínculos familiares entre si e pertencem ao círculo de amizades do prefeito.

A Terra Nova, que reforma a escola desde março, está registrada no nome de Heraldo Nunes do Nascimento, amigo de Ferlú, que inclusive foi à sua festa de aniversário deste ano. Heraldo é candidato a vereador pelo PL na cidade de Eunápolis. Já a Alicerce – cujos veículos despejavam o lixo no lote de Seu Louro – tem como proprietário Hélio Filho Polvora Dias, parente da esposa de Nascimento.

Além da reforma da escola, a Terra Nova também ganhou uma licitação da Prefeitura de Arataca, no valor de R$ 2,5 milhões, para a construção de uma estrada de acesso da BR-101.

A empresa tem como um de seus prestadores de serviço Paulo Mansur Gonzaga, irmão do prefeito. Paulo presta serviços para Terra Nova e também para a Alicerce – em ambas como assessor de licitações. Ele também foi Secretário de Finanças na primeira gestão de Ferlú.

Segundo os assentados, os casos vêm sendo usados para perseguir lideranças do assentamento, tanto no âmbito na Justiça como no da opinião pública.

“É uma atuação que perpetua discriminação e repressão, reforça o estigma imposto pelos fazendeiros da região às pessoas que lutam por terra”, afirma a equipe jurídica do assentamento, que requisitou na Justiça a anulação da liminar e exigiu a responsabilização da prefeitura pelos atos de discriminação no caso da escola e por utilizar a Justiça de forma inadequada com fim de perseguição política.

Ainda a respeito do Florestan Fernandes, os advogados apontam uma tentativa das autoridades de tratar os agricultores como “invasores” do seu próprio território. “É uma perseguição do prefeito ao assentamento, sendo que 95% dos assentados votaram nele em 2020”, denuncia uma liderança histórica do Terra Vista.

Essas investidas recentes contra o local não são as primeiras por parte do prefeito Ferlú. Em 2013, em sua primeira gestão, ele ameaçou encerrar com os anos finais do Florestan Fernandes, alegando que não valia a pena manter as etapas para tão poucos alunos. A comunidade, no entanto, fez manifestações e acabou impedindo o fechamento das turmas.

Os agricultores temem que essas perseguições coloquem em jogo as conquistas históricas do assentamento, como o Florestan Fernandes e até mesmo a segunda escola do local, de nível médio técnico, denominada Centro de Educação Profissional da Floresta e do Cacau e do Chocolate Milton Santos.

Com 900 hectares, o assentamento é hoje uma referência internacional em agroecologia, na produção de chocolate orgânico e no reflorestamento, inclusive distribuindo caminhões de mudas para outros territórios, como os do povo indígena Maxakali, no norte de Minas Gerais.

“Nós não vamos lá se meter no negócio dele (do prefeito). Eu não sei por que ele está procurando esta briga com a gente. Mas nós somos de guerra, não vamos colocar as conquistas da nossa luta em risco”, afirmou uma das lideranças do Terra Vista. 

Procurados pelo Intercept, a a prefeitura de Arataca, as empresas Alicerce e Terra Nova, o partido PSD, o Tribunal de Justiça e Embasa não responderam.

## Esta reportagem é parte da série Fome de quê?, que investiga como a indústria e o agronegócio prejudicam o acesso à alimentação de qualidade no Brasil, com o apoio do Instituto Ibirapitanga.

 

Fonte: Por Douglas de Oliveira, em The Intercept

 

Nenhum comentário: