Queimadas:
governo estuda PL sobre endurecimento de penas para crimes ambientais
O
governo Lula prepara uma minuta de projeto de lei (PL) que propõe um
endurecimento das penas previstas para infratores ambientais. A ideia seria
enrijecer o enquadramento já previsto na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº
9605/1998). Tema considerado árido no Congresso Nacional por conta da força da
bancada ruralista, grupo historicamente contrário a medidas de proteção dos
recursos naturais, o assunto deve a voltar à tona no Legislativo após as
eleições municipais, quando a gestão do PT pretende fechar um entendimento
interno sobre o assunto.
A
pauta está em alta na agenda política por conta do rastro deixado nas últimas
semanas pelo grande número de focos de incêndio registrados no país. Segundo o
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o mês de setembro já
registrou mais de 80 mil focos do tipo, marca que representa um percentual de
30% acima da média histórica. A notificação dos casos começou em 1998 e os
dados são do Programa Queimadas. O acervo do programa mostra ainda que 2024 já
é o ano com maior número de focos de incêndio desde o ano de 2010, quando o
país bateu um recorde de mais de 319 mil registros.
Apesar
da escalada de casos observados em setembro, o cenário de queimadas é marcado
por um outro histórico problema: o baixo número de infratores responsabilizados
por praticarem crimes ambientais. Atualmente o país tem pouco mais de 370
pessoas presas – em regime fechado ou semiaberto – sob enquadramento na Lei nº
9605/1998, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
O número contrasta com a lógica punitivista adotada pelo Estado em outras
frentes. Em junho deste ano, o Brasil tinha, por exemplo, mais de 8.500 pessoas
encarceradas por terem sido flagradas portando até 25 gramas de maconha e mais
de 19 mil nessa situação por porte de até 100 gramas da planta.
• Percurso
Diante
desse quadro, o governo Lula busca agora propor mudanças na legislação para
tentar desestimular o cometimento de crimes ambientais. A gênese do debate no
âmbito da gestão é o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), mas o
tema já saltou as arestas da pasta e hoje está em análise na Casa Civil, que
estuda os próximos passos a respeito do assunto. O secretário de Assuntos
Legislativos do MJSP, Marivaldo Pereira, afirma que a intenção da gestão seria
buscar uma maior proporção penal para tais casos.
“As
penas previstas hoje para os crimes ambientais são absolutamente
desproporcionais em relação ao restante dos crimes previstos em nossa
legislação, e isso tem uma série de consequências. Um exemplo é o prazo para
que as autoridades concluam uma investigação, que é muito menor. A prescrição,
ou seja, o tempo necessário para você concluir uma investigação e punir alguém,
tem um prazo que é calculado de acordo com o tamanho das penas. Mas, como você
tem penas muito baixas na legislação atual e esses crimes são relativamente
complexos, o prazo previsto na legislação para a conclusão das investigações
acaba sendo muito curto”, expõe Pereira.
O
secretário afirma que, muitas vezes, os processos não são concluídos a tempo e
que isso cria um ambiente institucional de “desestímulo” para que as apurações
deem até mesmo os primeiros passos. “Então, se você é responsável por uma
investigação e já sabe de antemão que não será possível concluí-la a tempo de
buscar uma punição, você acaba sendo estimulado a priorizar a investigação de
outros crimes, e não os crimes ambientais. Acho que esse é o primeiro ponto,”
enumera.
• Penalidades
Pereira
ressalta ainda a leitura do MJSP de que as penas previstas na Lei de Crimes
Ambientais são baixas se comparadas com a gravidade das infrações previstas na
norma. “No final, ainda que a investigação seja concluída, dificilmente aquele
que for condenado vai ser punido com uma pena maior do que uma transação penal,
um pagamento de cesta básica ou coisa do tipo. Isso é um problema muito grave”,
avalia o secretário do MJSP.
O
gestor chama a atenção ainda para a ligação já identificada pelas autoridades
entre organizações criminosas e os crimes ambientais. “Nós entendemos que esses
grupos perceberam que a prática de crime ambiental compensa para eles, e isso
explica um pouco a presença deles na prática de crimes ambientais, não só dos
incêndios, mas mesmo na exploração de garimpo legal, no tráfico de animais,
entre outros tipos de crimes nos quais cada vez mais vem sendo detectada a
presença do crime organizado.”
O
Brasil de Fato obteve acesso à minuta do projeto de lei que está sob análise da
Casa Civil. A legislação atual prevê sanções penais e administrativas para
ações consideradas lesivas ao meio ambiente. Para quem matar, caçar ou
perseguir espécies da fauna silvestre sem permissão, por exemplo, a norma em
vigor fixa detenção de seis meses a um ano, além de multa – o governo propõe
uma alteração para pena de um a três anos. Já casos de “emissão de efluentes ou
carreamento de materiais” que afetem a fauna aquática podem levar hoje a uma
detenção que varia de um a três anos, de forma cumulativa com multa ou com uma
das duas penalidades.
O
mesmo vale para quem cortar árvores em florestas de preservação permanente sem
autorização oficial – a equipe da gestão Lula estuda a proposição de pena de
reclusão que varie de dois a cinco anos para tais ocorrências. Já a provocação
de incêndios em floresta ou em demais formas de vegetação pode levar a uma pena
de reclusão de dois a quatro anos mais multa. Para essas condutas, o
anteprojeto do governo, em seu estágio atual, prevê prisão de três a seis anos.
A proposta também acrescenta à lei atual um trecho que fixa reclusão de três a
seis anos e multa para infratores que causarem danos diretos ou indiretos a
Unidades de Conservação (UCs), “a suas zonas de amortecimento ou a terras
indígenas”, além de outros pontos.
• Lógica
penal
Questionado
pelo Brasil de Fato se a proposta em análise pelo governo não fere o histórico
e crítico discurso das forças de esquerda à lógica do encarceramento, Marivaldo
Pereira diz entender que a complexidade e o alcance dos crimes ambientais pedem
atualmente medidas mais duras e energéticas por parte do Estado brasileiro no
nível legal.
“Por
mais que o direito penal não seja o suficiente para resolver o problema, não dá
para o poder público ignorar que esse problema existe e que a penalidade
prevista para um tipo de crime que pode levar à perda de centenas de vidas, por
exemplo, chega, no máximo, a um ano em alguns casos, como muitos dos que a
gente tem aqui [enquadrados] na Lei de Crimes Ambientais.” O secretário diz que
a iniciativa do governo seria também uma forma de garantir a proteção ambiental
sem ignorar o engajamento do crime organizado no cenário das atuais
ocorrências.
“Quando
esses grupos praticam crime ambiental, muitas vezes estão atacando terra
indígena, áreas quilombolas, áreas de comunidades ribeirinhas e muitas vezes
estão matando os rios que asseguram a vida desses povos indígenas, de
comunidades ribeirinhas e, portanto, de toda uma coletividade. Sendo assim,
quando você mata um rio de grande porte, como a gente tem visto na atuação do
garimpo em grandes rios da região amazônica, você compromete a vida de toda uma
coletividade”, afirma o secretário, ao reforçar que a gestão defende que não há
saída que não passe também pelo endurecimento penal.
• Dificuldades
A
Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do MJSP diz ter mapeado as propostas
já em tramitação no Congresso Nacional que tratam do assunto. Somente o bloco
de medidas que tramitam em conjunto com o PL 10.457/2018, por exemplo, tem
cerca tem 40 PLs que alteram a Lei de Crimes Ambientais. A proposta está
atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados,
mas Marivaldo Pereira ressalta que o mapeamento feito pela pasta identificou
diferentes outras medidas.
“Tem
ainda um conjunto de projetos no Senado e outras propostas sendo apresentadas
no momento presente, em que vários parlamentares estão preocupados com esse
tema na Câmara. Acredito que o montante mesmo já passe de cem projetos de um
modo geral, se a gente considerar todas as alterações propostas na Lei de
Crimes Ambientais”, estima.
Questionado
sobre como o governo pretende lidar com o cenário espinhoso criado pela bancada
ruralista contra a agenda ambiental, o que tende a criar embaraços para a
proposta que vier a ser apresentada pelo governo, o titular da SAL afirma que a
gestão tem ciência das dificuldades e que buscará fechar uma proposição que
tenha maior capacidade de abrir caminho para a produção de um consenso.
“Há
um debate no governo hoje sobre se haverá o envio de uma proposta [nova] do
próprio Poder Executivo – e que, nesse caso, certamente seria apensada a outras
que já estão em tramitação – ou se nós [a bancada do governo no Legislativo]
vamos trabalhar juntamente com o relator [deputado Patrus Ananias, do PT de
Minas Gerais] para pensar um [texto] substitutivo. De todo modo, o governo
pretende dialogar com o Congresso para chegar à melhor forma de encaminhamento
dessa proposta.” Ele reitera que a ideia seria levantar a audiência em torno do
tema após as eleições municipais.
“Nesse
sentido, pensando em um caminho para que a gente consiga provar uma proposta
dessa da forma mais rápida possível, para que no próximo ano, se eventualmente
a gente passar por um momento de seca extrema, como a gente está vendo este ano
– e, infelizmente, é bem provável que a gente volte a passar por isso –, a
gente já possa ter uma lei mais rígida que dê suporte à Polícia Federal e que
dê suporte maior para a investigação e uma efetiva punição de quem usa o fogo
como crime para explorar área pública, terra indígena, etc.”
• Proteção
de povos originários faz de terras indígenas as áreas mais preservadas do
Brasil
Mais
de 180 povos indígenas, além de grupos isolados, vivem na Amazônia e cultuam a
floresta não apenas como moradia, mas como parte de si, a partir da conexão
profunda com o meio ambiente e a defesa dos territórios.
Segundo
o levantamento do MapBiomas, divulgado em agosto, as terras indígenas são os
territórios mais preservados do Brasil e perderam apenas 1% da vegetação nativa
em 38 anos, entre 1985 e 2023 – enquanto as terras privadas perderam 28%.
A
Terra Indígena Alto Rio Guamá, localizada no Pará, é um dos territórios que
acumula histórico de violência, luta e resistência em defesa das florestas.
“No
passado teve muitos conflitos, tanto queimada quanto devastação. O pessoal
colocava muito pasto, mas agora não, nós temos uma equipe fiscalizando, que vai
duas vezes por mês. São os guarda-parque, os guardas florestais”, explica o
cacique da Edivaldo Tembé, da aldeia P’ Noir, no município de Santa Luzia do
Pará, localizado no nordeste paraense.
Edivaldo
Tembé foi uma das lideranças presas durante a chamada Batalha do Livramento, no
ano de 1996, que resultou em uma das maiores apreensões de madeira do Brasil a
partir de operação conjunta entre os indígenas, a Funai e o Ibama.
Nessa
batalha em defesa das florestas e do território, os fazendeiros aprisionaram 77
indígenas Tembé e, em uma disputa de narrativas, garantiram o apoio de parte da
população. Os indígenas dizem ter sido submetidos à tortura e à falta de
condições mínimas para sobreviver durante três dias.
“A
gente entrou para fiscalizar madeireiro, que tinha muito na época. Os
madeireiros mobilizaram o pessoal e acabaram prendendo a gente lá na Vila, foi
um desconforto muito grande, houve muita ameaça, você sabe como é, a Justiça é
muito lenta, tocaram fogo nos nossos carros, e a briga sempre foi essa aí”,
relembra o cacique.
Ao
longo dos anos, os Tembé sofreram com a invasão de colonos e tiveram a terra, a
fauna e os rios degradados. Somente em março deste ano, após 40 anos de luta
pela desintrusão, mais de 1.600 invasores foram retirados pelo governo federal
e eles receberam direito exclusivo ao território.
Desde
então, a área conta com o grupo de Guardiões da Floresta, que, a exemplo de
outros territórios, é composto por indígenas com a missão de proteger o
território, impedir o desmatamento da floresta e expulsar invasores.
“Esse
projeto surgiu para que a gente viesse proteger a floresta das queimadas, e
inclusive já fomos para algumas missões, já apreendemos drogas, armas, quase
tivemos conflitos e é uma coisa muito importante para o povo Tembé e estamos
querendo ir muito além disso e proteger mais a natureza”, explica o jovem
guardião Ronald Tembé.
A
Terra Indígena Alto Rio Guamá tem mais de 280 mil hectares, onde abriga 42
aldeias e vivem cerca de 2.500 indígenas das etnias Tembé, Timbira, Kaapor,
Urubu-Kaapór e Guajajara. No caso dos Tembé, a desintrusão é um marco histórico
e dá início a uma retomada recente dos modos de vida. Mas os novos tempos
trouxeram também novos problemas, como a pulverização aérea de agrotóxicos por
aeronaves e drones.
“A
gente conseguiu controlar o avião, mas recentemente soubemos que há drones. A
gente já denunciou isso, porque de qualquer forma vai afetar a gente, vai
afetar o açaizal que geralmente é a única coisa que existe no entorno da
reserva, e aqui dentro existe uma colheita de açaí muito grande. Estamos
tentando preservar isso”, explica o cacique Edivaldo Tembé.
Para
os povos indígenas, a floresta cumpre ainda papel fundamental na preservação
dos ritos tradicionais, como a Festa da Menina Moça, que celebra a passagem da
infância das meninas para a vida adulta.
“Se
não tiver a floresta, não podemos ter festa, porque essa festa depende do
porco, do nambu e do jacu, entre outras coisas como o jenipapo. Há 20 anos não
existia essa festa, porque não tinha a matéria-prima para a gente fazer uma
festa dessas. A gente ia para muito longe. Hoje não, a gente já conseguiu ter
[novamente] esse tipo de coisa aqui dentro devido ao afastamento dos colonos”,
complementa.
A
maioria das terras indígenas concentra-se na Amazônia Legal: são 430 áreas,
115.803.611 hectares, representando 23% do território amazônico e 98.25% da
extensão de todas as unidades desse tipo do país. Diante do cenário devastador
de crise climática e incêndios florestais, cumprem um papel fundamental na
preservação do bioma, mas os povos indígenas alertam que isso não é suficiente.
“Só
as áreas indígenas não são suficientes. Se o governo não tomar uma atitude de
preservar, só as áreas indígenas não vão suprir a necessidade. A gente sabe que
estamos preservando. Mas [por exemplo] aqui mesmo, não existe devastação, mas a
quentura é imensa”, explica Edivaldo Tembé.
Para
além de manter a luta em defesa das florestas com a própria vida, a urgência
dos impactos da crise climática apontam para um cenário cada vez mais
devastador.
“Isso
aqui é um pedido de socorro. A floresta precisa de ajuda, não só dos indígenas.
Hoje ninguém precisa só de dinheiro ou só de gado, não... de tudo a gente
precisa um pouco. E se não tiver ajuda de alguém esse pouco vai acabar e o
mundo vai incendiar", diz.
Fonte:
Brasil de Fato
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