sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Queimadas: governo estuda PL sobre endurecimento de penas para crimes ambientais

O governo Lula prepara uma minuta de projeto de lei (PL) que propõe um endurecimento das penas previstas para infratores ambientais. A ideia seria enrijecer o enquadramento já previsto na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9605/1998). Tema considerado árido no Congresso Nacional por conta da força da bancada ruralista, grupo historicamente contrário a medidas de proteção dos recursos naturais, o assunto deve a voltar à tona no Legislativo após as eleições municipais, quando a gestão do PT pretende fechar um entendimento interno sobre o assunto.

A pauta está em alta na agenda política por conta do rastro deixado nas últimas semanas pelo grande número de focos de incêndio registrados no país. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o mês de setembro já registrou mais de 80 mil focos do tipo, marca que representa um percentual de 30% acima da média histórica. A notificação dos casos começou em 1998 e os dados são do Programa Queimadas. O acervo do programa mostra ainda que 2024 já é o ano com maior número de focos de incêndio desde o ano de 2010, quando o país bateu um recorde de mais de 319 mil registros.

Apesar da escalada de casos observados em setembro, o cenário de queimadas é marcado por um outro histórico problema: o baixo número de infratores responsabilizados por praticarem crimes ambientais. Atualmente o país tem pouco mais de 370 pessoas presas – em regime fechado ou semiaberto – sob enquadramento na Lei nº 9605/1998, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). O número contrasta com a lógica punitivista adotada pelo Estado em outras frentes. Em junho deste ano, o Brasil tinha, por exemplo, mais de 8.500 pessoas encarceradas por terem sido flagradas portando até 25 gramas de maconha e mais de 19 mil nessa situação por porte de até 100 gramas da planta.

•                                                 Percurso

Diante desse quadro, o governo Lula busca agora propor mudanças na legislação para tentar desestimular o cometimento de crimes ambientais. A gênese do debate no âmbito da gestão é o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), mas o tema já saltou as arestas da pasta e hoje está em análise na Casa Civil, que estuda os próximos passos a respeito do assunto. O secretário de Assuntos Legislativos do MJSP, Marivaldo Pereira, afirma que a intenção da gestão seria buscar uma maior proporção penal para tais casos.

“As penas previstas hoje para os crimes ambientais são absolutamente desproporcionais em relação ao restante dos crimes previstos em nossa legislação, e isso tem uma série de consequências. Um exemplo é o prazo para que as autoridades concluam uma investigação, que é muito menor. A prescrição, ou seja, o tempo necessário para você concluir uma investigação e punir alguém, tem um prazo que é calculado de acordo com o tamanho das penas. Mas, como você tem penas muito baixas na legislação atual e esses crimes são relativamente complexos, o prazo previsto na legislação para a conclusão das investigações acaba sendo muito curto”, expõe Pereira.

O secretário afirma que, muitas vezes, os processos não são concluídos a tempo e que isso cria um ambiente institucional de “desestímulo” para que as apurações deem até mesmo os primeiros passos. “Então, se você é responsável por uma investigação e já sabe de antemão que não será possível concluí-la a tempo de buscar uma punição, você acaba sendo estimulado a priorizar a investigação de outros crimes, e não os crimes ambientais. Acho que esse é o primeiro ponto,” enumera.

•                                                 Penalidades

Pereira ressalta ainda a leitura do MJSP de que as penas previstas na Lei de Crimes Ambientais são baixas se comparadas com a gravidade das infrações previstas na norma. “No final, ainda que a investigação seja concluída, dificilmente aquele que for condenado vai ser punido com uma pena maior do que uma transação penal, um pagamento de cesta básica ou coisa do tipo. Isso é um problema muito grave”, avalia o secretário do MJSP.

O gestor chama a atenção ainda para a ligação já identificada pelas autoridades entre organizações criminosas e os crimes ambientais. “Nós entendemos que esses grupos perceberam que a prática de crime ambiental compensa para eles, e isso explica um pouco a presença deles na prática de crimes ambientais, não só dos incêndios, mas mesmo na exploração de garimpo legal, no tráfico de animais, entre outros tipos de crimes nos quais cada vez mais vem sendo detectada a presença do crime organizado.”

O Brasil de Fato obteve acesso à minuta do projeto de lei que está sob análise da Casa Civil. A legislação atual prevê sanções penais e administrativas para ações consideradas lesivas ao meio ambiente. Para quem matar, caçar ou perseguir espécies da fauna silvestre sem permissão, por exemplo, a norma em vigor fixa detenção de seis meses a um ano, além de multa – o governo propõe uma alteração para pena de um a três anos. Já casos de “emissão de efluentes ou carreamento de materiais” que afetem a fauna aquática podem levar hoje a uma detenção que varia de um a três anos, de forma cumulativa com multa ou com uma das duas penalidades.

O mesmo vale para quem cortar árvores em florestas de preservação permanente sem autorização oficial – a equipe da gestão Lula estuda a proposição de pena de reclusão que varie de dois a cinco anos para tais ocorrências. Já a provocação de incêndios em floresta ou em demais formas de vegetação pode levar a uma pena de reclusão de dois a quatro anos mais multa. Para essas condutas, o anteprojeto do governo, em seu estágio atual, prevê prisão de três a seis anos. A proposta também acrescenta à lei atual um trecho que fixa reclusão de três a seis anos e multa para infratores que causarem danos diretos ou indiretos a Unidades de Conservação (UCs), “a suas zonas de amortecimento ou a terras indígenas”, além de outros pontos.

•                                                 Lógica penal

Questionado pelo Brasil de Fato se a proposta em análise pelo governo não fere o histórico e crítico discurso das forças de esquerda à lógica do encarceramento, Marivaldo Pereira diz entender que a complexidade e o alcance dos crimes ambientais pedem atualmente medidas mais duras e energéticas por parte do Estado brasileiro no nível legal.

“Por mais que o direito penal não seja o suficiente para resolver o problema, não dá para o poder público ignorar que esse problema existe e que a penalidade prevista para um tipo de crime que pode levar à perda de centenas de vidas, por exemplo, chega, no máximo, a um ano em alguns casos, como muitos dos que a gente tem aqui [enquadrados] na Lei de Crimes Ambientais.” O secretário diz que a iniciativa do governo seria também uma forma de garantir a proteção ambiental sem ignorar o engajamento do crime organizado no cenário das atuais ocorrências.

“Quando esses grupos praticam crime ambiental, muitas vezes estão atacando terra indígena, áreas quilombolas, áreas de comunidades ribeirinhas e muitas vezes estão matando os rios que asseguram a vida desses povos indígenas, de comunidades ribeirinhas e, portanto, de toda uma coletividade. Sendo assim, quando você mata um rio de grande porte, como a gente tem visto na atuação do garimpo em grandes rios da região amazônica, você compromete a vida de toda uma coletividade”, afirma o secretário, ao reforçar que a gestão defende que não há saída que não passe também pelo endurecimento penal.

•                                                 Dificuldades

A Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do MJSP diz ter mapeado as propostas já em tramitação no Congresso Nacional que tratam do assunto. Somente o bloco de medidas que tramitam em conjunto com o PL 10.457/2018, por exemplo, tem cerca tem 40 PLs que alteram a Lei de Crimes Ambientais. A proposta está atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, mas Marivaldo Pereira ressalta que o mapeamento feito pela pasta identificou diferentes outras medidas.

“Tem ainda um conjunto de projetos no Senado e outras propostas sendo apresentadas no momento presente, em que vários parlamentares estão preocupados com esse tema na Câmara. Acredito que o montante mesmo já passe de cem projetos de um modo geral, se a gente considerar todas as alterações propostas na Lei de Crimes Ambientais”, estima.

Questionado sobre como o governo pretende lidar com o cenário espinhoso criado pela bancada ruralista contra a agenda ambiental, o que tende a criar embaraços para a proposta que vier a ser apresentada pelo governo, o titular da SAL afirma que a gestão tem ciência das dificuldades e que buscará fechar uma proposição que tenha maior capacidade de abrir caminho para a produção de um consenso.

“Há um debate no governo hoje sobre se haverá o envio de uma proposta [nova] do próprio Poder Executivo – e que, nesse caso, certamente seria apensada a outras que já estão em tramitação – ou se nós [a bancada do governo no Legislativo] vamos trabalhar juntamente com o relator [deputado Patrus Ananias, do PT de Minas Gerais] para pensar um [texto] substitutivo. De todo modo, o governo pretende dialogar com o Congresso para chegar à melhor forma de encaminhamento dessa proposta.” Ele reitera que a ideia seria levantar a audiência em torno do tema após as eleições municipais.

“Nesse sentido, pensando em um caminho para que a gente consiga provar uma proposta dessa da forma mais rápida possível, para que no próximo ano, se eventualmente a gente passar por um momento de seca extrema, como a gente está vendo este ano – e, infelizmente, é bem provável que a gente volte a passar por isso –, a gente já possa ter uma lei mais rígida que dê suporte à Polícia Federal e que dê suporte maior para a investigação e uma efetiva punição de quem usa o fogo como crime para explorar área pública, terra indígena, etc.”

 

•                                                 Proteção de povos originários faz de terras indígenas as áreas mais preservadas do Brasil

Mais de 180 povos indígenas, além de grupos isolados, vivem na Amazônia e cultuam a floresta não apenas como moradia, mas como parte de si, a partir da conexão profunda com o meio ambiente e a defesa dos territórios.

Segundo o levantamento do MapBiomas, divulgado em agosto, as terras indígenas são os territórios mais preservados do Brasil e perderam apenas 1% da vegetação nativa em 38 anos, entre 1985 e 2023 – enquanto as terras privadas perderam 28%.

A Terra Indígena Alto Rio Guamá, localizada no Pará, é um dos territórios que acumula histórico de violência, luta e resistência em defesa das florestas.

“No passado teve muitos conflitos, tanto queimada quanto devastação. O pessoal colocava muito pasto, mas agora não, nós temos uma equipe fiscalizando, que vai duas vezes por mês. São os guarda-parque, os guardas florestais”, explica o cacique da Edivaldo Tembé, da aldeia P’ Noir, no município de Santa Luzia do Pará, localizado no nordeste paraense.

Edivaldo Tembé foi uma das lideranças presas durante a chamada Batalha do Livramento, no ano de 1996, que resultou em uma das maiores apreensões de madeira do Brasil a partir de operação conjunta entre os indígenas, a Funai e o Ibama.

Nessa batalha em defesa das florestas e do território, os fazendeiros aprisionaram 77 indígenas Tembé e, em uma disputa de narrativas, garantiram o apoio de parte da população. Os indígenas dizem ter sido submetidos à tortura e à falta de condições mínimas para sobreviver durante três dias.

“A gente entrou para fiscalizar madeireiro, que tinha muito na época. Os madeireiros mobilizaram o pessoal e acabaram prendendo a gente lá na Vila, foi um desconforto muito grande, houve muita ameaça, você sabe como é, a Justiça é muito lenta, tocaram fogo nos nossos carros, e a briga sempre foi essa aí”, relembra o cacique.

Ao longo dos anos, os Tembé sofreram com a invasão de colonos e tiveram a terra, a fauna e os rios degradados. Somente em março deste ano, após 40 anos de luta pela desintrusão, mais de 1.600 invasores foram retirados pelo governo federal e eles receberam direito exclusivo ao território.

Desde então, a área conta com o grupo de Guardiões da Floresta, que, a exemplo de outros territórios, é composto por indígenas com a missão de proteger o território, impedir o desmatamento da floresta e expulsar invasores.

“Esse projeto surgiu para que a gente viesse proteger a floresta das queimadas, e inclusive já fomos para algumas missões, já apreendemos drogas, armas, quase tivemos conflitos e é uma coisa muito importante para o povo Tembé e estamos querendo ir muito além disso e proteger mais a natureza”, explica o jovem guardião Ronald Tembé.

A Terra Indígena Alto Rio Guamá tem mais de 280 mil hectares, onde abriga 42 aldeias e vivem cerca de 2.500 indígenas das etnias Tembé, Timbira, Kaapor, Urubu-Kaapór e Guajajara. No caso dos Tembé, a desintrusão é um marco histórico e dá início a uma retomada recente dos modos de vida. Mas os novos tempos trouxeram também novos problemas, como a pulverização aérea de agrotóxicos por aeronaves e drones.

“A gente conseguiu controlar o avião, mas recentemente soubemos que há drones. A gente já denunciou isso, porque de qualquer forma vai afetar a gente, vai afetar o açaizal que geralmente é a única coisa que existe no entorno da reserva, e aqui dentro existe uma colheita de açaí muito grande. Estamos tentando preservar isso”, explica o cacique Edivaldo Tembé.

Para os povos indígenas, a floresta cumpre ainda papel fundamental na preservação dos ritos tradicionais, como a Festa da Menina Moça, que celebra a passagem da infância das meninas para a vida adulta.

“Se não tiver a floresta, não podemos ter festa, porque essa festa depende do porco, do nambu e do jacu, entre outras coisas como o jenipapo. Há 20 anos não existia essa festa, porque não tinha a matéria-prima para a gente fazer uma festa dessas. A gente ia para muito longe. Hoje não, a gente já conseguiu ter [novamente] esse tipo de coisa aqui dentro devido ao afastamento dos colonos”, complementa.

A maioria das terras indígenas concentra-se na Amazônia Legal: são 430 áreas, 115.803.611 hectares, representando 23% do território amazônico e 98.25% da extensão de todas as unidades desse tipo do país. Diante do cenário devastador de crise climática e incêndios florestais, cumprem um papel fundamental na preservação do bioma, mas os povos indígenas alertam que isso não é suficiente.

“Só as áreas indígenas não são suficientes. Se o governo não tomar uma atitude de preservar, só as áreas indígenas não vão suprir a necessidade. A gente sabe que estamos preservando. Mas [por exemplo] aqui mesmo, não existe devastação, mas a quentura é imensa”, explica Edivaldo Tembé.

Para além de manter a luta em defesa das florestas com a própria vida, a urgência dos impactos da crise climática apontam para um cenário cada vez mais devastador. 

“Isso aqui é um pedido de socorro. A floresta precisa de ajuda, não só dos indígenas. Hoje ninguém precisa só de dinheiro ou só de gado, não... de tudo a gente precisa um pouco. E se não tiver ajuda de alguém esse pouco vai acabar e o mundo vai incendiar", diz.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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