Eleições
2024: como direita e esquerda levaram aborto para a política municipal
"Quem
vota no candidato que quer legalizar o aborto é cúmplice do aborto", diz a
senadora Damares Alves (Republicanos-DF), em vídeo compartilhado em sua conta
no Instagram no início de setembro, a poucas semanas da eleição de 6 de
outubro, em que brasileiros vão escolher novos prefeitos e vereadores em todo o
país.
"Adianta
vocês orarem para que o Brasil não tenha aborto e vocês estarem apoiando alguém
que é a favor do aborto?"
Na
postagem, que busca alertar contra o voto em supostos candidatos comunistas que
estariam nas igrejas, a ex-ministra de Jair Bolsonaro (PL) conta que a gravação
foi feita originalmente em outra eleição municipal, de 2016, e reforça: "É
exatamente o que eu continuo pensando ainda hoje".
Há
oito anos, Alves era apenas assessora de outro parlamentar, o senador Magno
Malta (PL-ES). Em 2019, foi alçada à chefe da pasta da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos do governo Bolsonaro.
Ao
fim do governo, foi eleita para o Senado e, hoje, como uma das principais vozes
do campo conservador, tenta colocar o aborto no centro do debate eleitoral das
eleições municipais deste ano junto com a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro,
atual presidente do PL Mulher.
As
duas lançaram em agosto a campanha "Mulheres Pela Vida", que defende
"a vida desde a concepção".
A
campanha estimula legisladores conservadores, em especial mulheres, a
apresentarem projetos de lei contrários ao aborto — mesmo nos casos autorizados
em lei, como a gravidez fruto de estupro — nas câmaras municipais e assembleias
estaduais, disponibilizando modelos prontos dessas propostas.
Uma
dessas propostas busca instituir em 8 de outubro no calendário municipal ou
estadual o Dia do Nascituro, termo jurídico dado ao feto, acompanhado da Semana
de Defesa e Promoção da Vida, com ações dentro dessa temática.
Outras
duas tentam alterar a Lei Orgânica e o Plano Plurianual de municípios e Estados
para estabelecer como seus objetivos "valorizar a vida e adotar políticas
públicas de saúde, de assistência e de educação preventivas ao aborto
voluntário".
Atualmente,
o aborto é permitido no país em três situações: quando a gravidez decorre de
estupro; quando há risco de vida da mãe; ou quando o feto é anencéfalo (o que
impede a vida após o parto).
Apenas
o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal têm poderes para mudar essas
regras, seja para restringir ou ampliar o direito ao aborto no país.
No
primeiro semestre, deputados federais conservadores tentaram criminalizar a
interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação, mesmo em casos decorrentes
de estupro, mas a discussão acabou suspensa no Congresso após forte reação de
parte da sociedade.
Pesquisas
de opinião, como levantamento do instituto Datafolha de junho deste ano,
mostram que não há maioria no país a favor de mudar as regras atuais — seja
para restringir ou liberar mais.
No
entanto, tentativas tanto de limitar quanto de promover o acesso ao aborto
legal têm posto essa questão também em destaque na política local de cidades
país afora.
• 'Atenção
humanizada, 'censo do aborto', 'pacote pró-vida'
Em
março deste ano, por exemplo, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro rejeitou
por ampla maioria um projeto de lei que criava o "Programa de atenção
humanizada ao aborto legal e juridicamente autorizado", com objetivo de
melhorar o atendimento em casos autorizados de interrupção da gravidez.
A
proposta foi elaborada em 2017 pela então vereadora Marielle Franco (PSOL),
assassinada no ano seguinte.
Já
em Belo Horizonte, a Câmara de Vereadores aprovou em abril uma lei que ficou
conhecida como "censo do aborto", obrigando a divulgação de
estatísticas de aborto no site da prefeitura e no Diário Oficial do Município.
A
nova legislação, porém, está suspensa por decisão do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais (TJMG), que avaliou que a nova regra fere o direito à privacidade
das mulheres, ao obrigar a Prefeitura "a publicar/expor dados pessoais
sensíveis, incluindo menores de idade".
Opositores
da lei viram uma tentativa de constranger médicos e mulheres que realizassem
aborto legal, argumentando que o DataSUS, do Ministério da Saúde, já reúne
dados sobre aborto legal.
Os
apoiadores, por sua vez, disseram que o levantamento municipal traria mais
dados para políticas de prevenção.
"O
objetivo é ter transparência. Eu sou uma vereadora pró-vida, e quero fazer
políticas públicas para chegar antes da violência, antes do estupro, para a
gente proteger verdadeiramente essas mulheres e meninas", afirmou a autora
do projeto de lei, a vereadora Flávia Borja (Democracia Cristã), segundo
reportagem de julho do jornal Folha de S.Paulo.
Já
em Santa Maria, no interior gaúcho, a Câmara Municipal aprovou, no final de
2023, dois projetos de lei do chamado "pacote pró-vida", que acabaram
vetados pelo prefeito, Jorge Pozzobom (PSDB).
Um
determinava que os médicos deveriam oferecer a mulheres com direito ao aborto
legal a realização de uma ultrassonografia para escuta dos batimentos cardíacos
do embrião ou feto, antes do procedimento.
O
outro determinava a fixação de cartazes sobre supostos danos físicos e
psicológicos relacionados ao aborto em hospitais e consultórios médicos.
Projetos
de lei com teor semelhante, apresentados pela vereadora candidata à reeleição
Comandante Nádia (PL), aguardam votação na Câmara de Porto Alegre.
Após
críticas, porém, a proposta sofreu alteração para retirar a previsão de que
fosse oferecido o ultrassom às grávidas antes do aborto legal.
À
BBC News Brasil, a vereadora diz que esse trecho foi incluído equivocadamente,
ao usar como base para sua proposta um modelo de projeto de lei que já estava
pronto.
Ela
afirma que o principal objetivo do seu "pacote pró-vida" é ampliar a
informação disponível para mulheres que pretendem abortar sobre como é
realizado o procedimento.
"Essa
mulher [que pretende abortar] tem o direito de saber que ela vai ser
anestesiada de uma forma geral, vai ficar de perna aberta em uma mesa
ginecológica, como é feita a retirada do bebê, que é por sucção, que as partes
vão ser se extirpadas dali, para onde esses restos vão ser levados",
argumenta a vereadora, relatando de forma imprecisa o procedimento, que, a
depender da idade gestacional, pode ser realizado em casa, apenas com
medicamentos.
"[São
informações para] que ela entenda que o aborto não é a retirada de um dente
siso. É algo muito mais grave e que pode ter sequelas psicológicas nessa
mulher, pode ter sequelas físicas."
• 'Debatem
o que não têm competência para decidir para não jogar luz no que deveriam
cumprir'
A
dedicação de câmaras municipais ao tema é alvo de críticas.
A
advogada Ana Clara de Carvalho Polkowski, cofundadora do Instituto Planejamento
Familiar (IPFAM), considera que as iniciativas para aprovar leis sobre aborto
em Estados e municípios são inconstitucionais, porque apenas o Congresso
Nacional pode restringir ou ampliar esse direito.
"Embora
esse tema esteja quente na campanha municipal, não é de competência das câmaras
de vereadores ou dos Estados. Nosso regime jurídico é diferente do dos Estados
Unidos, onde Estados podem legislar sobre o tema", ressalta.
Na
sua visão, o fato de o direito ao aborto ter se tornado um tema central na
eleição presidencial americana, em curso no momento, está aumentando o apelo do
assunto na eleição municipal brasileira.
Lá,
o aborto era amplamente liberado desde os anos 70, mas a Suprema Corte
americana derrubou essa decisão em 2022 e autorizou os estados a adotarem
restrições.
O
candidato republicano, o ex-presidente Donald Trump, apoia a mudança, enquanto
sua adversária, a candidata democrata Kamala Harris, atual vice-presidente,
quer a volta do direito amplo à interrupção da gravidez.
Para
Polkowski, os municípios brasileiros deveriam estar mais focados em melhorar
seus serviços de planejamento familiar e de prevenção da gravidez indesejada,
com mais oferta de métodos contraceptivos e serviços de saúde para
adolescentes.
Já
nas escolas, defende a advogada, as prefeituras deveriam capacitar suas equipes
a identificar casos de abuso sexual.
"Estão
debatendo [nas câmaras municipais] um assunto que não têm competência legal
para debater, para não jogar luz no que os municípios têm dever de cumprir,
como garantir método contraceptivo e cumprir a lei do planejamento
familiar", reforça.
Para
a vereadora de Porto Alegre Comandante Nádia (PL), os temas não se excluem.
"A
vida acontece no município. Então, é função do município se envolver em pautas
que são nacionais, mas que vão ter repercussão muito grande nos
municípios", defende.
A
BBC News Brasil solicitou entrevista a Damares Alves e Michelle Bolsonaro, mas
elas não quiseram se manifestar.
• Os
possíveis impactos da eleição em SP sobre aborto legal
Em
São Paulo, maior cidade do país, o resultado da eleição pode ter impacto direto
no acesso à interrupção da gravidez em casos previstos em lei.
O
tema ganhou destaque no município com a decisão do governo de Ricardo Nunes
(MDB), prefeito candidato à reeleição, de interromper o serviço do aborto legal
no hospital maternidade Vila Nova Cachoeirinha.
A
unidade era referência neste tipo de atendimento e, segundo movimentos de
mulheres na cidade, a única do município a interromper gestações em estágio
avançado.
A
justificativa da Prefeitura foi liberar a equipe do hospital para outros
procedimentos, como cirurgia de endometriose.
Questionado
sobre o assunto ao longo da campanha, Nunes tem dito que foi uma decisão
técnica e que o aborto legal é oferecido em outras unidades municipais.
Hoje,
as pesquisas eleitorais mostram que o prefeito disputa uma vaga no segundo
turno da eleição em São Paulo com os candidatos Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo
Marçal (PRTB).
O
primeiro integra um partido que defende abertamente o direito ao aborto, mas
tem evitado colocar o tema como algo central em sua campanha.
Já
o segundo se coloca fortemente contra a interrupção da gravidez e já disse que
"não vai haver facilitação para isso [acesso ao aborto]" em um
eventual governo seu.
A
vereadora paulistana Silvia Ferraro (PSOL), candidata à reeleição, diz que
Boulos está comprometido com a ampliação do serviço na cidade.
"A
gente espera que o Boulos ganhe e que uma das primeiras medidas seja reabrir o
serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha", diz Ferraro à
BBC News Brasil.
"Nossa
batalha continua sendo para que o aborto legal exista de fato na cidade de São
Paulo, e não só em gestações avançadas, mas em mais hospitais, inclusive com
acolhimento decente [para as gestantes]", reforçou a vereadora, que
integra a Bancada Feminista, um mandato coletivo com outras mulheres.
Seu
mandato destinou recursos de emendas parlamentares para o serviço de aborto
legal do Vila Nova Cachoeirinha, antes de ele ser interrompido.
Foi
também responsável por uma emenda ao projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) para 2025 que tentava reabrir o atendimento, mas a proposta foi rejeitada
pela maioria da Câmara Municipal.
Apesar
da esperada volta do serviço em uma eventual gestão Boulos, o candidato não
colocou a proposta oficialmente em seu plano de governo.
Questionado
sobre o tema durante a corrida eleitoral, ele tem dito que é a favor do aborto
legal, sem fazer disso uma bandeira de campanha.
Para
a cientista política Nara Salles, pesquisadora da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), a decisão de Boulos de não dar destaque a um tema caro ao
seu partido tem a ver com seu bom posicionamento nas pesquisas, com chances
reais de chegar ao segundo turno.
"Quando
o candidato está menos competitivo, tem mais liberdade para estar mais próximo
do seu eleitorado mais cativo", analisa Salles.
"Quando
está mais competitivo, há essa necessidade de ampliar a sua base. Então, o
candidato evita tocar em pontos que possam ser delicados para grande parte do
eleitorado."
Salles
é uma das coordenadoras do projeto Vota Aí, banco de dados que reúne os planos
de governo de candidatos a prefeito em todo o país, desde a eleição de 2012.
Um
levantamento feito a pedido da BBC News Brasil nas últimas disputas municipais,
identificou que a temática da interrupção da gravidez ainda é rara nesses
documentos, mas mais comum entre concorrentes da esquerda.
O
termo apareceu em 40 planos de governo em 2012, depois em 48 em 2016, chegando
a 105 em 2020.
Já
neste ano, há 61 menções ao tema num universo de cerca de 15 mil planos
analisados, com destaque para candidatos do PSTU (16), PSOL (15) e PT (13).
Os
números surpreenderam Salles, que esperava uma incidência maior do tema nas
campanhas pelas prefeituras.
"Como
o aborto é um tema muito importante no debate ideológico que a gente tem vivido
no Brasil nos últimos anos, eu achava que, como marcador de posição, iria ser
mais mencionado [nos planos de governo]", diz a pesquisadora.
"Mas
os números mostram que acabam prevalecendo [propostas para] resolver questões
que são mais concretas [na vida das cidades], em vez de se posicionar num tema
delicado, em que o candidato pode perder voto."
Fonte:
BBC News Brasil
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