sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Na Transamazônica, município foco de incêndios não tem quartel do Corpo de Bombeiros

Fumaça, fuligem e poeira se misturavam no ar da Transamazônica no final da tarde da segunda-feira (23), quando o sitiante Geovane Pereira Lacerda saiu de sua propriedade em uma caminhonete em direção ao centro de Rurópolis (PA). A cerca de 50 metros, do outro lado da rodovia, um incêndio destruía o pasto da propriedade do seu irmão e ameaçava “pular” o asfalto para dentro de seu sítio de 500 hectares.

“O fogo aqui ele surge de repente. É de uma fagulha de cigarro, é de uma descarga [do escapamento] de uma carreta. E vai indo. À noite ele começa devagar e tal. Quando dá meio-dia, pras três horas, o vento sopra mesmo pra valer, aí não tem como segurar, né?”, disse Lacerda à Agência Pública.

Por quase duas horas, a reportagem acompanhou um combate quase inexistente ao fogo. Na fazenda, apenas dois peões a cavalo, sem nenhum equipamento de proteção e só com baldes de água, tentaram impedir o avanço das chamas. Foi em vão, as chamas queimaram largas porções da terra, árvores, um bambuzal inteiro, cercas, uma porteira. Lacerda calculou que o fogo destruiu cerca de dez hectares.

Quando o incêndio começou, o sitiante disse ter procurado a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que teria prometido enviar apoio, mas ninguém apareceu. E o Corpo de Bombeiros, para cujo telefone se deve ligar em caso de fogo?, quis saber a Pública. “Nós não temos bombeiro na cidade. Tem duas camionetes andando por aí, mas na hora do pega pra capá… Nós não temos a quem ligar, não tem um telefone a quem recorrer.”

Por uma coincidência, no começo daquela mesma noite a ajuda veio do céu: depois de mais de dois meses de seca em Rurópolis, caiu uma chuva moderada. Um curto respiro em uma sequência de incêndios no município, como de resto em todos os outros no sudoeste do Pará. Rurópolis é alvo frequente de queimadas, e as piores têm ocorrido de novembro a dezembro. No final do ano passado, dizem os moradores, a fumaça era tanta que as pessoas tinham dificuldade de dirigir automóveis e os postos de saúde ficaram superlotados.

<><> Por que isso importa?

•                                                 A Agência Pública está percorrendo a BR-163, entre os estados de Mato Grosso e Pará, e o município de Rurópolis é um dos locais dessa rota onde nossa equipe investiga como o tema das mudanças climáticas e meio ambiente vem sendo discutido nas eleições municipais. A região é extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades que registram grande adesão ao bolsonarismo.

Nos últimos meses, o número de focos de calor em Rurópolis, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), disparou de 18, em junho, para 760, em agosto, e 1.395, até o último dia 14 de setembro. No ano passado, o mesmo mês registrou 2,4 mil focos de calor.

Em Rurópolis, cidade de 35 mil habitantes que foi o primeiro núcleo rural criado em fevereiro de 1974 pela ditadura militar (1964-1985) no leito de recém-aberta Transamazônica no Pará, inexiste um quartel do Corpo de Bombeiros. A prefeitura local está trabalhando, junto com o governo do estado, para construir um prédio e receber a corporação pela primeira vez em 50 anos de história do município. O terreno já teria sido doado pela prefeitura.

Na ausência de bases fixas em diversos municípios, o Corpo de Bombeiros do Pará adota a chamada “Operação Fênix”, que consiste em enviar equipes itinerantes às regiões mais críticas na época das queimadas. A equipe fica por um período em Rurópolis e depois vai socorrer outros municípios. São “as duas camionetes” mencionadas pelo sitiante Lacerda. A operação, com cinco bombeiros, esteve em Rurópolis de 16 de agosto a 14 de setembro e deve retornar à cidade em outubro. Em relatório, os bombeiros atestaram que no período passado em Rurópolis combateram “dezenas de focos de incêndio”.

Um oficial do Corpo de Bombeiros disse à Pública, sob condição de não ter o nome publicado, que dos 29 municípios do sudoeste e do Baixo Amazonas do Pará, em apenas dois há quartéis dos bombeiros: um em Santarém e outro em Itaituba, que, aliás, foi criado na semana passada. Nessas duas microrregiões há mais de 1,3 milhão de habitantes em 750 mil km². Se fossem um país, apenas essas duas partes do Pará seriam maiores que a Alemanha, a Espanha ou a França.

Rurópolis tem 7 mil km² – cerca de quatro vezes o território do município de São Paulo. Sobre Rurópolis incidem duas importantes unidades de conservação no sudoeste do Pará: a Floresta Nacional do Tapajós, de 582 mil hectares (23,7% sobre a área de Rurópolis) e a Floresta Nacional do Trairão, de 257 mil hectares (22,9%).

Rurópolis é bem povoada na zona rural, com várias estradas e ramais abertos ainda na época da ditadura a fim de atrair moradores do Sul do país iludidos com promessas de terra fácil. Era a política integracionista dos militares. Muitas famílias, porém, foram abandonadas à própria sorte. Em 2010, o IBGE havia detectado que, enquanto 15 mil pessoas viviam na área urbana, outras 24 mil estavam na zona rural.

Sem a presença fixa de um quartel dos bombeiros, uma empresa que fornece carros-pipa e coleta de resíduos para a prefeitura, a AF Transportes, muitas vezes assume o combate direto aos incêndios. Seus funcionários não têm a experiência de um bombeiro nem os equipamentos necessários para o trabalho, como abafadores e mochilas d’água. A gerência da empresa disse à Pública que ela costuma atuar principalmente em situações críticas na zona urbana, pois muitas vezes o carro-pipa não consegue acesso às áreas florestais.

Segundo a gerência, a população tem procurado direto a empresa, “já no desespero”, antes de buscar um órgão público. Neste ano, os bombeiros da “Operação Fênix” que passaram um tempo em Rurópolis deram orientações aos funcionários da empresa a fim de evitar acidentes na hora do combate ao fogo.

•                                                 Há um ano, incêndios criaram “um caos” em Rurópolis, diz assistente social

O assistente social e advogado Miguel Pereira Neto, coordenador de políticas públicas da Secretaria Municipal de Assistência Social de Rurópolis, disse que o poder público na cidade procura se organizar no combate aos incêndios e tem trabalhado “para dar informações às pessoas” sobre a legislação ambiental. Na região, as queimadas costumam ganhar intensidade a partir de agosto e atingir o auge no final de dezembro. Desde agosto, as queimadas estão proibidas em todo o Pará por um decreto do governador Helder Barbalho (MDB).

Neto disse que costuma, por iniciativa do município, manter reuniões com representantes da prefeitura, do estado e, se estiverem na região, do governo federal a fim de discutir e prevenir as queimadas. Ele não quer que se repitam, neste ano, as cenas do final de 2023.

“No ano passado, este município aqui viveu um caos. Era fumaça de todos os lados, a gente não podia respirar, a gente não podia dirigir, não enxergava. Você acordava de manhã, você não via, por exemplo, um pedaço de pau na sua frente. Agora em 2023 já para a virada de 2024. Foi uma coisa louca. Você não via o sol, era muito triste. Eu sinceramente não tenho um conhecimento técnico para te dizer, mas eu acredito que poderá vir a acontecer neste ano novamente, se as queimadas continuarem.”

Segundo o assistente social, o hospital local ficou superlotado, principalmente com idosos e crianças com problemas respiratórios. “Era como se fosse um daqueles dias da covid-19 ainda sem a vacina.”

Neto não vê como uma “cultura do povo”, em Rurópolis, a prática das queimadas na zona rural. “Eu acho que o município é muito novo pra ter uma cultura como essa, de destruição. Quando ele nasceu, já nasceu dentro de uma cultura de preservação do meio ambiente. E também são pessoas novas, em relação à idade mesmo. Elas não têm como dizer que não conhecem essas leis de proteção ambiental. E eu sempre digo que nós temos leis municipais, estaduais e federais que dão um foco, que direcionam, ou seja, que fazem com que as pessoas possam estar se fundamentando em qualquer ação dessa natureza [causar fogo]”, disse Neto.

Rurópolis foi criado em 1974 e emancipado em abril de 1988, pouco meses antes da promulgação da Constituição.

O delegado de Polícia Civil há 17 anos no município, Ariosnaldo da Silva Vital Filho, disse que, neste ano, não há registro de incêndios criminosos no município. Há alguns poucos inquéritos em andamento, no aguardo de exames periciais, a fim de investigar queimadas de anos anteriores. Contudo, ele descartou uma ação organizada entre proprietários rurais ao mesmo tempo, por exemplo, como foi registrado em outras partes do país. “Não temos nada sobre isso aqui.”

•                                                 ICMBio não fala sobre situação nas florestas nacionais

“Precisamos entender que o estado do Pará é uma unidade da Federação com dimensões continentais. Não é nem um país, tá? Embora nós tenhamos tido incremento de investimento, tanto em material como em pessoal, na gestão do atual governador, é muito complicado a gente reverter um atraso que a corporação teve, de décadas, em apenas seis anos”, disse o oficial do Corpo de Bombeiros que falou em condição de anonimato.

O governo estadual abriu concurso para contratação de cerca de 1,9 mil bombeiros – a corporação tem hoje 2,6 mil servidores. O oficial argumentou que os bombeiros “têm feito sua parte, mas no interior das Flonas [florestas nacionais] é com o governo federal”.

A fiscalização sobre o que ocorre nas duas florestas nacionais em Rurópolis, Tapajós e Trairão, é de responsabilidade do ICMBio, mas ele não tem escritório de representação em Rurópolis. Há, perto do centro da cidade, apenas uma pequena base de madeira ocupada por brigadistas. Quando a Pública chegou ao local, havia dois funcionários. O ICMBio se recusou a permitir que a reportagem conversasse com as pessoas e argumentou que as informações só poderiam ser passadas pela chefia do órgão, em Santarém.

Desde a semana passada, a Pública solicitou diversas vezes, inclusive pessoalmente, em Santarém, e por e-mail, à assessoria de imprensa do órgão, em Brasília, uma entrevista com os responsáveis pelo ICMBio na região, mas ela não foi concedida nem agendada até o fechamento deste texto.

 

•                                                 Após acordo no STF, indígenas esperam indenização para retirada de fazendeira, que segue em TI sob escolta da PM

O clima está "mais tranquilo", disseram lideranças da Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu ao Brasil de Fato, depois que, em audiência no Supremo Tribunal Federal (STF), foi firmado o acordo para que fazendeiros se retirem do território em Antônio João (MS) mediante indenização do Estado. 

Sem data definida publicamente para o pagamento ocorrer, no entanto, os proprietários da Fazenda Barra - Pio Queiroz e Roseli Ruiz - seguem no território sob escolta da Polícia Militar (PM). A Força Nacional também está presente na área.

A audiência de conciliação mediada pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes na última quarta-feira (25) aconteceu depois que o conflito, que se arrasta há décadas, escalou. Após uma tentativa dos indígenas de retomar a área da Fazenda Barra em 13 de setembro, a PM alvejou uma mulher no joelho e um jovem na cabeça. Neri Ramos, de 23 anos, morreu na hora. Dias depois, Fred Garcete, Kaiowá de 15 anos, foi encontrado morto na estrada. 

Depois de sete horas de negociação em Brasília, foi assinado o acordo de que a União deve pagar uma indenização de R$ 27,8 milhões aos fazendeiros pelas benfeitorias feitas nos imóveis sobrepostos ao território indígena. Outros R$ 102 milhões serão pagos (majoritariamente pela União, mas também pelo governo do Mato Grosso do Sul) pelo Valor de Terra Nua (VTN), ou seja, o preço de mercado do imóvel sem contar construções ou instalações.  

Enquanto o debate público se acirra em relação à abertura de precedente sobre a indenização de fazendeiros por terra nua, algo que ruralistas defendem e que organizações como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dizem ser inconstitucional, os Guarani Kaiowá de Nhanderu Marangatu contam os dias para ocupar de uma vez por todas os 9.317 hectares de seu território.

O próximo passo para que isso aconteça é o pagamento das benfeitorias, que deve ser realizado pela Fundação Nacional dos Indígenas (Funai) por meio de crédito suplementar. Feito o depósito, os fazendeiros terão 15 dias corridos para sair da área. 

O Brasil de Fato questionou a Funai e o STF sobre a previsão para que o pagamento ocorra e não teve resposta até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto. A data não está estipulada na ata do acordo. 

Advogados indigenistas que acompanham o caso afirmam ter a expectativa de que as benfeitorias sejam pagas em até 30 dias e que, assim, até o fim novembro não haja mais fazendeiros no território. 

Já Nalva*, liderança de Nhanderu Marangatu, acredita que o pagamento deve levar até três meses. "Estamos aguardando essa indenização, né? Mas, assim, a fazendeira continua, ela anda escoltada com segurança do Estado dentro da aldeia", conta.

"Estamos vivendo esta situação: não muito bem, mas também não muito mal", define João*, outro Guarani Kaiowá. "Ainda temos dificuldade de acessar água e alimentos, estamos pedindo doação", relata.

O que diz o acordo

Após o depósito dos cerca de R$ 28 milhões em indenização por benfeitorias e a retirada dos fazendeiros em até 15 dias, "a comunidade indígena ingressará no imóvel de forma mansa e pacífica", diz a ata da audiência de conciliação.

O Estado deverá pagar o valor restante de R$102 milhões divididos aos fazendeiros proporcionalmente aos hectares de seus imóveis, por meio de precatórios. Este pagamento deve ocorrer entre 2025 e 2026.

"As partes se comprometem a suspender imediatamente os atos de hostilidade", discorre o documento firmado, "e a Polícia Militar do Estado do Mato Grosso do Sul manterá o policiamento ostensivo apenas na área da Fazenda Barra e na estrada até a rodovia, utilizando o uso proporcional da força quando estritamente necessário".

* Nomes alterados para a preservação da fonte.

 

Fonte: Por Rubens Valente, da Agencia Pública/Brasil de Fato

 

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