"Nada se cria, tudo se copia”: Os
candidatos a prefeito que usam propostas idênticas em planos de governo
Ao menos 71 candidatos
às eleições municipais deste ano prometem criar um programa de nome Arte pra
Guri, "com ações educativas, assistenciais e culturais para crianças do
município". Em uma versão alternativa, com a mesma descrição, o nome muda
para "Arte pra Piá" ou ainda "Arte pra Criança".
Outros 220 postulantes
às prefeituras sugerem a "criação do Programa Natal Sem Fome no
município".
No esporte, 339
candidatos garantem que oferecerão "o acesso de todos às atividades
físicas, desportivas e de lazer e criaremos programas específicos para atingir
a todos os públicos."
Na área ambiental,
querem "políticas de educação ambiental continuada, incentivo à reciclagem
de materiais e uso equilibrado dos recursos naturais e energia", frase
apresentada por pelo menos 306 políticos.
Uma análise de texto
de cerca de 15 mil propostas de candidatos a prefeito de todo o país feita pela
BBC News Brasil revela informações genéricas, muitas vezes reutilizadas na
íntegra, palavra a palavra, de outros documentos.
Não há uma única fonte
primária: há textos que foram usados em eleições anteriores por outros
candidatos, textos compartilhados entre colegas de partido, partes extraídas de
guias de como fazer um plano, diretrizes genéricas dadas pelos partidos, dentre
outros casos.
Os arquivos foram
obtidos pela BBC News Brasil diretamente do site do Tribunal Superior Eleitoral
e transformados em um único documento, para facilitar as análises - cerca de 5%
dos planos foram descartados por não estarem em um formato legível por máquina
(como imagens). Havia ainda 300 pessoas que não tinham nenhum documento
protocolocado no site do tribunal.
Apresentar um plano de
governo é um requisito obrigatório para qualquer pessoa se candidatar a cargos
eletivos no Brasil, segundo a lei eleitoral. Mas não há nenhuma regra
específica sobre como esses planos devem ser elaborados e nem mesmo sobre como
serão executados, se a pessoa for eleita.
Na prática, isso
resulta em propostas de governo de todo o tipo: há arquivos apresentados em
forma de imagem ou slides, arquivos com centenas de páginas e outros com apenas
uma.
O candidato do PL a
prefeito de Aparecida (interior de São Paulo), Zé Louquinho, por exemplo,
apresentou talvez a proposta mais sucinta das eleições: "As principais
propostas e metas da coligação Aparecida é Nossa História são Saúde, Educação,
Emprego, Segurança e Meio Ambiente", texto que aparece na primeira e única
página do projeto. Ele não respondeu ao pedido de entrevista.
Uma pesquisa no Google
por "Um plano de governo eficaz deve ir além da sugestão de
propostas", por exemplo, exibirá programas de candidatos de várias cidades
e Estados. Isto porque mais de 700 candidatos a utilizaram na introdução de
seus planos só neste ano. A frase também já foi usada em campanhas anteriores e
já levou até mesmo à acusação de plágio entre adversários.
Um desses trechos
idênticos dá a entender que houve um processo ativo para desenvolver o plano de
governo, não que se trata de um texto genérico.
"Após escutarmos
a população, através de plenárias partidárias, vimos por meio deste plano de
governo, registrar nosso compromisso com a cidade de [aqui o candidato coloca o
nome da cidade em que disputa a eleição], e para isso tornamos público este
documento, oficializando nossas propostas por uma cidade mais justa,
igualitária, participativa, responsável, transparente e democrática."
Em mais de 200
propostas, há ainda um mesmo erro de português: um capítulo dedicado aos
"programas assitenciais" (ao invés de assistenciais). cujo primeiro
tópico é sempre "fomentar o programa de políticas de segurança alimentar e
nutricional".
Existem planos com
frases iguais até entre candidatos que competem entre si. Em São Felix do
Xingu, no Pará, o representante do Avante, Zé Wilson, e o do PL, Silvio Terraço
Hotel, prometem "implementar programa para tornar a cidade conectada com
instalação de WIFI (internet móvel) nos principais pontos e praça da cidade
para facilitar comunicação e interação da população acompanhando as novas
tecnologias", um texto que também é reproduzido em outros municípios.
Outros trechos dos planos desses candidatos também são parecidos ou iguais. Os
candidatos não responderam ao pedido de entrevista.
• “Queremos pegar ideias boas de quem quer
que seja”, diz candidato
Um dos candidatos que
fez uso de um plano de governo com trechos inteiros iguais ao de outras
propostas é o Pastor Gerson, da Democracia Cristã, em Cruzeiro, no interior de
São Paulo. O título de seu projeto apresentado ao TSE é "Plano de governo
(genérico)".
No texto, o candidato
cita propostas para um município que não é o que ele concorre - a cidade de
Rancho Alegre, no Paraná. "O plano para o desenvolvimento econômico do
município de Rancho Alegre será pautado na combinação de desenvolvimento humano
(IDH) com o desenvolvimento econômico (PIB)".
A pequena cidade
paranaense, aliás, aparece em ao menos 11 propostas de candidatos de diferentes
cidades e Estados, que dizem querer "reativar e reformular a Associação de
Produtores Rurais de Rancho Alegre".
O texto com essa
proposta aparecia no plano de governo do atual prefeito de Rancho Alegre,
Fernando Carlos Coimbra, apresentado em 2020 quando ele disputou a eleição.
O documento enviado
pelo Pastor Gerson ao TSE é assinado por uma prestadora de serviços de
contabilidade, a R & R Contabilidade e Serviços. A BBC News Brasil
conversou com um representante, Rogério Miranda, por telefone, que afirmou ter
sido ele a fazer o rascunho do plano. Ele reconheceu ter usado trechos de
propostas de outras cidades - inclusive Rancho Alegre - mas que achava que o
pastor faria alterações antes de submeter o documento final ao tribunal.
"O Pastor Gerson
é muito amigo. O que nós fizemos para ele foi um copy desk", explicou.
"Eu coloquei bem claro lá em cima: genérico. Não é plano oficial. É plano
genérico. Se ele transformou em oficial, aí é dele".
Miranda disse que a
prática é comum no mercado: buscar outras propostas passadas na internet e
tentar alinhar às ideias do cliente. "É tipo propaganda de supermercado:
Agradecemos a preferência e volte sempre". Negou, no entanto, ter feito
planos para outros candidatos - teria feito somente para o pastor, por amizade.
O candidato não declarou nenhuma despesa de campanha até o momento.
"Você sabe que no
mundo nada se cria, tudo se copia. É até um princípio jornalístico. De repente
o que é bom pra Sorriso do Oeste também é bom pra Cruzeiro. Opa, isso aqui do
turismo é legal, deu certo lá ou vai dar certo lá, vamos colocar em nossa cidade
algo parecido?", explicou ele. "Por que não usar isso? Muda-se a
cidade, muda-se algumas palavras, mas é simplesmente um copy desk".
Em nota, o pastor
Gerson reconheceu que os planos de governo “coincidem” com o de outras cidades,
mas diz que não há nada de errado na prática. “Queremos pegar ideias boas de
quem quer que seja.”
• "Candidatos só cumprem o que a lei
exige e, se eleitos, vão correr atrás de colocar uma estratégia governamental
de pé", diz especialista
Imagina-se que
candidatos desenvolveram ideias que se alinham à corrente ideológica de seus
partidos, discutiram essas ideias com a sociedade e então produziram planos
enquadrados na realidade orçamentária de cada município.
Na prática,
especialmente entre postulantes com menos estrutura e recursos, não é isso que
acontece.
Especialistas ouvidos
pela BBC News Brasil que já trabalharam com candidatos dizem que o "copia
e cola" é uma prática usual, especialmente em cidades menores, e que a
produção do plano não costuma ser uma prioridade.
"É uma exigência
sem padronização. Exige-se documento, mas não se fala quantas páginas, quais as
temáticas mínimas, o nível de profundidade ou a necessidade de ter
especialistas que validem o documento", diz o diretor-executivo do
RenovaBR, escola de formação política, Rodrigo Cobra. A organização realizou
neste ano uma série de aulas que discutiram como elaborar planos de governo e
sua importância nas cidades.
Para o professor de
administração pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), Marcelo Coutinho,
a exigência de apresentar um plano de governo sem qualquer critério torna as
propostas irrelevantes. "Abre-se oportunidade para uma figura especializada
que vai atender a essa demanda do TSE, uma espécie de despachante de plano de
governo", diz.
Para ele, os planos
servem hoje, na prática, apenas para gerar conteúdo para as campanha de
marketing dos candidatos, mas nem sequer são lidos pelos eleitores - e
possivelmente, nem pelos próprios políticos que os apresentam. "O eleitor
sabe que o candidato não vai cumprir tudo que está em seu plano, que é
necessário negociar com a Câmara e tudo mais. É uma peça de ficção."
Para Jeconias Júnior, secretário-executivo
adjunto da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP), a falta da qualidade
dos textos está diretamente ligada à falta de estrutura à disposição dos
candidatos, especialmente em cidades menores. "Os candidatos só cumprem o
que a lei exige e, se eleitos, vão correr atrás de colocar uma estratégia
governamental de pé."
A FNP lançou neste ano
uma série de webinários que discutem desafios nos municípios para ajudar
candidatos a pensarem em propostas. “As candidaturas nas cidades de pequeno e
médio porte enfrentam dificuldades estruturais que afetam diretamente a
qualidade dos planos de governo. Candidatos, por falta de suporte técnico ou de
recursos, acabam repetindo fórmulas genéricas que pouco dialogam com as
necessidades locais”, destacou Jeconias.
• Candidatos do PCO e do Novo usam texto
único, sem citar nome da cidade em que disputam cargo
O levantamento da BBC
News Brasil também identificou que ao menos 55 candidatos, sendo 42 do PCO e 13
do Partido Novo, apresentaram propostas ao TSE cujo texto é declaradamente
genérico, sem apresentar informações específicas da cidade.
"Neste programa,
apresentamos um programa de eixos gerais, válido para todo o País e para a luta
de todos os trabalhadores", diz a apresentação do texto genérico do PCO,
que afirma ainda que as propostas concretas apareceriam somente na campanha.
No mesmo texto usado
por seus candidatos, o PCO diz que o papel dos candidatos a prefeito, mesmo
eleitos, "não é nem mesmo se propor a resolver todos os problemas das
cidades. O papel primordial é de se colocar como representante da luta dos
trabalhadores no governo".
Tática parecida foi
adotada por pelo menos 13 candidatos do Partido Novo, que usaram um mesmo
arquivo de propostas, sem alterações, embora tenham se lançado candidatos em
cidades e Estados diferentes.
Sharon Braga,
candidato a prefeito do Novo em Macapá, capital do Amapá com quase 500 mil
habitantes, é um dos que fizeram uso da cartilha. O texto contém três páginas e
se divide nos seguintes eixos: combate à corrupção e aos privilégios; liberdade
individual e respeito ao próximo; império da lei e democracia; livre mercado e
direito à propriedade; Estado enxuto, eficiente e a serviço das pessoas e
oportunidade a alcance e todos.
Braga afirmou à BBC
News Brasil que tem um plano de governo, mas admitiu que não foi ele ou sua
equipe a enviar o arquivo ao TSE, e sim o próprio partido. "Com a correria
da campanha, não verifiquei", disse. Ele enviou à reportagem um outro plano
por e-mail, mas o documento ainda não aparecia no site do tribunal até o
fechamento da reportagem.
O PCO informou que o
uso de um texto único foi orientação do partido. “O PCO é um partido
centralizado e, portanto, nossa política é centralizada e representada
integralmente por nossas candidaturas. Explicamos, no programa enviado ao TSE,
que temos uma política geral para o País, pois achamos que os problemas
fundamentais do povo brasileiro não podem ser resolvidos a nível municipal.
Entretanto, também explicamos que as posições políticas acerca de temas mais
específicos de cada cidade podem ser lidas através de toda a nossa imprensa”.
Fonte: BBC News Brasil
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