É possível diagnosticar psicopatia em
crianças?
A resposta mais curta
para a pergunta que aparece no título dessa reportagem é não: segundo os
critérios utilizados atualmente na psiquiatria, crianças e adolescentes não
podem ser classificados como psicopatas.
Como você vai entender
ao longo da reportagem, isso tem a ver com uma série de questões éticas,
estigmas históricos e debates entre especialistas que, no final das contas,
geraram uma classificação e um nome diferente para um problema que já pode ser
observado nos primeiros anos de vida.
Falamos aqui do
"transtorno de conduta", que aparece nos manuais de psiquiatria como
um conjunto de "comportamentos severos que violam os direitos de outros ou
as normas sociais".
A boa notícia é que
existem maneiras de diagnosticar essa condição no público mais jovem — e alguns
tratamentos efetivos, que envolvem a família toda, podem ajudar a modificar
comportamentos inadequados e até prevenir problemas mais sérios no resto da vida
do indivíduo acometido pelo quadro.
Entenda a seguir quais
são os traços de personalidade que podem sugerir um transtorno de conduta logo
nos primeiros anos de vida, segundo as evidências científicas e o consenso
entre especialistas.
• O que é psicopatia
Para começar a
entender o assunto, é preciso conhecer melhor o que de fato significa ser
psicopata.
"A psicopatia é
um diagnóstico clínico, definido a partir de uma combinação de fatores, como
demonstrar menos emoções, uma ausência de remorso ou arrependimento, um certo
charme e, ao mesmo tempo, uma impulsividade e um comportamento antissocial repetido",
resume a psicóloga Arielle Baskin-Sommers, professora associada da Universidade
Yale, nos Estados Unidos.
"E todos esses
atributos combinados fazem com que o indivíduo tenha um risco maior de violar
normas, regras e leis", complementa a especialista.
Em termos práticos,
uma das ferramentas mais utilizadas para diagnosticar alguém com esse
transtorno é a chamada Lista Revisada de Psicopatia de Hare, desenvolvida pelo
psicólogo canadense Robert Hare a partir dos anos 1970.
Em resumo, esse
instrumento é composto por 20 itens que ajudam a entender se uma pessoa tem
traços de psicopatia ou não. A lista inclui:
• Eloquência e charme superficial;
• Senso grandioso de autoestima;
• Necessidade de estímulos e propensão ao
tédio;
• Mentira patológica;
• Enganação e manipulação;
• Falta de remorso ou culpa;
• Afeto superficial;
• Insensibilidade e falta de empatia;
• Estilo de vida parasitário;
• Controles comportamentais precários;
• Comportamento sexual promíscuo;
• Problemas comportamentais iniciais;
• Falta de metas realistas e de longo
prazo;
• Impulsividade;
• Irresponsabilidade;
• Falha em aceitar a responsabilidade por
suas próprias ações;
• Muitos relacionamentos de curto prazo;
• Delinquência juvenil;
• Revogação de liberdade condicional;
• Versatilidade criminal.
Um profissional
treinado nessa escala de Hare pode avaliar um paciente a partir de cada um
desses 20 domínios. Quanto mais elevado for o resultado final da avaliação,
maior a chance de essa pessoa ser de fato psicopata.
Um ponto importante
aqui é que a psicopatia não está necessariamente sempre relacionada com a
violência física e o cometimento de crimes.
"Em termos
probabilísticos, alguém com psicopatia tem mais risco de ser violento. Mas há
pessoas que são psicopatas e não se engajam em comportamentos de
violência", diferencia Baskin-Sommers.
"E, por outro
lado, a vasta maioria dos indivíduos que são violentos não tem psicopatia.
Estima-se que esse transtorno afeta 1% da população geral. E, mesmo dentro do
sistema penal, a prevalência de psicopatia fica ao redor de 25%", calcula
ela.
"Ou seja, entre
sujeitos que estão no sistema penal a psicopatia é mais comum, mas ela não é
majoritária nem mesmo nesse contexto."
• O 'sumiço' da psicopatia
Mas há um problema
nessa definição de psicopatia, pelo menos do ponto de vista clínico, na hora em
que o diagnóstico é feito no consultório.
Os mais recentes
consensos da área, como a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtorno Mentais (DSM-5), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria
e reconhecido como um dos principais guias dessa especialidade médica, aboliu o
termo "psicopatia".
Atualmente, o
diagnóstico que mais se aproxima a esse quadro é o chamado "transtorno de
personalidade antissocial".
Segundo a associação
americana, pessoas com esse quadro "podem repetidamente desconsiderar ou
violar os direitos dos outros, mentir, enganar ou manipular, agir
impulsivamente ou desconsiderar a segurança de si próprios ou de outros".
"Elas podem ter
problemas com uso de drogas ou álcool, violar a lei e normalmente não
demonstram remorso ou culpa", complementa a entidade.
Uma mudança parecida
ocorreu na versão mais recente da Classificação Internacional de Doenças (CID),
da Organização Mundial da Saúde, que abarca a psicopatia de forma mais
indireta, num rol de "transtornos de personalidade".
Segundo os
especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, essas mudanças de conceitos trazem
o foco do diagnóstico dessas condições para o comportamento antissocial do
paciente — e deixam de lado os traços de personalidade que são mais difíceis de
medir objetivamente, como a insensibilidade.
A mudança de
nomenclatura gerou críticas e muitos debates entre especialistas. A psicóloga
Abigail Marsh, professora de neurociência da Universidade Georgetown, nos EUA,
cita os estigmas como um fator por trás da mudança.
"Certas condições
são tão estigmatizadas que, independentemente do nome que receberem,
continuarão a enfrentar barreiras e problemas", avalia a especialista, que
também é cofundadora da Psychopathy Is, uma das únicas associações a fomentar
estudos e campanhas de conscientização sobre psicopatia.
"Em vez de
ficarmos mudando os nomes de tempos em tempos, seria melhor educar as pessoas
sobre a natureza desses transtornos, para desfazer mitos e medos que persistem
na sociedade", opina ela.
Temos, então, dois
cenários: do ponto de vista "oficial" e burocrático, na hora de fazer
o diagnóstico no consultório e liberar eventuais tratamentos por planos de
saúde, os médicos precisam usar os critérios que descrevem o transtorno de
personalidade antissocial, como rege o DSM ou o CID.
No entanto, em alguns
desses episódios, caso o paciente apresente alguns traços específicos, é
possível aprofundar um pouco mais a avaliação clínica e, com o auxílio de
ferramentas como a lista de Hare, investigar a possibilidade de uma psicopatia
(embora esse termo não apareça mais nos manuais da área).
Os métodos de
diagnóstico específicos da psicopatia também são muito usados no contexto de
pesquisas científicas, que tentam entender melhor as origens genéticas,
neurológicas e ambientais desse distúrbio.
• O que é transtorno de conduta
Como mencionado
anteriormente, o tal transtorno de personalidade antissocial só pode ser
diagnosticado em pacientes maiores de 18 anos.
Mas isso não quer
dizer que alguns indícios de psicopatia não possam ser observados antes, entre
a infância e a adolescência.
"É possível
verificar alguns pontos, como a ausência de manifestações emocionais, em
crianças bem jovens, aos cinco ou seis anos", diz o pesquisador James
Blair, professor de Psiquiatria Translacional da Universidade de Copenhague, na
Dinamarca.
"Naturalmente,
quanto mais jovem for o indivíduo, mais difícil é diferenciar as possíveis
causas e os transtornos", complementa ele.
O pesquisador Luke
Hyde, professor de psicologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos,
pondera que essas suspeitas de um distúrbio psiquiátrico em crianças e
adolescentes devem ser analisadas com muito cuidado — e com o auxílio de um
profissional especializado na área.
"Diversas
pesquisas mostram que muitos dos jovens que apresentam características
compatíveis com a psicopatia aos 15 anos deixam de atender a esses mesmos
critérios mais tarde, quando têm 21 ou 22 anos", observa ele.
"Por isso,
precisamos ter muito cuidado, pois um diagnóstico desses pode estigmatizar
esses indivíduos."
O especialista lembra
aqui do transtorno de conduta, que pode ser detectado no público com menos de
18 anos
"Esse distúrbio
está mais relacionado a questões como quebrar as regras ou agressões repetidas.
O DSM-5 explica que esses pacientes apresentam emoções pró sociais limitadas,
vistas numa certa falta de sensibilidade", resume ele.
Mas há sinais que
podem ser observados na prática?
"Algumas crianças
[com transtorno de conduta] são muito destemidas, têm níveis baixos de medo
diante de ameaças ou não param de fazer coisas pelas quais são repreendidas ou
punidas", exemplifica Marsh.
A especialista destaca
que, nesse contexto, a punição não envolve nada drástico ou violento. Elas
incluem conversas ou intervenções simples que pais e responsáveis fazem
rotineiramente para que seus filhos não tenham comportamentos inadequados ou
arriscados — como, por exemplo, pedir que a criança não coloque o dedo no
buraco da tomada uma segunda vez.
"Alguns
indivíduos nascem com níveis muito baixos de sensibilidade à punição. Daí elas
não temem as possíveis repreensões e não modificam o comportamento",
destaca Marsh.
"Com o passar do
tempo e a falta de resposta, os pais podem se frustrar e isso gera um ciclo de
comportamentos cada vez piores, com agravamento de insensibilidade e
impulsividade, que podem desembocar em psicopatia mais tarde em algumas pessoas",
raciocina a especialista.
Marsh avalia que os
pais precisam conhecer minimamente os comportamentos considerados adequados
para cada faixa etária.
"Há casos em que
a criança faz o que é esperado para alguém com três anos de idade. Mas há
outras situações em que já é possível notar algum sinal de transtorno",
pontua ela.
Entre os principais
pontos de atenção, a psicóloga destaca a insensibilidade à punição, o destemor
(não demonstrar medo diante de ameaças) e uma certa falta de afeição no contato
com os outros.
"E, conforme a
criança cresce, é possível observar que ela costuma quebrar muitas regras e não
demonstra empatia", complementa a especialista.
Transtorno de conduta
hoje, psicopatia amanhã?
No entanto, de acordo
com os pesquisadores, um erro comum por aqui é pensar que jovens diagnosticados
com transtorno de conduta estão praticamente condenados a virarem psicopatas no
futuro.
"A
insensibilidade e os outros traços emocionais desse distúrbio são apenas um
fator de risco para a psicopatia", esclarece Hyde.
O psicólogo compara o
possível vínculo entre os dois problemas com a relação estabelecida entre
pressão alta e infarto.
"Quem tem
hipertensão corre mais risco de sofrer uma parada cardíaca. Mas falamos aqui de
uma probabilidade, não de algo que vai necessariamente acontecer", detalha
ele.
"Provavelmente,
um número muito reduzido de crianças com transtorno de conduta serão psicopatas
na vida adulta, assim como uma quantidade pequena de hipertensos infarta",
pondera ele.
"Mas fazer esse
diagnóstico nos primeiros anos de vida pode ser uma boa maneira de identificar
os casos que vão se beneficiar de tratamentos e estratégias preventivas",
complementa o psicólogo.
• Intervenções precoces são efetivas
Mas o que pode ser
feito nesses casos? Que terapias estão disponíveis para ajudar crianças e
adolescentes com transtorno de conduta?
"É mito que
psicopatia ou transtornos de personalidade não podem ser tratados", diz
Marsh.
"Nesses casos,
temos abordagens muito efetivas, que frequentemente envolvem também os pais e
os cuidadores", responde Baskin-Sommers.
"A ideia aqui é
ensinar os responsáveis por aquele jovem a criar estratégias para conversar
sobre as emoções e criar limites em termos de comportamento", diz a
pesquisadora.
Essa intervenção,
chamada comumente de "terapia guiada pelos pais" ou "treinamento
de gerenciamento parental", conta com a participação de um terapeuta que,
durante as sessões conversa, orienta e instrui os responsáveis por aquelas crianças
com transtorno de conduta sobre a melhor maneira de lidar com o dia a dia.
A meta, claro, é
trabalhar aos poucos as atitudes e as emoções dos mais jovens, para que os
sintomas (insensibilidade, impulsividade, agressividade…) melhorem aos poucos.
"A ideia é
oferecer aos pais uma série de habilidades especiais para lidar com uma criança
cujo cuidado é mais desafiador", resume Hyde.
"Já nos
adolescentes, podemos usar a terapia multissistêmica, que envolve os pais,
membros da comunidade e o próprio jovem que apresenta comportamentos mais
extremos."
"Há também a
possibilidade de trabalhar questões específicas, como a raiva e as
agressões", complementa ele.
Marsh aponta que,
embora os métodos de psicoterapia sejam a primeira linha de intervenção, alguns
casos também se beneficiam de medicações.
"Temos algumas
evidências, ainda iniciais, que remédios usados no transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH) e alguns estabilizadores de humor podem
ajudar", conta a pesquisadora.
Blair reforça que as
intervenções precoces são efetivas e podem surtir resultados positivos durante
a vida toda daquele indivíduo.
"É muito mais
fácil modificar o comportamento de uma criança de cinco ou seis anos do que de
um indivíduo de 29 ou 30", avalia ele.
"Nós precisamos
ajudar e dar a essas pessoas e suas famílias ferramentas para que elas possam
ter uma vida feliz e cheia de possibilidades."
"Isso é bom para
elas mesmas e, claro, para toda a sociedade", conclui ele.
Fonte: BBC News Brasil
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