Liberdade religiosa e recusa de transfusão
de sangue por Testemunhas de Jeová
Na quarta-feira
(25/9/2024), o Supremo Tribunal Federal decidiu que as Testemunhas de Jeová, em
consagração de sua fé, têm o direito de recusar transfusão de sangue quando
necessitarem de tratamento médico. Em complemento, a corte decidiu também que,
nesses casos, o Estado tem a obrigação de oferecer tratamentos médicos
alternativos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que o paciente tenha de
ser deslocado para outras localidades.
Conforme se extrai de
notícia publicada no site do STF, foram fixadas as seguintes teses de
repercussão geral:
“RE 979742
1 – Testemunhas de
Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico
que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na
liberdade religiosa.
2 – Como consequência,
em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos
alternativos disponíveis no SUS podendo, se necessário, recorrer a tratamento
fora de seu domicílio”.
A toda evidência,
trata-se de decisão que, embora ativista
– na medida em que determina novos critérios para a execução de política
pública de saúde no Brasil –, representa um marco jurídico importante na
proteção da liberdade religiosa e na reafirmação da autonomia individual no
Brasil.
Não obstante, é
importante registrar que o STF impôs relevante ressalva à abrangência da
liberdade religiosa em casos que envolvam incapazes e, notadamente, menores de
idade. Isso porque a corte reconheceu o direito de recusa de transfusões de
sangue apenas para adultos capazes, mas negou essa prerrogativa, por exemplo,
aos pais que tentem impedir que filhos menores recebam esse tipo de tratamento.
Em casos como esses, o STF consagrou o princípio do melhor interesse para a
saúde e a vida de crianças e adolescentes, garantindo que a decisão final sobre
qual tratamento será aplicado a menores de idade, incluindo a transfusão de
sangue para Testemunhas de Jeová, fique a cargo do médico responsável.
A decisão prioriza a
vida e a saúde de crianças e adolescentes, mesmo que isso contrarie as crenças
religiosas dos pais, o que reflete uma ponderação entre o direito à liberdade
religiosa e o dever do Estado de proteger aqueles que estão em condição de vulnerabilidade.
A técnica de
ponderação utilizada pelo STF, que não é novidade no campo dos direitos
fundamentais, evidencia a necessidade de sopesar valores que, por vezes, entram
em colisão. No caso em questão, o direito à liberdade religiosa foi confrontado
com o direito à vida e à saúde. Em situações como essa, é necessário que a
corte decida qual direito prevalece em determinados contextos, levando em
consideração as circunstâncias específicas de cada caso. No caso das
Testemunhas de Jeová, a ponderação feita pelo STF levou à conclusão de que,
para adultos plenamente capazes, a autonomia individual deve prevalecer,
permitindo que se recusem a receber transfusões de sangue. No entanto, para
menores de idade, filhos de Testemunhas de Jeová, o princípio da proteção integral
da infância e adolescência prevalece, com o objetivo de garantir o direito à
vida e à saúde desses indivíduos.
• Diretivas Antecipadas de Vontade
Do ponto de vista
ético, essa decisão suscita importantes discussões sobre o conflito entre a
autonomia individual e o dever do Estado de preservar a vida. No contexto
médico, essa tensão entre princípios éticos é frequentemente abordada pelos
profissionais de saúde, especialmente quando o paciente recusa um tratamento
que pode salvar sua vida. O princípio da beneficência, que impõe aos médicos o
dever de agir em benefício do paciente, muitas vezes se choca com o princípio
da autonomia, que exige que a vontade do paciente seja respeitada, mesmo quando
suas decisões podem resultar em sua própria morte.
O caso das Testemunhas
de Jeová exemplifica esse dilema bioético, pois a recusa de transfusões de
sangue pode levar a consequências fatais. Nesse sentido, a decisão do STF
procurou equilibrar essas duas dimensões éticas, permitindo que os pacientes se
recusem a receber transfusões, mas exigindo que o Estado ofereça alternativas
que possam, dentro das possibilidades, preservar a vida.
No mais, a decisão do
STF contribui para a popularização de um instituto jurídico ainda
insuficientemente difundido no Brasil: as Diretivas Antecipadas de Vontade
(DAV). Trata-se de um documento em que o paciente manifesta previamente a sua
vontade em relação a tratamentos de saúde que deseja ou não receber no futuro,
como a transfusão de sangue.
Esse documento, que
comumente é registrado em cartório, permite que a vontade do paciente seja
respeitada mesmo em situações em que ele não possa expressá-la, como em casos
de incapacidade temporária ou permanente. A possibilidade de registro das
Diretivas Antecipadas de Vontade se alinha à crescente valorização da autonomia
individual nas decisões de saúde, proporcionando aos pacientes um mecanismo
formal para garantir que suas convicções sejam respeitadas mesmo diante de
situações críticas.
• O equilíbrio da decisão
Em suma, a decisão do
STF, de reconhecer o direito das Testemunhas de Jeová de recusarem transfusões
de sangue em consagração de sua fé e de exigir que o Estado ofereça tratamentos
alternativos pelo SUS, é um avanço importante na proteção das liberdades individuais
no Brasil. Ao mesmo tempo, a decisão traz desafios éticos, jurídicos e práticos
que exigem um cuidadoso equilíbrio entre o respeito às convicções religiosas, a
proteção da vida e a viabilidade de implementação dessas medidas no sistema de
saúde pública.
A ponderação feita
pelo STF, embora confirme a tendência ativista da corte, que não hesita em
avançar em domínios pouco ou nada explorados por Legislativo e Executivo,
demonstra o compromisso da corte com a efetivação dos direitos fundamentais, ao
mesmo tempo em que busca soluções que preservem a dignidade e a vida dos
cidadãos brasileiros.
Fonte: Por Eduardo de
Carvalho Rêgo, na Conjur
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