Produção e
consumo de carne estão associados à desigualdade estrutural no Brasil, diz
professora
No
Brasil há mais bois que pessoas. Vamos aos números. Em 2023 mais de 34 milhões
de animais foram abatidos, segundo o IBGE, totalizando 8,91 milhões de
toneladas de carne no período. Desse montante, 2,29 milhões, aproximadamente
25% da produção, foi destinada à exportação e o restante ao mercado interno.
Considerado o segundo maior rebanho do mundo, com cerca de 235 milhões de
animais (em 2022), ficando atrás apenas da Índia, o atual modelo de produção da
pecuária brasileira possui muitas contradições.
O
consumo de carne cumpre um papel nutricional relevante na dieta dos
brasileiros. Ao mesmo tempo o hábito de se alimentar de proteína animal – carne
vermelha – está associado a graves danos ambientais, como, desmatamento,
emissões de gases do efeito estufa, monocultura de soja para ração, uso
excessivo de água e queimadas. Contradições de um sistema alimentar e de um
modo de produção que é discutido no livro Complexidades da Carne, organizado
por Aline Martins de Carvalho (Sustentarea – FSP), Michelle Cristine Medeiros
Jacob (Labnutrir – Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e Sávio
Marcelino Gomes (Labnutrir – Universidade Federal da Paraíba).
“A
obra reúne diversas perspectivas interdisciplinares sobre a cadeia produtiva e
o consumo de carne”, explica Aline. Segundo aponta a pesquisadora, o “livro
aborda desde os impactos ambientais e de saúde pública até as dimensões
econômicas, sociais e culturais do consumo de carne, especialmente no Brasil”.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, a professora defende que é possível seguir uma dieta vegetariana, sem que
isso impacte nos índices nutricionais, pois a ingestão de proteína animal está
associada à exploração predatória e a comorbidades. “O consumo de carne está
ligado à concentração de terras e à monocultura, que afetam as populações
rurais, especialmente povos tradicionais e agricultores familiares […]e à
violência no campo”, pontua. “Há, ainda, o impacto sobre a saúde […]
relacionado a doenças crônicas, como diabetes, doenças cardiovasculares e
câncer”, complementa.
Aline
Martins de Carvalho é graduada em Nutrição, mestre e doutora em Nutrição em
Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Realizou estágios de pesquisa junto ao
Department of Nutrition da Harvard School of Public Health e Department of
Nutritional Sciences da University of Michigan. Atualmente
é professora doutora junto ao Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde
Pública – FSP da USP, participa do Grupo de Estudos Epidemiológicos e Inovação
em Alimentação e Saúde (GEIAS) da FSP/USP e do Grupo de Estudos em Saúde
Planetária do IEA/USP, e é coordenadora do Núcleo de Extensão da USP
Sustentarea.
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Confira a entrevista.
• Para
contextualizar, pensando em um arco histórico de larga escala, como o consumo
de carne saiu da posição de “herói” no processo de evolução da nossa espécie
para a posição de um dos principais vilões da sobrevivência da nossa espécie?
Aline
Martins de Carvalho – O consumo de carne teve um papel importante na evolução
da nossa espécie, fornecendo nutrientes essenciais como proteínas de alta
qualidade e gorduras para o desenvolvimento cerebral. Entretanto, o cenário
mudou muito nos últimos séculos. Hoje, o consumo de carne é elevado por
diversas partes do mundo, incluindo o Brasil e está associado a impactos
negativos significativos, como a degradação ambiental, emissões de gases de
efeito estufa, desmatamento, perda de biodiversidade e problemas de saúde
relacionados ao consumo excessivo (como doenças do coração, diabetes e câncer).
Não diria herói ou vilão, pois a alimentação é bem mais complexa e não pode ser
restrita a um alimento para falar em desfechos.
• A
senhora é uma das organizadoras do livro Complexidades da Carne (Faculdade de
Saúde Pública da USP, 2024). Do que se trata a obra?
Aline
Martins de Carvalho – Complexidades da Carne é uma obra que reúne diversas
perspectivas interdisciplinares sobre a cadeia produtiva e o consumo de carne.
O livro aborda desde os impactos ambientais e de saúde pública até as dimensões
econômicas, sociais e culturais do consumo de carne, especialmente no Brasil.
Nosso
objetivo é proporcionar uma análise ampla e crítica sobre o papel da carne em
nossa sociedade e levantar reflexões sobre práticas mais sustentáveis e
saudáveis. Ele foi escrito em parceria com diversos pesquisadores e organizado
por professores da USP, UFPB e UFRN.
• Considerando
uma alimentação adequada à nossa necessidade de nutrientes, qual o papel da
alimentação com carne em nossa saúde? Ela é totalmente substituível por outros
alimentos?
Aline
Martins de Carvalho – A carne é uma fonte importante de proteínas de alta
qualidade, vitaminas, especialmente B12, e minerais como ferro e zinco, que são
essenciais para o bom funcionamento do organismo. No entanto, uma dieta
saudável e equilibrada pode ser construída sem carne, desde que haja uma
combinação adequada de outros alimentos que fornecem esses nutrientes e que
seja desejo do indivíduo.
Entretanto,
em termos de saúde pública, uma dieta com menos carne já pode estar associada a
menor impacto ambiental e oferecer esses nutrientes-chave para nossa saúde, com
risco menor para doenças crônicas.
• Como a
carne impacta o meio ambiente atualmente?
Aline
Martins de Carvalho – A produção de alimentos e o desmatamento no Brasil são
responsáveis por 70% das emissões de gases de efeito estufa do país. Dentro do
setor agropecuário, a produção de carne é uma das principais responsáveis pela
emissão de gases de efeito estufa, sendo o metano gerado pelos ruminantes um
dos mais preocupantes.
Além
disso, a pecuária está associada ao desmatamento de grandes áreas para
pastagens e cultivo de ração, como a soja, o que leva à perda de
biodiversidade. O consumo intensivo de água e a contaminação de solos e rios
por dejetos animais também são questões ambientais críticas.
• Não é
barato consumir carne no Brasil. Como a questão está associada à desigualdade?
Até que ponto ela agrava ainda mais o abismo social?
Aline
Martins de Carvalho – O preço da carne é um importante determinante de consumo,
mas a cultura e hábito alimentar também influenciam nesse processo. Verificamos
que grande parte da população consome carne regularmente.
Entretanto,
devido à grande desigualdade no país, as famílias trocam os tipos de carne, os
cortes e reveem as frequências e quantidades de carne, reforçando esse abismo
social.
• Além da
desigualdade, que outros problemas sociais estão associados ao consumo de
carne?
Aline
Martins de Carvalho – O consumo de carne está ligado à concentração de terras e
à monocultura, que afetam às populações rurais, especialmente povos
tradicionais e agricultores familiares. A expansão da pecuária em larga escala
também está associada à exploração de trabalhadores em condições precárias e à
violência no campo, questões que refletem a desigualdade estrutural do Brasil.
Há, ainda, o impacto sobre a saúde, já que o consumo excessivo de carne,
especialmente as vermelhas e processadas, está relacionado a doenças crônicas,
como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.
• O
problema é o consumo de carne ou a monocultura pecuarista de larga escala?
Aline
Martins de Carvalho – Quando falamos em termos ambientais, o problema está mais
ligado ao modelo de produção da pecuária, que é insustentável do ponto de vista
ambiental e social. Quando falamos de saúde, o consumo elevado é responsável
pelo aumento de risco de doenças crônicas. É preciso repensar o sistema
produtivo e a quantidade de carne que comemos.
• O
debate em torno da redução do consumo de carne no Brasil não é novo. Não é
novidade também que as soluções para este problema amplo e complexo costumam
ser na perspectiva de que é responsabilidade da população diminuir o consumo.
Contudo, o mercado externo tem grande participação na compra desse tipo de
alimento e a redução interna nem sequer afeta o setor. Como sair desse ciclo de
culpabilização das pessoas e enfrentar essa questão de maneira macropolítica?
Aline
Martins de Carvalho – Ressalta-se que cerca de 70% da produção de carne no
Brasil fica no mercado interno, mostrando a importância da população brasileira
no escoamento desses produtos. Entretanto, a responsabilidade não pode ser
atribuída apenas aos consumidores. A mudança precisa acontecer em nível
político e econômico, com incentivos para práticas agrícolas mais sustentáveis,
mudanças na cadeia produtiva e na regulação do mercado externo.
• A
senhora poderia [falar] do projeto “Sustentarea”? Quais são seus objetivos e
qual público busca impactar?
Aline
Martins de Carvalho – O Sustentarea é um Núcleo de Pesquisa e Extensão da USP
que busca promover a sustentabilidade alimentar e a saúde pública através da
conscientização e educação sobre os impactos da alimentação no meio ambiente e
na saúde. Nosso objetivo é criar uma conexão mais clara entre o que comemos,
como isso afeta o planeta e nossa saúde.
Atuamos
principalmente com a produção de materiais educativos, como ebooks, podcasts e
postagens semanais, além de cursos voltados para gestores e profissionais da
saúde, e pesquisas sobre sistemas alimentares sustentáveis e a sindemia global
de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas no Brasil. Nosso público-alvo
inclui tanto a população em geral interessada no tema quanto profissionais da
área, assim como e gestores públicos.
Fonte:
Entrevista com Aline Martins de Carvalho, para IHU
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