sábado, 5 de outubro de 2024

Luiz Marques: A direita e os conflitos sociais

A direita elide os conflitos sociais, reproduz a mistificação que acompanha a história do Brasil a despeito dos fatos. Para a ex-secretária de Cultura da metrópole paulistana (1989-1992): “O mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente”. Lê-se no ensaio sobre “O mito da não violência brasileira” (Escritos de Marilena Chaui,vol. 5), organizado por Ericka Marie Itokazu e Luciana Chaui-Berlinck. Eis o assoalho mítico dos que não olham para cima (a mão pesada das “elites” sobre os subalternos) e nem para baixo (o suplício das “classes perigosas” nas comunidades da cidade não oficial). A direita rima com a pós-verdade.

A democracia é entendida como uma entidade que espelha a ditadura branda, ao impor o silêncio e calar o barulho dos protestos “para acordar o poder” que, de outro modo, não escuta as necessidades populares. O modelo é replicado em clubes, cuja entrada acontece por indicação de um sócio para assegurar a coesão de valores ungidos por Deus e um Petit Comité. Os conflitos são classificados de ameaça à paz interna da bolha paralela. A fabulação da harmonia sufoca dissidências para manter o sono tranquilo dos que detêm as rédeas do comando, na hierarquia socioeconômica da sociedade.

Não há lugar para a discórdia em uma totalidade fechada, alimentada pelo medo dos membros. O sentimento é potencializado, em cada oportunidade. “Fuja dos hereges”; “Não vote na esquerda”. O apagamento dos conflitos é o salvo conduto para uma ordem autoritária. A inibição dialógica em tais ambientes tóxicos gera as “políticas do sofrimento cotidiano”, que lotam os consultórios Psi. Os chefes são postos fora do circuito da legislação que rege o conjunto, por óbvio. O rebanho carece de pastores, formados nos think tanks do Consenso de Washington. Há vagas para palhaços genocidas.

O autoritarismo demoniza a oposição e atribui-lhe os defeitos do “diabo” que destrói os vínculos comunais, rompe a cadeia de mando-obediência e oferece uma maçã para Eva. As teorias políticas modernas traduzem o medo na expressão “homem lobo do homem”. O medo, que atravessa a Idade Média sob o invólucro teológico-político, ganha agora contorno sociopolítico ao se concentrar nas alteridades. Antes da difusão atual dos evangélicos carismáticos da Teologia do domínio, o velho catolicismo conservador já tinha seus fantasmas de estimação para incutir o temor no psiquismo. O status quo se vale da religião para estender as redes culturais e refrear o entusiasmo transformador.

Cabe ao direito dar garantia jurídica, social e política aos indivíduos contra o medo internalizado do poder. Deixar a dependência da sorte e/ou da divindade permite usufruir os direitos naturais e civis. É o significado da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, que prega direitos individuais e coletivos na condição de universais. “Os direitos humanos desembocam na concepção jurídico-constitucional da política, o padrão para avaliar os regimes políticos”, sublinha a filósofa uspiana no ensaio intitulado “Direitos Humanos, medo e violência” (obra citada). A luta por direitos então tem a dimensão tatuada no corpo das leis. É errado achar que as práticas extra institucionais dispensam a inscrição na institucionalidade. O caráter utópico das constituições emula os lutadores.

Em regra, “a lei se apresenta como a visibilidade sociopolítica da justiça”. Ao contrário, o medo denuncia a desigualdade, a injustiça, a ilegalidade; e legitima o direito de resistência à tirania para restaurar a igualdade e a liberdade que são a substância, por excelência, do exercício de cidadania. Quando a sociedade não entrega no plano concreto a equidade formal que promete, com pompa e circunstância, a resiliência é um dever. Hoje a questão dos direitos é o centro da ação política. É compreensível que Karl Marx seja tido o principal inimigo do capitalismo. Pudera. Mostra que na moldura de classes sociais, poucos têm acesso aos direitos; a maioria sobrevive alijada dos mesmos.

•                                         Marketing versus verdade

O ocultamento dos conflitos prospecta a indivisão irreal; troca o otimismo republicano para atingir as metas políticas igualitária e libertária pela dissonância cognitiva, a partir da recusa teimosa ao discurso argumentativo – a lição socrática para aferir a verdade. Se no século XIX o medo reage à presença do proletariado; no século XXI, provém da expansão do neofascismo em países ocidentais. Celebrada como “fim da história”, a superestrutura do Estado de direito democrático não contempla mais a dinâmica da infraestrutura construída pela economia do livre mercado. Esta, pressupõe um Estado de exceção. O ódio é seu combustível. O ressentimento é seu motor. Dane-se a civilização.

Para esconder a conflitividade é preciso abstrair as classes sociais, e reforçar a ilusão de que só o que existe são os indivíduos, livres e iguais, que interagem com a mediação feita por contratos. Eis a grande fake news para a assunção do capital, desde a transição do sistema feudal para o sistema capitalista. A propriedade como direito abarca, tanto a propriedade individual da moradia, quanto a propriedade dos meios de produção para explorar o tempo excedente de trabalho dos operários. Ocorre que o segundo direito impede a realização do primeiro, como sinaliza o programa “Minha Casa, Minha Vida”. A disparidade nas valências está registrada pelas investigações marxianas.

Dito diferente, não há linearidade no conceito de direitos. Seu conteúdo é objeto de uma disputa na luta de classes para superar a eloquência da retórica, reiterada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. A exigência de concretude para além de uma afirmação genérica de princípios é uma demonstração de que, inclusive o direito ao trabalho ressoa vazio e falso. A “sociedade do conhecimento” insere a ciência como força produtiva da acumulação. As tecnologias de automação e informação fazem obsoletos os saberes e os trabalhadores, num estalar de dedos. Tristes tempos.

A razão não liberta a humanidade dos preconceitos e das superstições. A comunicação, com recurso da inteligência artificial, transforma as mídias em uma engrenagem de dissimulação e intimidação. A despolitização da sociedade condiciona a escolha entre os “políticos profissionais” e os “técnicos competentes”. Como se não houvesse formas alternativas de soberania, fora da representação e da tecnocracia. No brete, o medo se generaliza. A participação social dos comuns ilustra a terceira via.

O “direito a ter direitos” que, para Claude Lefort, condensa a democracia não encontra um lugar confortável na presumível normalidade. Prevalece o “capitalismo de vigilância”, a “infocracia”; a alienação; os privilégios da magistratura que debocham do povo; a precarização das atividades laborais que agrava as iniquidades interclasses; o hiperindividualismo que surge em contraposição à cooperação e à solidariedade. Os direitos são uma double edged sword, uma espada de dois gumes. De um lado, transcendem a limitação da ordem estabelecida e, de outro, situam-se aquém do que os cidadãos gostariam de ver materializado ao alcance de todos; oscilam entre o ser e o dever-ser.

Candidatos de direita à reeleição para prefeito passam pano na repartição desigual de equipamentos públicos entre os bairros, na negligência com a educação, a saúde, creches, mobilidade urbana. Não acusam o conflito de interesses, mas a escassez de receitas. Em Porto Alegre, as megaconstrutoras não reclamam. O negacionismo mascara o desleixo municipal com as comportas do Muro da Mauá, os diques e casas de bombas nas enchentes. O acinte é acobertado na imprensa. A financeirização da cidade pede passagem para continuar a saga das privatizações.

O marketing do medo é estimulado pelo aceno “à volta da desunião e da desarmonia”, em alusão ao PT. Contudo, a energia que criou o Orçamento Participativo (OP) e recepcionou o Fórum Social Mundial (FSM) está ativa. É possível resgatar os espaços públicos, a sociabilidade, a diversidade, o pluralismo: o rosário da democracia. Como na canção, “É preciso ter gana sempre / Maria, Maria mistura a dor e a alegria”. Para vencer.

 

•                                         Diplomas para os que resistiram. Por Walnice Nogueira Galvão

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo acaba de atribuir diplomas póstumos a todos os seus alunos que foram assassinados pela ditadura. E foram muitos, 15 no total, três deles meus alunos, dando a essa unidade de ensino o sinistro recorde dentre todas as do país.

Faz cerca de meio século – mas nem por isso empana-se o feito daqueles jovens cheios de desprendimento, que doaram suas vidas à luta pela liberdade.

A cerimônia contou com uma mesa composta pelas mais altas autoridades da Universidade, na figura de reitor e vice-reitora, além do diretor da unidade. Não faltaram as presidentes da UNE (União Nacional dos Estudantes), da UEE (União Estadual dos Estudantes) e do DCE-USP (Diretório Central dos Estudantes da USP).

Trazer os estudantes para a cerimonia foi uma ótima ideia. Eles vieram organizados e comentavam a cerimônia escandindo slogans rimados, dando vida a uma tão triste ocasião, trazendo para o evento a vibração de um ato público. A organização do evento foi impecável: investigou e achou familiares ou outras relações de todos os 15.

Vêm de longe os movimentos sociais que se encarregaram, com pertinácia e brio, de manter viva a chama da denúncia do crime cometido contra esses jovens. Em geral são os familiares que portam a tocha da justiça. Criaram-se, ao longo do tempo, comitês reivindicatórios que processaram o Estado e quem necessário fosse, perdendo ou ganhando, mas a cada passo avançando na luta. Faz meio século, são eventos do início da década de 1970. Aos poucos, o Estado foi tendendo a reconhecer sua responsabilidade nos crimes – mas ainda é grande o número de “desaparecidos”, quando não acusados de suicídio ou de fuga com acidente.

A USP criou sua própria Comissão da Verdade para apurar os fatos, constituída por historiadores e juristas. O resultado foi a monumental edição de um Relatório em 10 volumes, disponível na internet, no qual cabe à FFLCH um volume inteiro, o de número 7. Por ali se vê como foi cruel a repressão que se abateu sobre a escola.

Entre os precursores figurou o empenho extraordinário da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, cujo presidente, o deputado Adriano Diogo, coordenou os trabalhos e deu-lhes visibilidade, ao realizar no auditório da Assembleia Legislativa as sessões que celebraram cada morto. A solenidade, que punha na mesa diretora dos trabalhos os familiares do morto, celebrava sua vida com dedicação. Assisti a duas delas, a de Norberto Nehring e a de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, e posso atestar sua alta dignidade.

No caso da FFLCH, houve alguma hesitação, gerando controvérsias logo esclarecidas, quanto à inclusão do nome de minha amiga Heleny Telles Guariba, aluna de Filosofia. Heleny Guariba, após voltar de um estágio no Théâtre de la cité, de Roger Planchon, na França, estava trabalhando em Santo André, no teatro da Prefeitura, encenando uma peça de Molière, Jorge Dandin. A montagem ganhou todos os prêmios paulistas daquele ano. Heleny Guariba ainda dava aulas e fazia oficinas no seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, bem como na Aliança Francesa, disseminando os ensinamentos de teatro brechtiano que tinha aprendido na França.

Hoje seu nome ilustra várias instituições, como o Auditório Heleny Guariba, da Prefeitura de Santo André, em reconhecimento de sua dedicação ao desenvolvimento do teatro local. Na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, fica o Studio Heleny Guariba e em Diadema o Centro Cultural leva seu nome.

Pois bem: seu nome foi incluído na lista dos alunos assassinados, até que se descobriu que Heleny Guariba já tinha se formado. Seu nome foi então retirado da lista, mas muito se discutiu a razão disso. Agora, ela entrará na lista não dos alunos, mas dos ex-alunos assassinados, aqueles que já tinham se formado quando foram alcançados pelas garras da repressão.

São vários afora Heleny, inclusive meus amigos e companheiros de geração Iara Iavelberg, Vlado Herzog e Norberto Nehring. Este último era da Química e por isso talvez entre em outra lista. Estou solicitando para todos, já que também tiveram suas carreiras interrompidas, o título de doutor honoris causa.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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