Luiz
Marques: A direita e os conflitos sociais
A
direita elide os conflitos sociais, reproduz a mistificação que acompanha a
história do Brasil a despeito dos fatos. Para a ex-secretária de Cultura da
metrópole paulistana (1989-1992): “O mito substitui a realidade pela crença na
realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente”. Lê-se no
ensaio sobre “O mito da não violência brasileira” (Escritos de Marilena
Chaui,vol. 5), organizado por Ericka Marie Itokazu e Luciana Chaui-Berlinck.
Eis o assoalho mítico dos que não olham para cima (a mão pesada das “elites”
sobre os subalternos) e nem para baixo (o suplício das “classes perigosas” nas
comunidades da cidade não oficial). A direita rima com a pós-verdade.
A
democracia é entendida como uma entidade que espelha a ditadura branda, ao
impor o silêncio e calar o barulho dos protestos “para acordar o poder” que, de
outro modo, não escuta as necessidades populares. O modelo é replicado em
clubes, cuja entrada acontece por indicação de um sócio para assegurar a coesão
de valores ungidos por Deus e um Petit Comité. Os conflitos são classificados
de ameaça à paz interna da bolha paralela. A fabulação da harmonia sufoca
dissidências para manter o sono tranquilo dos que detêm as rédeas do comando,
na hierarquia socioeconômica da sociedade.
Não
há lugar para a discórdia em uma totalidade fechada, alimentada pelo medo dos
membros. O sentimento é potencializado, em cada oportunidade. “Fuja dos
hereges”; “Não vote na esquerda”. O apagamento dos conflitos é o salvo conduto
para uma ordem autoritária. A inibição dialógica em tais ambientes tóxicos gera
as “políticas do sofrimento cotidiano”, que lotam os consultórios Psi. Os
chefes são postos fora do circuito da legislação que rege o conjunto, por
óbvio. O rebanho carece de pastores, formados nos think tanks do Consenso de
Washington. Há vagas para palhaços genocidas.
O
autoritarismo demoniza a oposição e atribui-lhe os defeitos do “diabo” que
destrói os vínculos comunais, rompe a cadeia de mando-obediência e oferece uma
maçã para Eva. As teorias políticas modernas traduzem o medo na expressão
“homem lobo do homem”. O medo, que atravessa a Idade Média sob o invólucro
teológico-político, ganha agora contorno sociopolítico ao se concentrar nas
alteridades. Antes da difusão atual dos evangélicos carismáticos da Teologia do
domínio, o velho catolicismo conservador já tinha seus fantasmas de estimação
para incutir o temor no psiquismo. O status quo se vale da religião para
estender as redes culturais e refrear o entusiasmo transformador.
Cabe
ao direito dar garantia jurídica, social e política aos indivíduos contra o
medo internalizado do poder. Deixar a dependência da sorte e/ou da divindade
permite usufruir os direitos naturais e civis. É o significado da “Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, que prega direitos individuais e
coletivos na condição de universais. “Os direitos humanos desembocam na
concepção jurídico-constitucional da política, o padrão para avaliar os regimes
políticos”, sublinha a filósofa uspiana no ensaio intitulado “Direitos Humanos,
medo e violência” (obra citada). A luta por direitos então tem a dimensão
tatuada no corpo das leis. É errado achar que as práticas extra institucionais
dispensam a inscrição na institucionalidade. O caráter utópico das
constituições emula os lutadores.
Em
regra, “a lei se apresenta como a visibilidade sociopolítica da justiça”. Ao
contrário, o medo denuncia a desigualdade, a injustiça, a ilegalidade; e
legitima o direito de resistência à tirania para restaurar a igualdade e a
liberdade que são a substância, por excelência, do exercício de cidadania.
Quando a sociedade não entrega no plano concreto a equidade formal que promete,
com pompa e circunstância, a resiliência é um dever. Hoje a questão dos
direitos é o centro da ação política. É compreensível que Karl Marx seja tido o
principal inimigo do capitalismo. Pudera. Mostra que na moldura de classes
sociais, poucos têm acesso aos direitos; a maioria sobrevive alijada dos
mesmos.
• Marketing
versus verdade
O
ocultamento dos conflitos prospecta a indivisão irreal; troca o otimismo
republicano para atingir as metas políticas igualitária e libertária pela
dissonância cognitiva, a partir da recusa teimosa ao discurso argumentativo – a
lição socrática para aferir a verdade. Se no século XIX o medo reage à presença
do proletariado; no século XXI, provém da expansão do neofascismo em países
ocidentais. Celebrada como “fim da história”, a superestrutura do Estado de
direito democrático não contempla mais a dinâmica da infraestrutura construída
pela economia do livre mercado. Esta, pressupõe um Estado de exceção. O ódio é
seu combustível. O ressentimento é seu motor. Dane-se a civilização.
Para
esconder a conflitividade é preciso abstrair as classes sociais, e reforçar a
ilusão de que só o que existe são os indivíduos, livres e iguais, que interagem
com a mediação feita por contratos. Eis a grande fake news para a assunção do
capital, desde a transição do sistema feudal para o sistema capitalista. A
propriedade como direito abarca, tanto a propriedade individual da moradia,
quanto a propriedade dos meios de produção para explorar o tempo excedente de
trabalho dos operários. Ocorre que o segundo direito impede a realização do
primeiro, como sinaliza o programa “Minha Casa, Minha Vida”. A disparidade nas
valências está registrada pelas investigações marxianas.
Dito
diferente, não há linearidade no conceito de direitos. Seu conteúdo é objeto de
uma disputa na luta de classes para superar a eloquência da retórica, reiterada
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. A exigência de
concretude para além de uma afirmação genérica de princípios é uma demonstração
de que, inclusive o direito ao trabalho ressoa vazio e falso. A “sociedade do
conhecimento” insere a ciência como força produtiva da acumulação. As
tecnologias de automação e informação fazem obsoletos os saberes e os
trabalhadores, num estalar de dedos. Tristes tempos.
A
razão não liberta a humanidade dos preconceitos e das superstições. A
comunicação, com recurso da inteligência artificial, transforma as mídias em
uma engrenagem de dissimulação e intimidação. A despolitização da sociedade
condiciona a escolha entre os “políticos profissionais” e os “técnicos
competentes”. Como se não houvesse formas alternativas de soberania, fora da
representação e da tecnocracia. No brete, o medo se generaliza. A participação
social dos comuns ilustra a terceira via.
O
“direito a ter direitos” que, para Claude Lefort, condensa a democracia não
encontra um lugar confortável na presumível normalidade. Prevalece o “capitalismo
de vigilância”, a “infocracia”; a alienação; os privilégios da magistratura que
debocham do povo; a precarização das atividades laborais que agrava as
iniquidades interclasses; o hiperindividualismo que surge em contraposição à
cooperação e à solidariedade. Os direitos são uma double edged sword, uma
espada de dois gumes. De um lado, transcendem a limitação da ordem estabelecida
e, de outro, situam-se aquém do que os cidadãos gostariam de ver materializado
ao alcance de todos; oscilam entre o ser e o dever-ser.
Candidatos
de direita à reeleição para prefeito passam pano na repartição desigual de
equipamentos públicos entre os bairros, na negligência com a educação, a saúde,
creches, mobilidade urbana. Não acusam o conflito de interesses, mas a escassez
de receitas. Em Porto Alegre, as megaconstrutoras não reclamam. O negacionismo
mascara o desleixo municipal com as comportas do Muro da Mauá, os diques e
casas de bombas nas enchentes. O acinte é acobertado na imprensa. A
financeirização da cidade pede passagem para continuar a saga das
privatizações.
O
marketing do medo é estimulado pelo aceno “à volta da desunião e da
desarmonia”, em alusão ao PT. Contudo, a energia que criou o Orçamento
Participativo (OP) e recepcionou o Fórum Social Mundial (FSM) está ativa. É
possível resgatar os espaços públicos, a sociabilidade, a diversidade, o
pluralismo: o rosário da democracia. Como na canção, “É preciso ter gana sempre
/ Maria, Maria mistura a dor e a alegria”. Para vencer.
• Diplomas
para os que resistiram. Por Walnice Nogueira Galvão
A
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
acaba de atribuir diplomas póstumos a todos os seus alunos que foram
assassinados pela ditadura. E foram muitos, 15 no total, três deles meus
alunos, dando a essa unidade de ensino o sinistro recorde dentre todas as do
país.
Faz
cerca de meio século – mas nem por isso empana-se o feito daqueles jovens
cheios de desprendimento, que doaram suas vidas à luta pela liberdade.
A
cerimônia contou com uma mesa composta pelas mais altas autoridades da
Universidade, na figura de reitor e vice-reitora, além do diretor da unidade.
Não faltaram as presidentes da UNE (União Nacional dos Estudantes), da UEE
(União Estadual dos Estudantes) e do DCE-USP (Diretório Central dos Estudantes
da USP).
Trazer
os estudantes para a cerimonia foi uma ótima ideia. Eles vieram organizados e
comentavam a cerimônia escandindo slogans rimados, dando vida a uma tão triste
ocasião, trazendo para o evento a vibração de um ato público. A organização do
evento foi impecável: investigou e achou familiares ou outras relações de todos
os 15.
Vêm
de longe os movimentos sociais que se encarregaram, com pertinácia e brio, de
manter viva a chama da denúncia do crime cometido contra esses jovens. Em geral
são os familiares que portam a tocha da justiça. Criaram-se, ao longo do tempo,
comitês reivindicatórios que processaram o Estado e quem necessário fosse,
perdendo ou ganhando, mas a cada passo avançando na luta. Faz meio século, são
eventos do início da década de 1970. Aos poucos, o Estado foi tendendo a
reconhecer sua responsabilidade nos crimes – mas ainda é grande o número de
“desaparecidos”, quando não acusados de suicídio ou de fuga com acidente.
A
USP criou sua própria Comissão da Verdade para apurar os fatos, constituída por
historiadores e juristas. O resultado foi a monumental edição de um Relatório
em 10 volumes, disponível na internet, no qual cabe à FFLCH um volume inteiro,
o de número 7. Por ali se vê como foi cruel a repressão que se abateu sobre a
escola.
Entre
os precursores figurou o empenho extraordinário da Comissão da Verdade do
Estado de São Paulo, cujo presidente, o deputado Adriano Diogo, coordenou os
trabalhos e deu-lhes visibilidade, ao realizar no auditório da Assembleia
Legislativa as sessões que celebraram cada morto. A solenidade, que punha na
mesa diretora dos trabalhos os familiares do morto, celebrava sua vida com
dedicação. Assisti a duas delas, a de Norberto Nehring e a de Luiz Eduardo da
Rocha Merlino, e posso atestar sua alta dignidade.
No
caso da FFLCH, houve alguma hesitação, gerando controvérsias logo esclarecidas,
quanto à inclusão do nome de minha amiga Heleny Telles Guariba, aluna de
Filosofia. Heleny Guariba, após voltar de um estágio no Théâtre de la cité, de
Roger Planchon, na França, estava trabalhando em Santo André, no teatro da
Prefeitura, encenando uma peça de Molière, Jorge Dandin. A montagem ganhou
todos os prêmios paulistas daquele ano. Heleny Guariba ainda dava aulas e fazia
oficinas no seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, bem como na Aliança
Francesa, disseminando os ensinamentos de teatro brechtiano que tinha aprendido
na França.
Hoje
seu nome ilustra várias instituições, como o Auditório Heleny Guariba, da
Prefeitura de Santo André, em reconhecimento de sua dedicação ao
desenvolvimento do teatro local. Na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo,
fica o Studio Heleny Guariba e em Diadema o Centro Cultural leva seu nome.
Pois
bem: seu nome foi incluído na lista dos alunos assassinados, até que se
descobriu que Heleny Guariba já tinha se formado. Seu nome foi então retirado
da lista, mas muito se discutiu a razão disso. Agora, ela entrará na lista não
dos alunos, mas dos ex-alunos assassinados, aqueles que já tinham se formado
quando foram alcançados pelas garras da repressão.
São
vários afora Heleny, inclusive meus amigos e companheiros de geração Iara
Iavelberg, Vlado Herzog e Norberto Nehring. Este último era da Química e por
isso talvez entre em outra lista. Estou solicitando para todos, já que também
tiveram suas carreiras interrompidas, o título de doutor honoris causa.
Fonte:
A Terra é Redonda
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