O vírus
transmitido por mosquitos que se espalha pelos EUA e pela Europa sem cura ou
vacina
Anthony
Fauci teve uma notável carreira como um dos principais pesquisadores do vírus
HIV em todo o mundo. Mais recentemente, ele foi o rosto do programa
norte-americano de combate à pandemia de covid-19.
Mas
o vírus que o hospitalizou recentemente é outro, muito diferente.
Em
agosto, Fauci, com 83 anos de idade, começou a sentir sintomas de febre,
calafrios e fadiga. Ele contraiu a febre do Nilo Ocidental, causada por um
vírus transmitido por mosquitos.
O
patógeno foi descoberto em Uganda, nos anos 1930. Mas Fauci não contraiu o
vírus no leste africano.
Na
verdade, um mosquito infectado supostamente o picou no quintal de casa, nos
Estados Unidos — e estes incidentes estão se tornando cada vez mais comuns.
Os
Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em
inglês) declararam à BBC que 2 mil americanos contraem a febre do Nilo
Ocidental todos os anos. São 1,2 mil doenças neurológicas potencialmente fatais
e mais de 120 mortes, anualmente.
"Todos
podem estar em risco", afirma a professora de pediatria Kristy Murray, da
Universidade Emory em Atlanta, no Estado americano da Georgia. Ela estuda o
vírus do Nilo Ocidental há quase duas décadas.
"Uma
simples picada de mosquito é tudo o que é preciso para ser infectado",
explica ela. "E, embora a forma grave da doença atinja principalmente os
indivíduos mais idosos, os jovens também podem ficar doentes."
No
final de agosto de 1999, um médico infectologista do distrito de Queens, em
Nova York (EUA), relatou ao Departamento de Saúde e Higiene Mental da cidade
dois casos de encefalite viral, ou inflamação do cérebro. E casos similares
foram identificados em hospitais vizinhos, dando início a uma investigação
urgente.
Estimativas
concluíram que, ao todo, esta misteriosa epidemia infectou cerca de 8,2 mil
pessoas em toda a cidade. Foi o primeiro surto conhecido da febre no hemisfério
ocidental.
Ninguém
sabe exatamente como o vírus foi levado de partes da África, Oriente Médio, sul
da Europa e da Rússia, onde circula há décadas, para os Estados Unidos. Mas
pesquisas já demonstraram que as aves são os principais vetores do vírus.
Os
mosquitos contraem o vírus quando se alimentam de aves infectadas. Depois, eles
o transmitem para os seres humanos.
Desde
aquele surto inicial em 1999, houve mais de 59 mil casos de febre do Nilo
Ocidental nos Estados Unidos e outras 2,9 mil mortes. Mas algumas estimativas
indicam que o número real de infecções é de mais de três milhões.
Existem
agora preocupações cada vez maiores de que os surtos da febre nos Estados
Unidos e em todo o mundo irão se tornar mais frequentes, devido às mudanças
climáticas.
Estudos
demonstraram que as temperaturas mais altas podem acelerar o desenvolvimento do
mosquito, o índice de picadas e a incubação do vírus no inseto.
Na
Espanha, o vírus é endêmico — e um surto sem precedentes em 2020 foi seguido
por um período prolongado de aumento da circulação.
Este
episódio gerou preocupações maiores. As infecções eram predominantemente
assintomáticas, com apenas uma a cada cinco pessoas sentindo sintomas suaves.
Mas os casos graves podem resultar em deficiências para toda a vida.
Em
cerca de uma a cada 150 pessoas, o vírus pode invadir o cérebro e o sistema
nervoso central, causando inflamações que podem custar a vida do paciente — e,
em muitos casos, lesões cerebrais.
E
pessoas com algum tipo de imunocomprometimento, com mais de 60 anos de idade ou
portadores de diabetes ou hipertensão são particularmente vulneráveis.
"Com
a hipertensão, achamos que o aumento da pressão no cérebro permite que o vírus
cruze a barreira hematoencefálica com mais facilidade", explica Murray.
Depois
de acompanhar pacientes que sofrem de casos graves da febre do Nilo Ocidental
por muitos anos, Murray afirma que a inflamação resultante pode causar grave
contração ou atrofia cerebral. Nas varreduras, surgem frequentemente padrões
similares às pessoas que sofreram lesões traumáticas do cérebro.
"Entre
os pacientes com doença grave, cerca de 10% morrerão da infecção aguda e cerca
de 70-80% irão sofrer consequências neurológicas de longo prazo",
prossegue Murray.
"Para
os sobreviventes, a doença não necessariamente melhora; muitas vezes, ela fica
pior. As pessoas relatam depressão, mudanças de personalidade, este tipo de
coisas".
Mas,
apesar destes riscos inerentes, atualmente não existe vacina e nem mesmo
tratamento específico que possa ajudar pessoas infectadas.
"Ela
realmente se tornou uma doença negligenciada", afirma Murray.
"Somente
neste ano, recebi muitos contatos de pacientes recém-diagnosticados com a febre
do Nilo Ocidental, perguntando 'o que podemos fazer?' E respondo 'realmente não
há nada'. O tratamento é simplesmente de apoio e parte meu coração ter que
dizer isso a elas."
• Dificuldades
técnicas e financeiras
Quando
o assunto é a falta de medidas preventivas contra as infecções pela febre do
Nilo Ocidental, uma das maiores ironias é que, há 20 anos, já existem vacinas
seguras e de alta eficácia contra aquele vírus — mas para cavalos.
Entre
2004 e 2016, houve nove testes clínicos de possíveis vacinas para uso humano.
Duas delas foram lançadas pela farmacêutica francesa Sanofi e as restantes por
companhias de biotecnologia, instituições acadêmicas ou diversas organizações
governamentais norte-americanas.
Todas
elas são geralmente bem toleradas e induzem reação imunológica, mas nenhuma
delas foi aprovada para o teste clínico de fase 3. Esta é a barreira final e
mais importante para que uma vacina seja autorizada e envolve o teste da
eficácia do tratamento.
O
último destes testes, financiado pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças
Infecciosas dos Estados Unidos, não saiu da fase 1 — a primeira etapa,
normalmente destinada a confirmar se a intervenção é segura.
A
diretora médica da Divisão de Doenças Transmitidas por Vetores dos CDC em Fort
Collins (Colorado, Estados Unidos), Carolyn Gould, afirma que a natureza
esporádica e imprevisível dos surtos de febre do Nilo Ocidental tem
representado um grande obstáculo. O motivo é que o vírus precisa circular
naquele momento específico para poder comprovar que a vacina está realmente
funcionando.
"Alguns
testes foram lançados durante um período tranquilo, sem muitos casos",
conta Murray.
"Mas
houve um surto em 2012, quando tivemos mais de 2 mil casos somente no Texas
(EUA) e mais de 800 deles eram casos graves. Por isso, se eles tivessem
esperado alguns anos, poderiam ter todos os participantes necessários."
Em
2006, um importante estudo de viabilidade econômica das vacinas concluiu que um
programa de vacinação contra o vírus da febre do Nilo Ocidental provavelmente
não resultaria em redução dos gastos do sistema de saúde.
Gould
acredita que o enorme custo de desenvolvimento da vacina, combinado com
benefícios ou retornos financeiros incertos, do ponto de vista das companhias
farmacêuticas, tenha sido um grande obstáculo.
Mas
diversas alternativas possíveis surgiram nos últimos anos. Cientistas
recomendaram um programa de vacinação específico para pessoas com mais de 60
anos de idade, que sofrem maior risco com o vírus. Já Gould defende um programa
destinado a regiões específicas dos Estados Unidos, onde há maior incidência
dos mosquitos portadores do vírus.
Além
disso, Gould acredita que o aumento das evidências sobre os efeitos de longo
prazo das lesões neurológicas causadas pela doença poderia promover o
desenvolvimento de vacinas.
As
estimativas mais recentes indicam que o custo total dos pacientes
hospitalizados com a febre do Nilo Ocidental é de US$ 56 milhões (cerca de R$
305 milhões) e os custos de curto e longo prazo podem ultrapassar US$ 700 mil
(cerca de R$ 3,8 milhões) por paciente.
"Estudos
mais recentes demonstram que poderia ser economicamente viável desenvolver a
vacina para grupos de alto risco em locais geográficos específicos",
segundo Gould.
"Do
ponto de vista dos fabricantes, seria importante analisar o grande número de
pessoas com maior risco de consequências sérias da febre do Nilo Ocidental, ao
calcular as previsões de vendas."
Considerando
as mortes e deficiências neurológicas causadas atualmente pelo vírus, o
presidente da Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas, Paul Tambyah,
descreve a atual impossibilidade de encontrar uma solução como "falta de
imaginação".
"Todos
pensam que é preciso fazer esse teste de fase 3 em massa nos Estados Unidos, o
que é difícil para uma doença que aparece apenas por dois meses e meio do ano
de forma imprevisível, já que, em alguns anos, você tem um surto massivo e, em
outros, não", explica ele.
Tambyah
propõe um grande teste internacional, com centenas de locais de teste
diferentes — e não só nos Estados Unidos, mas em regiões da África onde o vírus
é endêmico. Seria uma forma mais eficaz de reunir as evidências necessárias.
Seriam
necessários vários milhões de dólares de financiamento para lançar esta
iniciativa. Mas ele afirma que, com a ajuda de parcerias entre os setores
público e privado, reunindo recursos de diversos governos de países afetados e
companhias farmacêuticas de pequeno e médio porte, seria possível reduzir o
risco financeiro envolvido, caso o teste não conseguisse comprovar a eficácia
da vacina.
"Existem
alguns mecanismos possíveis para fazer com que isso aconteça", afirma ele.
"É preciso ter apenas a força de vontade de fazer algo a respeito."
• A busca
de medicamentos
Da
mesma forma que as vacinas, também é preciso encontrar tratamentos mais
eficazes para as pessoas que sofrem a forma grave da febre do Nilo Ocidental.
Kristy
Murray afirma que foram desenvolvidos dois possíveis medicamentos com base em
anticorpos gerados artificialmente contra o vírus, chamados anticorpos
monoclonais. Mas eles não progrediram além dos estudos com roedores. Seus
desenvolvedores enfrentaram os mesmos obstáculos dos fabricantes de vacinas
para idealizar um teste clínico adequado.
Murray
acredita que a necessidade mais urgente é encontrar um medicamento que não só
elimine o vírus, mas que possa também ser usado para aliviar a violenta
inflamação no cérebro, que causa muitas das complicações neurológicas. Ela
suspeita que, em alguns casos, o vírus se abriga nas células nervosas do
cérebro, onde não é facilmente atacado.
"Ele
cruza a barreira hematoencefálica e se instala dentro do cérebro, onde você tem
a inflamação e as lesões", explica Murray. "O problema é que muitos
dos nossos antivirais existentes não conseguem atingir o cérebro, de forma que
não chegam aonde precisam mostrar sua eficácia."
Mas
pode haver alternativas. Paul Tambyah acredita que podemos fazer uso de muitas
lições da pandemia de covid-19.
Apesar
de toda a corrida global para desenvolver um agente antiviral contra o vírus
Sars-CoV-2, um dos tratamentos mais eficazes foi mesmo um esteroide barato
chamado dexametasona. Sua eficácia foi identificada pelo Teste de Recuperação
no Reino Unido, que examinou uma série de possíveis tratamentos.
Tambyah
tratou de inúmeros pacientes com inflamação cerebral como consultor sênior
sobre doenças infecciosas do Hospital Universitário Nacional em Singapura. A
experiência o convenceu de que encontrar o esteroide certo para reduzir a
inflamação pode, afinal, ajudar muitos pacientes a se recuperarem.
"O
vírus do Nilo Ocidental é um flavivírus e não existe antiviral aprovado no
momento para nenhum dos flavivírus, como dengue, zika ou encefalite
japonesa", afirma ele. "Acho que os esteroides provavelmente serão o
futuro."
Mas,
em última análise, é preciso ter mais dados para identificar o medicamento mais
adequado para combater o vírus do Nilo Ocidental. E Tambyah sugere que isso
pode ser feito por meio de um estudo similar ao Teste de Recuperação britânico.
"Potencialmente,
poderíamos recrutar pacientes com encefalite causada pela febre do Nilo
Ocidental e incluir diversas intervenções, alguns esteroides, além de
anticorpos monoclonais e talvez conseguíssemos uma resposta", explica ele.
"Se
houvesse a vontade de fazer algo a respeito, com financiamento suficiente dos
governos de países afetados, poderia acontecer."
Murray
e Tambyah esperam que a presença da febre do Nilo Ocidental no noticiário,
devido à doença de Anthony Fauci, possa ajudar a convencer as autoridades a
dedicar mais dinheiro a esta doença tão negligenciada.
"Este
vírus está aqui para ficar e iremos continuar a sofrer esses surtos",
destaca Murray.
"Se
alguém como Fauci, que ocupa um cargo em que as pessoas o ouvem e respeitam,
puder falar sobre o assunto, pode servir de auxílio para impulsionar mais
financiamento para estudar o vírus e permitir que os cientistas se dediquem às
vacinas e produtos terapêuticos."
"Já
faz 25 anos que a febre do Nilo Ocidental surgiu nos Estados Unidos e ainda não
temos nada."
Fonte:
BBC Future
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