sábado, 5 de outubro de 2024

Clique, aposta, ruína: o perigoso boom das bets no Brasil

Os brasileiros mais pobres estão perdendo rios de dinheiro em bets e o vício em apostas começa a ter um impacto econômico real. Poucos estão preparados para o pérfido modelo de negócios das casas de apostas digitais.

Uma febre tomou o Brasil. Segundo dados do Banco Central, os brasileiros gastam atualmente por mês cerca de R$ 20 bilhões em casas de apostas online. Em 2024, 24 milhões de brasileiros apostaram dinheiro nessas plataformas pelo menos uma vez – um quatro da população economicamente ativa. A maioria dos jogadores tem entre 20 e 30 anos.

E, principalmente: eles são pobres. De acordo com um estudo do Instituto Locomotiva, que analisa os hábitos de consumo das classes C, D e E, um em cada quatro trabalhadores de baixa renda aposta pelo menos uma vez por mês. Cerca de 86% estão endividados.

Um quarto do volume repassado para beneficiários do Bolsa Família vai parar nas contas de casas de aposta online. E fica por lá: apenas um terço dos jogadores mais pobres descontam seus ganhos e usam esse dinheiro para outros fins, segundo o Instituto Locomotiva.

Depois dos Estados Unidos e do Reino Unido, segundo a consultoria PwC, o Brasil já é o terceiro mercado de apostas online do mundo. O termo em inglês bets, para designar apostas, se popularizou no país.

Entretanto, o vício em apostas tem um impacto econômico real: apesar de taxas de crescimento sólidas, emprego elevado e aumentos salariais significativos desde 2022, as classes C e D ainda não recuperaram o poder de compra relativo que tinham antes da pandemia de covid-19, segundo a PwC. Lojas de roupas, de móveis e em geral, além de fabricantes de bens de consumo pessoal e bancos, se queixam da estagnação ou colapso no faturamento.

A onda de custos da proliferação do vício, que só agora chegou ao sistema de saúde público, só será sentida em médio prazo.

•                                         Modelo direcionado para os mais pobres

O que está acontecendo? Como pode num curto de espaço de tempo uma febre de apostas digitais, que sobrecarregou tanto a sociedade, ter se espalhado por todo o país?

A culpa é do modelo das bets, precisamente concebidas para os brasileiros pobres e voltadas a arrancar do bolso deles o máximo de dinheiro possível no mais curto espaço de tempo.

Em primeiro lugar, os brasileiros são tradicionalmente muito aficionados por apostas. O Jogo do Bicho existe desde 1892. As rifas, indo de cestas de alimentos até motos, são muito populares. Os consórcios organizados por multinacionais para a compra de carro ou imóvel também possuem elementos de jogos.

Em contraste com as alternativas de jogo tradicionais, as apostas digitais são intransparentes, intensas e espontâneas. Quase todos os brasileiros possuem smartphone e os usam diariamente por várias horas. Os algoritmos garantem que jogadores potenciais sejam atraídos para o mundo das apostas digitais. Eles não precisam esperar dias ou meses pelo resultado dos jogos. Recompensa e decepção estão apenas a um clique de distância e podem ser repetidas imediatamente. Especialistas comparam o vício de jogo com o de crack – pessoas são arrastadas rápido e brutalmente para o labirinto das apostas.

Além disso, devido aos lucros elevados do setor, as empresas estão dispostas a investir milhões em marketing. Elas contratam por muito dinheiro estrelas da música, influenciadores – até crianças influenciadoras – e patrocinam clubes de futebol e seus melhores jogadores para fazerem propagandas de seus supostos ganhos.

Deputados, senadores, governadores e até juízes do STF são cortejados por donos e operadores de bets com convites luxuosos e participações, possivelmente ilegais. Tudo isso para que as bets ganhem um ar respeitável.

•                                         Bom para o setor, ruim para o Brasil

Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), um quinto dos apostadores digitais no Brasil acredita realmente que está "investindo" e não "jogando" de maneira arriscada.

A maioria das plataformas tem sede no exterior e não está sujeita às normas brasileiras de transparência. O controle é difícil. O que torna o setor atraente para o crime organizado. As bets são a máquina perfeita para a lavagem de dinheiro.

Diante dos danos enormes, o governo quer agora tomar medidas e proibir apostas ilegais. A partir de janeiro, licenças serão emitidas para quem quiser atuar nesse mercado.

O setor está confiante de que o Brasil seguirá sendo atraente. De acordo com uma previsão da consultoria Regulus Partners, o faturamento da indústria de apostas digitais deve crescer 18% ao ano no país até 2030.

Más notícias para o Brasil.

 

¨      A casa de jogo do bicho que está entre as 'bets' autorizadas pelo governo

O Ministério da Fazenda aprovou a operação de uma plataforma online de jogo do bicho entre as 204 casas de apostas autorizadas a funcionar no Brasil até dezembro deste ano.

Uma nova lista com as bets aprovadas pelo governo federal foi divulgada nesta quinta-feira (3/10).

O tradicional jogo do bicho, criado em 1892 no Rio de Janeiro, é considerado uma contravenção penal no Brasil, embora haja um projeto de lei na Câmara que propõe legalizá-lo, juntamente com os cassinos.

Contatado no início da tarde, o Ministério da Fazenda não respondeu até a publicação desta reportagem.

No site Bicho no Pix, é possível apostar no resultado da tradicional loteria "paralela" várias vezes ao dia.

Nesta quinta-feira, por exemplo, o site realizou 11 sorteios - o primeiro às 7h20. Cada rodada paga cinco prêmios a depender dos números sorteados.

A plataforma pertence à SPE Única Bet, uma empresa registrada em 8 de agosto deste ano, em uma avenida comercial de Goiânia. Ela foi autorizada pelo Ministério da Fazenda a operar outras duas bets em território nacional, a ÚnicaBet e a ClaroBet.

Segundo o governo, empresas que não estão na lista serão proibidas de operar e terão de devolver o dinheiro aos apostadores. As plataformas precisam ficar disponíveis até o dia 10 de outubro para os consumidores sacarem seus recursos.

Entre as empresas barradas estão a Vai de Bet e a Esporte da Sorte, que patrocinam grandes clubes de futebol, como Corinthians e Bahia, e estão envolvidas em investigações do Ministério Público sobre lavagem de dinheiro.

Como é comum no setor de jogos online, a casa Bicho no Pix também aposta nas redes sociais para atrair clientes.

"Ganhe hoje até R$ 100 mil no Bicho no Pix", diz uma publicação de 28 de maio no Instagram, onde a plataforma conta com mais de 50 mil seguidores.

Pessoas com perfis influentes nas redes sociais também fazem propaganda do Bicho no Pix, como uma dupla sertaneja e um dos jogadores de sinuca mais famosos da atualidade.

A plataforma também tem um canal no Youtube, onde publica vídeos explicando como se cadastrar no site e jogar no bicho.

No jogo do bicho, cada um dos 25 animais corresponde a quatro números: do avestruz (01 a 04) à vaca (97 a 00). Há diferentes opções de apostas, e o prêmio varia com a possibilidade de vitória.

Em geral, seu animal ganha se os dois últimos números do milhar anunciado normalmente em sorteios de loterias correspondem ao número do bicho. Por exemplo: se a loteria sorteou o número 3350, o vencedor é o galo (49 a 52).

É possível também apostar no milhar (a chamada aposta "na cabeça"): escolher os quatro números e torcer para os quatro saírem no primeiro sorteio.

O Bicho no Pix informa que utiliza os números de duas loterias para definir os ganhadores das rodadas.

A primeira é a PT-Rio, também utilizada pelos bicheiros do Rio de Janeiro. A outra é Look Loterias, que funciona em um pequeno imóvel na periferia de Goiânia.

Embora a sede da SPE Única Bet seja em Goiânia, o site Bicho no Pix está registrado em Curaçao, ilha no Caribe. No site, a plataforma aponta que sua licença foi autorizada pela Gaming Board of Anjouan, em União das Comores, país da África oriental.

Segundo o site Internet Archive, o primeiro registro do Bicho no Pix na internet ocorreu em outubro do ano passado, ou seja, 9 meses antes que a criação da empresa SPE Única Bet, dona da plataforma.

Para Guilherme Klafke, professor e pesquisador na FGV Direito SP, hospedar um site de jogo do bicho pode ser considerado uma atividade ilegal.

"A lei diz que explorar o jogo do bicho ou algo similar é uma contravenção penal. Então, em tese, esse site não poderia disponibilizar esse jogo", explica.

Klafke cita um artigo da portaria do próprio Ministério da Fazenda que estipulou prazos e condições para adequação das bets.

"O artigo 4 da portaria fala que 'seguem aplicáveis todos os deveres e as respectivas penalidades previstas em decorrência do descumprimento da legislação em vigor'. Ou seja, para funcionar, elas precisam cumprir a lei", diz.

Segundo Klafke, o registro do site em outro país pode ser um argumento da empresa para explorar o jogo do bicho.

"Esse é um problema que vamos enfrentar com a regulamentação. As empresas podem ter em seu site jogos legais e ilegais. Nesse caso, por exemplo, ela pode argumentar que em Curaçao o jogo do bicho não é ilegal. E, como o site está registrado lá, não haveria problema", diz.

Porém, aponta, agora que a empresa foi autorizada pelo governo federal, "ela deve passar por fiscalização do ministério e a atividade do jogo do bicho deve ser proibida".

Já o advogado João Valença, criminalista do escritório VLV Advogados, aponta que a situação do site Bicho no Pix é "totalmente atípica e surpreendente".

"A princípio, a vinculação de uma bet ao jogo do bicho é ilegal dado que este é proibido pela lei desde a década de 1940", diz.

"Contudo, esse é mais um exemplo de uma linha tênue na regulamentação, que permite que as empresas operem dando margem a diversos crimes como lavagem de dinheiro, evasão fiscal e crime organizado”, afirma.

"A própria dúvida e a surpresa com esse tipo de vinculação de uma bet com o jogo do bicho é a prova de que o país está vivendo um momento de total insegurança jurídica", diz Valença, que vem acompanhando e escrevendo artigos sobre a regulamentação proposta pelo governo federal.

A BBC News Brasil enviou dois e-mails para a empresa SPE Única Bet, dona do site Bicho no PIX, e também ligou para um número que consta no site. Mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

<><> 'Decifrador de sonhos'

O Bicho no Pix exige que os apostadores se cadastrem no site, e diz ter mecanismos para proibir apostas de menores de 18 anos, como constantes a aleatórias verificações de idade.

"Lembrando que qualquer pessoa com uma conta no Bicho no Pix menor de 18 ou 21 anos terá seus ganhos confiscados e poderá ser denunciado às autoridades competentes, por força da lei", diz uma publicação no site.

Nas últimas semanas, o site apostou em um novo serviço: um "decifrador de sonhos. "Olá, me conte com o que você sonhou", diz.

A partir do relato, o site faz uma "avaliação" do sonho do usuário e indica um animal relacionado à história para uma possível aposta.

"Sonhar com a mulher que você ama geralmente representa seus desejos mais intensos por ela. É um sinal de que essa pessoa ocupa um importante em seus pensamentos e vida. Cachorro", respondeu o site a um relato da reportagem.

"Sonhos com seu time do seu coração vencendo podem indicar confiança e expectativas positivas em relação ao futuro", respondeu o Bicho do Pix sobre um sonho com o São Paulo Futebol Clube como campeão da Libertadores em 2025. "Eu indico o Galo", apontou o site.

 

¨      Federação de bancos defende suspender uso do Pix para apostas online

Representantes da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) se reuniram nesta quarta-feira (2) com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e defenderam suspender temporariamente o uso do Pix para pagamento de apostas online.

No fim do ano passado, o Congresso aprovou e o governo sancionou uma lei que regulamenta as apostas online no Brasil.

A regulamentação traz uma série de regras para que essas empresas possam operar no país e estipula pagamento de impostos.

Nos últimos dias, levantamentos do Banco Central e do Senado mostraram que algumas pessoas têm gastado mais dinheiro do que têm com apostas, o que suscitou uma discussão no governo sobre formas de limitar essas despesas. A conversa da Febraban com Haddad tratou desse tema.

"Nós temos defendido que os meios instantâneos de pagamento, há exemplo do PIX, mas não são só esses, os meios instantâneos de transferências possam temporariamente ficar suspensos para o pagamento de apostas", afirmou Isaac Sidney, presidente da entidade.

"Também estamos cogitando propor ao governo a criação de uma força-tarefa multigovernamental, multissetorial, para aprofundar os impactos da atividade de bets no Brasil", completou.

 

Fonte: DW Brasil/BBC News Brasil/g1

 

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