É preciso falar
de banheiros e bebedouros públicos
Uma
das provas aplicadas no Concurso Nacional Unificado para o serviço público
trouxe como tema de redação a saúde no sistema prisional nacional. O enunciado
tinha como base uma pesquisa1 realizada pelo Conselho Nacional de Justiça sobre
óbitos e adoecimentos de pessoas sob a custódia estatal. A pesquisa apresentou
também dados que sugerem um aumento no número de mortes e precarização das
condições de saúde durante a emergência sanitária de Covid-19, mesmo sendo
esses dados subnotificados. O cenário certamente relaciona-se às unidades
prisionais superlotadas e à falta de água potável em quantidade adequada e
suficiente (CNJ, 2023).
Além
da precariedade vivida pela população prisional, situação conhecida e muitas
vezes negligenciada e banalizada, a apresentação desses dados permite suscitar
um outro tema de importância pública e essencial para o saneamento básico
nacional: os serviços de saneamento nas esferas da vida além do domicílio. São
instalações em espaços que vão além das residências, como por exemplo unidades
de saúde, sistemas prisionais, escolas, locais de trabalho, prédios públicos,
espaços públicos e a intersecção entre esses lugares.
O
saneamento em espaços públicos é essencial para a manutenção das tarefas do
cotidiano, do lazer, além de atender aos trabalhadores e trabalhadoras
informais e formais que têm a rua como seu espaço de trabalho, e também as
populações mais vulneráveis socioeconomicamente, como a população em situação
de rua (Moreira et al., 2023), que já sofre com outras dificuldades, como
alimentação precária, sede, frio, preconceito e violência (Valle; Farah;
Carneiro Junior, 2020). A falta de serviços adequados nessa esfera da vida
reforça as desigualdades sociais que perpetuam vulnerabilidades já existentes,
sendo também serviços necessários para a manutenção da qualidade de vida e da
sustentabilidade das cidades (Moreira et al., 2023).
O
esforço para universalizar o abastecimento de água e saneamento (saneamento no
vocabulário dos direitos humanos é entendido como esgotamento sanitário),
embora reconhecidos como direitos humanos desde 2010, seguem a passos vagarosos
no Brasil. Dentro desses serviços básicos, os serviços de saneamento além do
domicílio apresentam demandas ainda maiores, tanto em quantidade e qualidade,
quanto em visibilidade como política a ser debatida na sociedade e nos poderes
públicos em todos os seus níveis. Apesar desse cenário de insuficiência de
serviços e direitos não reconhecidos, não há no país políticas acerca da
obrigatoriedade de banheiros e bebedouros públicos nos espaços públicos, o que
deixa a questão à mercê da sensibilidade e priorização da visão de gestores
estaduais e municipais (Moreira et al., 2023).
Uma
pesquisa realizada na capital mineira revela que, no período de 2005 a 2021,
foram propostos apenas doze projetos de lei municipais sobre a temática de
banheiros e bebedouros públicos. No entanto, esses projetos foram arquivados,
rejeitados ou vetados por distintos motivos (Moreira et al., 2021).
A
presença de instalações sanitárias e bebedouros públicos está diretamente
relacionada com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O ODS 3
busca assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar até 2030, além de
combater doenças transmitidas pela água, entre outras enfermidades. O ODS 6
busca assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento,
além de, até 2030, alcançar o acesso universal aos serviços de saneamento e
higiene adequados e acabar com a defecação a céu aberto. O ODS 11 busca
proporcionar o acesso universal a espaços públicos que sejam seguros,
inclusivos, acessíveis e verdes, com destaque para o acesso de mulheres,
crianças, idosos e pessoas com deficiência (UNICEF, 2024; Heller, 2019).
Devido
às diferentes necessidades dos usuários (e detentores de direitos), os serviços
devem ser planejados e construídos com critérios capazes de proporcionar
instalações com qualidade, segurança, em quantidade suficiente, com
acessibilidade física e financeira. A responsabilidade sobre esse planejamento
e construção é, assim como nas instalações domiciliares, do Estado. No entanto,
não há clareza quanto à obrigatoriedade dos serviços de água e saneamento além
do domicílio, nem diretrizes que incentivem ou facilitem a provisão desses
serviços.
Embora
haja ambiguidade no que se interpreta como universalização no marco legal do
saneamento – que ora menciona domicílios ocupados, ora cita toda a população –,
a Lei 11.445/07 e as alterações dadas pela lei 14.026/20 são excludentes para
grupos como população em situação de rua e trabalhadores informais da rua. Isso
porque as normas estabelecem a universalização por domicílio convencional,
relegando esses grupos como “não-pessoas” devido a processos de estigmatização.
É
inegável a urgência em prover serviços de saneamento domiciliares em qualidade
e quantidade adequadas. Porém, essa demanda não anula as necessidades
existentes desses serviços nos espaços além das residências, mas sim exacerba
as lacunas presentes no setor e reforça a responsabilização do Estado em
destinar recursos suficientes e regulares para amenizar progressivamente esses
déficits, além de criar diretrizes, normativas e meios de regulamentar esses
serviços. Os serviços de saneamento além do domicílio necessitam também de
recursos financeiros e humanos para construção, manutenção e reparos, do mesmo
modo que o atendimento domiciliar.
A
responsabilidade dos municípios de prover equipamentos urbanos e comunitários
de interesse local, dado pelo Art 2º do Estatuto das Cidades, não explicita
quais são esses serviços, ficando a cargo do governo em exercício tomar as
decisões ou implementar leis municipais para garantir a continuidade das ações
públicas. É necessária uma política de Estado para que haja perenidade dos
serviços, para que esse direito não seja interrompido conforme vontade
política. Por isso, há grande importância na formalização dos direitos humanos
à água e ao saneamento, uma vez que seu reconhecimento será de grande
importância para a luta pelos serviços para grupos deixados para trás pelas
políticas urbanas.
Assim
como outras desigualdades existentes, as condições socioeconômicas, de raça, de
idade, de gênero e de acessibilidade são fatores que influenciam em processos
excludentes já existentes. Os espaços públicos podem ser potencializadores de
desigualdades quando não se consideram as necessidades que crianças e idosos
possuem ao passarem um dia de lazer em uma praça ou espaço turístico. Um
banheiro público não acessível a pessoas com deficiência visual ou física
reforça a construção de cidades excludentes, que não consideram as pluralidades
de corpos.
A
intersecção entre as camadas de vulnerabilidade potencializa a violação dos
direitos para pessoas que já são historicamente marginalizadas. Um homem idoso
em situação de rua é mais afetado pela falta de banheiros e fontes de água
pública do que um homem jovem turista. Assim como as pessoas transexuais são
mais afetadas pela falta de banheiros adequados nas escolas ou no local de
trabalho. Mulheres com deficiência encarceradas sofrem mais na falta de
banheiros adequados nas unidades prisionais. Todas essas camadas e suas
superposições (a chamada interseccionalidade) devem ser consideradas no
planejamento e tomada de decisão sobre os serviços a serem fornecidos à
população.
Ao
fim e ao cabo, toda a população é detentora dos direitos à água e saneamento
além da moradia embora haja grupos que necessitam mais que outros e são
afetados negativamente na provisão inadequada ou na falta de serviços nas
esferas além do domicílio. No entanto, a disponibilidade do serviço por si só
não garante que os direitos sejam assegurados. É necessário que os serviços
sejam seguros, aceitos culturalmente, de qualidade, deem privacidade ao usuário
ou usuária, sejam acessíveis física e economicamente e, importante, em todas as
esferas da vida. Ademais, a partir da identificação dos grupos e locais que
mais precisam dos serviços de água e saneamento além do domicílio é patente a
necessidade de uma estratégia intersetorial que inclua, por exemplo, os setores
de saúde, educação, assistência social, planejamento urbano e saneamento.
O
texto finaliza, mas a luta pela promoção desses direitos continua, e deve ser
incessantemente fortalecida. São muitas as demandas de serviços de água e
saneamento nas esferas da vida além do domicílio, demandas essas que, muitas
das vezes, se sobrepõem a outras desigualdades já existentes, ou a ambientes já
precarizados como os do sistema prisional e como a maioria dos espaços públicos
do país. Pela lente dos Direitos Humanos, progressivamente, deve-se lutar em
ambas as frentes: pela defesa de serviços de água e saneamento domiciliares,
mas também para os além desta esfera.
Fonte:
Por Laura Magalhães Rocha e Silva e Fernanda Deister Moreira, do Ondas, no
Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário