Prefeitura
de SP fez evento para entregar termo prometendo casas que nem começaram a ser
construídas
Uma
ligação inesperada da prefeitura de São Paulo pegou a família de Bruna de
surpresa. Era uma convocação para uma reunião. A expectativa era a de que,
depois de 13 anos de espera, a entrega da esperada casa prometida pela
prefeitura estava próxima. Mas foi uma decepção.
Às
vésperas do primeiro turno das eleições municipais, a prefeitura de São Paulo
apressou a entrega de termos que prometem unidades habitacionais em
empreendimentos que nem começaram a ser construídos, convocando famílias de
baixa renda que estão na fila por moradia há anos para cerimônias marcadas de
última hora.
O
Intercept Brasil obteve acesso a áudios e vídeos de um dos eventos promovido
pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo, a Cohab, na
quarta-feira, 24 de setembro. Na data, foram entregues termos de vinculação
referentes a 661 unidades habitacionais em um empreendimento na Vila Prudente.
Nesse
documento, a prefeitura promete a famílias beneficiárias do auxílio-aluguel ou
que estejam na fila de moradia uma unidade habitacional que foi comprada pela
prefeitura como parte do programa Pode Entrar.
Removida
em 2011 de uma área em São João Clímaco, na zona sudeste de São Paulo, Bruna e
sua família tiveram a promessa de receber uma moradia no mesmo bairro. Isso
nunca aconteceu. De ano em ano, eles eram chamados apenas para uma atualização
de cadastro. Mas a ligação, na segunda-feira, 23, reacendeu a esperança.
“Ficamos
felizes. Quando ouvíamos falar de reunião, de fato era para assinar o contrato
e em seguida, já entregavam as chaves”, disse Bruna. Não foi bem assim. “O
circo estava armado”, ela descreve.
Bruna
relatou ao Intercept que o evento começou com um louvor, os presentes ouviram
elogios à gestão de Ricardo Nunes, candidato à reeleição pelo MDB, e assinaram
um termo de vinculação. O documento prometia uma unidade em um empreendimento
que fica na Vila Prudente, a oito quilômetros de distância. “Não tem linha de
ônibus que liga os bairros”, lamentou Bruna.
“A
partir do momento que você receber esse documento, você já pode passar lá onde
está sendo construído o empreendimento na Vila Prudente e, se quiser, pode
apressar o empreiteiro. ‘Viu, quando é que termina isso aí porque isso aqui é
meu, ninguém me tira. Esse apartamento que tá aí, você construa com muito
carinho porque é meu'”, disse o presidente da Cohab, João Cury Neto, em cima de
um palco.
Só
tem um detalhe muito importante que o presidente da Cohab não contou às
famílias. O empreendimento na Vila Prudente, chamado Città Vila Prudente,
sequer existe. Nós fomos até o local no dia 1º de outubro e não encontramos
empreiteiros nem mesmo um canteiro de obras. No local, há apenas um terreno
vazio.
Mesmo
assim, a prefeitura já prometeu 1.983 futuras unidades para centenas de
famílias através da assinatura de termos de vinculação – e as mandou ir lá
‘apressar o empreiteiro’.
O
termo de vinculação é um documento no qual a prefeitura promete a famílias
beneficiárias do auxílio-aluguel ou que estejam na fila de moradia uma unidade
habitacional que foi comprada pela prefeitura como parte do programa Pode
Entrar. Mas muitas das unidades estão localizadas em empreendimentos que não
tiveram os trabalhos iniciados.
Segundo
Isadora Guerreiro, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e
coordenadora do LabCidade, é “temerário” já existir uma vinculação como essa
antes do término das obras.
Empreendimentos
contemplados no programa já têm projeto e licenciamento, explicou Guerreiro,
mas seria mais responsável, na avaliação dela, aguardar que as obras avançassem
mais antes de realizar a vinculação.
“Pode
acontecer de tudo no meio desse processo. A empresa pode falir, pode ter
problemas de obra, pode ter um monte de coisa até a entrega de fato dessas unidades.
No entanto, a prefeitura já está comprando [das empreiteiras] antecipadamente”,
disse.
“Neste
momento, acaba tendo, na minha visão, um caráter eleitoral no sentido de que
essas famílias poderiam receber essas unidades quando já estivesse tudo certo,
mas isso foi antecipado justamente para entrar nos números da gestão Nunes”,
disse Guerreiro ao Intercept.
• Louvor
escolhido pela primeira-dama da cidade
Ao
som de louvores evangélicos, um com os dizeres de “essa casa é sua casa”, a
cerimônia de entrega dos termos do dia 24 foi apresentada pelo atual secretário
de Habitação de São Paulo, Milton Vieira. Deputado federal pelo Republicanos,
ele se licenciou do cargo em julho de 2024 para assumir a pasta na prefeitura.
Vieira,
que também é pastor da Igreja Universal, disse que o louvor foi escolhido “com
carinho pela primeira-dama da cidade”, segundo uma pessoa que participou da
reunião.
Entre
os dias 24 de setembro e 4 de outubro, a Cohab agendou 13 eventos de entrega de
termos e escrituras, segundo um documento da prefeitura ao qual o Intercept
teve acesso. A maioria deles ocorreu num terreno geralmente vazio na Avenida
Prestes Maia, no centro de São Paulo, que pertence à Cohab. No local, foram
armadas tendas com cadeiras e colocado um palco com uma imagem dos futuros
empreendimentos ao fundo.
Apesar
de não ser um evento de campanha, os dirigentes da Cohab e Sehab que
coordenaram as reuniões não pouparam
elogios a Nunes, segundo vídeos vistos pelo Intercept e de acordo com uma
pessoa que esteve no evento. “Ele [Nunes] é diferente, porque quem vem da
periferia é diferente, porque conhece o problema do povo e não é de ouvir falar
no rádio, na televisão, é de sentir na pele”, disse João Cury Neto, presidente
da Cohab.
“Ele
pedia ‘orem pelo nosso prefeito porque ele é o cara que trabalha por vocês’,
relatou ao Intercept uma pessoa que participou do encontro.
A
lei eleitoral não proíbe que a prefeitura realize eventos durante o período de
campanha. “O prefeito candidato à reeleição é que tem vedação de comparecer em
inaugurações, e há limitações de publicidade e contratações que a prefeitura
pode fazer”, disse a advogada eleitoralista Paula Bernardelli ao Intercept.
Segundo ela, a assinatura de termos e escrituras não se equipara a
inaugurações, por exemplo.
No
entanto, “se for comprovado o desvio de finalidade de qualquer evento ou ato da
prefeitura, com discurso eleitoreiro ou qualquer tipo de promoção de
candidatos, ainda assim pode haver punição por parte da justiça eleitoral, mas
isso demanda averiguar se efetivamente houve esse desvio”, explicou
Bernardelli.
• Programa
virou cartão de visitas de Ricardo Nunes
O
Pode Entrar é um programa de habitação que virou cartão de visitas da gestão de
Ricardo Nunes. Em um único edital, a prefeitura gastou R$ 6 bilhões para
comprar 38.870 unidades habitacionais para destinar para famílias de baixa
renda, divididas em duas faixas: até três salários mínimos e de três a seis
salários mínimos.
Segundo
Isadora Guerreiro, do LabCidade, a inovação em relação a outros programas de
habitação é que ele promoveu a compra direta de unidades habitacionais do
mercado imobiliário pela prefeitura – não necessariamente produzidas com o
objetivo de serem usadas em programas públicos.
Em
2022, dois editais do programa foram barrados pelo Tribunal de Contas do
Município durante o segundo semestre por distorções de preço no valor do metro
quadrado.
Em
maio deste ano, o programa foi novamente anulado pela Justiça após a prefeitura
modificar o valor mínimo de referência para os imóveis a cinco dias do prazo
final para entrega dos envelopes, o que elevaria o custo final de cada imóvel.
Uma
semana depois, atendendo a um recurso da administração municipal, o Tribunal de
Justiça de São Paulo derrubou a liminar e o programa foi retomado sob os mesmos
termos. Na avaliação do juiz que derrubou a liminar, a paralisação traria mais
prejuízo aos cofres públicos do que as eventuais irregularidades quanto ao
prazo do edital.
Uma
análise do LabCidade de maio de 2023 destacou a falta de transparência em
relação aos critérios utilizados pela prefeitura para selecionar famílias
beneficiárias. Também apontou que o modelo do programa, com a compra antecipada
de unidades, acabaria “representando mais uma injeção de recursos para
financiar novos desenvolvimentos imobiliários, em um cenário de já acelerada
produção imobiliária na cidade”.
Uma
das principais críticas é que, comprando unidades já prontas, a prefeitura teve
pouca margem para escolher a localização dos empreendimentos. Com isso, não
houve uma distribuição igual entre as regiões da cidade, e as famílias
beneficiárias podem acabar ficando longe do local de onde foram removidas ou de
onde vivem atualmente.
Fonte:
Por Laís Martins, em The Intercept
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