sábado, 5 de outubro de 2024

Prefeitura de SP fez evento para entregar termo prometendo casas que nem começaram a ser construídas

Uma ligação inesperada da prefeitura de São Paulo pegou a família de Bruna de surpresa. Era uma convocação para uma reunião. A expectativa era a de que, depois de 13 anos de espera, a entrega da esperada casa prometida pela prefeitura estava próxima. Mas foi uma decepção.

Às vésperas do primeiro turno das eleições municipais, a prefeitura de São Paulo apressou a entrega de termos que prometem unidades habitacionais em empreendimentos que nem começaram a ser construídos, convocando famílias de baixa renda que estão na fila por moradia há anos para cerimônias marcadas de última hora.

O Intercept Brasil obteve acesso a áudios e vídeos de um dos eventos promovido pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo, a Cohab, na quarta-feira, 24 de setembro. Na data, foram entregues termos de vinculação referentes a 661 unidades habitacionais em um empreendimento na Vila Prudente.

Nesse documento, a prefeitura promete a famílias beneficiárias do auxílio-aluguel ou que estejam na fila de moradia uma unidade habitacional que foi comprada pela prefeitura como parte do programa Pode Entrar.

Removida em 2011 de uma área em São João Clímaco, na zona sudeste de São Paulo, Bruna e sua família tiveram a promessa de receber uma moradia no mesmo bairro. Isso nunca aconteceu. De ano em ano, eles eram chamados apenas para uma atualização de cadastro. Mas a ligação, na segunda-feira, 23, reacendeu a esperança.

“Ficamos felizes. Quando ouvíamos falar de reunião, de fato era para assinar o contrato e em seguida, já entregavam as chaves”, disse Bruna. Não foi bem assim. “O circo estava armado”, ela descreve.

Bruna relatou ao Intercept que o evento começou com um louvor, os presentes ouviram elogios à gestão de Ricardo Nunes, candidato à reeleição pelo MDB, e assinaram um termo de vinculação. O documento prometia uma unidade em um empreendimento que fica na Vila Prudente, a oito quilômetros de distância. “Não tem linha de ônibus que liga os bairros”, lamentou Bruna.

“A partir do momento que você receber esse documento, você já pode passar lá onde está sendo construído o empreendimento na Vila Prudente e, se quiser, pode apressar o empreiteiro. ‘Viu, quando é que termina isso aí porque isso aqui é meu, ninguém me tira. Esse apartamento que tá aí, você construa com muito carinho porque é meu'”, disse o presidente da Cohab, João Cury Neto, em cima de um palco.

Só tem um detalhe muito importante que o presidente da Cohab não contou às famílias. O empreendimento na Vila Prudente, chamado Città Vila Prudente, sequer existe. Nós fomos até o local no dia 1º de outubro e não encontramos empreiteiros nem mesmo um canteiro de obras. No local, há apenas um terreno vazio.

Mesmo assim, a prefeitura já prometeu 1.983 futuras unidades para centenas de famílias através da assinatura de termos de vinculação – e as mandou ir lá ‘apressar o empreiteiro’.

O termo de vinculação é um documento no qual a prefeitura promete a famílias beneficiárias do auxílio-aluguel ou que estejam na fila de moradia uma unidade habitacional que foi comprada pela prefeitura como parte do programa Pode Entrar. Mas muitas das unidades estão localizadas em empreendimentos que não tiveram os trabalhos iniciados.

Segundo Isadora Guerreiro, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do LabCidade, é “temerário” já existir uma vinculação como essa antes do término das obras.

Empreendimentos contemplados no programa já têm projeto e licenciamento, explicou Guerreiro, mas seria mais responsável, na avaliação dela, aguardar que as obras avançassem mais antes de realizar a vinculação.

“Pode acontecer de tudo no meio desse processo. A empresa pode falir, pode ter problemas de obra, pode ter um monte de coisa até a entrega de fato dessas unidades. No entanto, a prefeitura já está comprando [das empreiteiras] antecipadamente”, disse.

“Neste momento, acaba tendo, na minha visão, um caráter eleitoral no sentido de que essas famílias poderiam receber essas unidades quando já estivesse tudo certo, mas isso foi antecipado justamente para entrar nos números da gestão Nunes”, disse Guerreiro ao Intercept.

•                                         Louvor escolhido pela primeira-dama da cidade

Ao som de louvores evangélicos, um com os dizeres de “essa casa é sua casa”, a cerimônia de entrega dos termos do dia 24 foi apresentada pelo atual secretário de Habitação de São Paulo, Milton Vieira. Deputado federal pelo Republicanos, ele se licenciou do cargo em julho de 2024 para assumir a pasta na prefeitura.

Vieira, que também é pastor da Igreja Universal, disse que o louvor foi escolhido “com carinho pela primeira-dama da cidade”, segundo uma pessoa que participou da reunião.

Entre os dias 24 de setembro e 4 de outubro, a Cohab agendou 13 eventos de entrega de termos e escrituras, segundo um documento da prefeitura ao qual o Intercept teve acesso. A maioria deles ocorreu num terreno geralmente vazio na Avenida Prestes Maia, no centro de São Paulo, que pertence à Cohab. No local, foram armadas tendas com cadeiras e colocado um palco com uma imagem dos futuros empreendimentos ao fundo.

Apesar de não ser um evento de campanha, os dirigentes da Cohab e Sehab que coordenaram as reuniões  não pouparam elogios a Nunes, segundo vídeos vistos pelo Intercept e de acordo com uma pessoa que esteve no evento. “Ele [Nunes] é diferente, porque quem vem da periferia é diferente, porque conhece o problema do povo e não é de ouvir falar no rádio, na televisão, é de sentir na pele”, disse João Cury Neto, presidente da Cohab.

“Ele pedia ‘orem pelo nosso prefeito porque ele é o cara que trabalha por vocês’, relatou ao Intercept uma pessoa que participou do encontro.

A lei eleitoral não proíbe que a prefeitura realize eventos durante o período de campanha. “O prefeito candidato à reeleição é que tem vedação de comparecer em inaugurações, e há limitações de publicidade e contratações que a prefeitura pode fazer”, disse a advogada eleitoralista Paula Bernardelli ao Intercept. Segundo ela, a assinatura de termos e escrituras não se equipara a inaugurações, por exemplo.

No entanto, “se for comprovado o desvio de finalidade de qualquer evento ou ato da prefeitura, com discurso eleitoreiro ou qualquer tipo de promoção de candidatos, ainda assim pode haver punição por parte da justiça eleitoral, mas isso demanda averiguar se efetivamente houve esse desvio”, explicou Bernardelli.

•                                         Programa virou cartão de visitas de Ricardo Nunes

O Pode Entrar é um programa de habitação que virou cartão de visitas da gestão de Ricardo Nunes. Em um único edital, a prefeitura gastou R$ 6 bilhões para comprar 38.870 unidades habitacionais para destinar para famílias de baixa renda, divididas em duas faixas: até três salários mínimos e de três a seis salários mínimos.

Segundo Isadora Guerreiro, do LabCidade, a inovação em relação a outros programas de habitação é que ele promoveu a compra direta de unidades habitacionais do mercado imobiliário pela prefeitura – não necessariamente produzidas com o objetivo de serem usadas em programas públicos.

Em 2022, dois editais do programa foram barrados pelo Tribunal de Contas do Município durante o segundo semestre por distorções de preço no valor do metro quadrado.

Em maio deste ano, o programa foi novamente anulado pela Justiça após a prefeitura modificar o valor mínimo de referência para os imóveis a cinco dias do prazo final para entrega dos envelopes, o que elevaria o custo final de cada imóvel.

Uma semana depois, atendendo a um recurso da administração municipal, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou a liminar e o programa foi retomado sob os mesmos termos. Na avaliação do juiz que derrubou a liminar, a paralisação traria mais prejuízo aos cofres públicos do que as eventuais irregularidades quanto ao prazo do edital.

Uma análise do LabCidade de maio de 2023 destacou a falta de transparência em relação aos critérios utilizados pela prefeitura para selecionar famílias beneficiárias. Também apontou que o modelo do programa, com a compra antecipada de unidades, acabaria “representando mais uma injeção de recursos para financiar novos desenvolvimentos imobiliários, em um cenário de já acelerada produção imobiliária na cidade”.

Uma das principais críticas é que, comprando unidades já prontas, a prefeitura teve pouca margem para escolher a localização dos empreendimentos. Com isso, não houve uma distribuição igual entre as regiões da cidade, e as famílias beneficiárias podem acabar ficando longe do local de onde foram removidas ou de onde vivem atualmente.

 

Fonte: Por Laís Martins, em The Intercept

 

Nenhum comentário: