Em Mato
Grosso, CAR vira arma para grilar terras indígenas
Cerca
de 1,7 milhão de hectares de terras indígenas de Mato Grosso estão registrados
como propriedades rurais, utilizando indevidamente o Cadastro Ambiental Rural
(CAR) para legitimar processos de grilagem. É o que aponta um relatório
produzido pela ONG Operação Amazônia Nativa (Opan) em parecia com o Instituto
Centro de Vida (ICV).
A
DW Brasil teve acesso ao documento e constatou um total de 199 cadastros
sobrepostos a 59 terras indígenas já regularizadas no estado. A terra
regularizada está na fase final de demarcação, esperando apenas a desintrusão
ou retirada de possíveis ocupantes.
"Quer
dizer que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) não
está seguindo nem mesmo os critérios dela, pois esses cadastros estão
sobrepostos a terras que já possuem registro em cartório. Nós recomendamos que
todos esses cadastros em terras regularizadas sejam desativados", disse o
indigenista Ricardo Carvalho, um dos
autores do relatório.
Se
consideradas todos as 74 terras índigenas do estado que estão em diferentes
etapas — declaradas, delimitadas, em estudo, regularizadas e homologadas — e
que somam 15 milhões de hectares, o total de cadastros sobrepostos salta para
691 — cobrindo 6,84% dessas áreas indígenas.
O
CAR é um sistema público eletrônico de abrangência nacional. Ele é compulsório
e deve ser realizado por todos os imóveis rurais. O seu propósito é congregar
as informações ambientais das propriedades e posses rurais referentes às
condicionantes ambientais, a exemplo das Áreas de Preservação Permanente (APP),
de uso restrito, de Reserva Legal, de remanescentes de florestas e demais
formas de vegetação nativa e das áreas consolidadas.
O
dispositivo, criado pelo Código Florestal em 2012, é usado para planejar, monitorar e controlar
o combate ao desmatamento ilegal. Quando os dados são lançados, o cadastro fica
aguardando análise por parte de um técnico. Após cumprir as etapas, o registro,
então, é validado.
Segundo
a Opan, a inscrição irregular de áreas consideradas como não cadastráveis, como
as terras indígenas, acaba favorecendo a prática de grilagem e prejudica os
povos que vivem nessas regiões.
O
relatório revelou ainda que 49% das áreas de imóveis rurais sobrepostos — ou
seja, quase metade das propriedades privadas sobrepostas aos territórios
indígenas — estão em terras que se encontram nas fases iniciais de estudo e
delimitação. Essas fases são consideradas mais vulneráveis a disputas e
contestações.
De
acordo com Ricardo Carvalho, "a Sema-MT costuma responder que esses
cadastros sobrepostos a terras indígenas ainda estão em análise, ou seja, não
foram validados", pontua. Mas, segundo o relatório, há pelo menos seis
cadastros validados sobrepostos a terras indígenas regularizadas.
Dois
desses cadastros estão localizados na terra TI Apiaká do Pontal e Isolados. A
presença de não indígenas nestes locais pode forçar um contato dos indígenas
que optaram por manterem-se distantes.
Para
analista socioambiental do Instituto Centro de Vida (ICV), Júlia Mariano, a
sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais em terras indígenas não só
compromete o direito originário dos povos aos seus territórios, mas também
legitima o uso econômico dessas áreas por terceiros.
"Apesar
da legislação determinar que os Cadastros Ambientais Rurais em terras indígenas
devem ser indeferidos, nossos resultados mostram que na realidade não é bem
assim. Muitos territórios indígenas ainda têm imóveis cadastrados e registros
ativos, o que os deixa vulneráveis a atividades ilegais. Essa situação não só
desrespeita a lei, mas também ameaça a integridade desses espaços e
comunidades", disse Mariano.
A
DW entrou em contato com a Sema-MT, mas até a publicação dessa reportagem não
obteve retorno.
• O que
diz a lei
A
advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana De Paula Batista explica
que, segundo o Artigo nº 231 da Constituição Federal, "os direitos [dos
indígenas à terra são originários e independem da conclusão formal do processo
de demarcação para seu reconhecimento, por isso, o decreto 1031/2017 é
inconstitucional". Em outras palavras, o direito dos indígenas à posse da
terra deve ser garantido desde as fases iniciais do processo de demarcação.
Esse
é o argumento, como cita no relatório da Opan, usado pelo Ministério Público
Federal em uma Ação Civil Pública movida contra o Estado de Mato Grosso, que
visa, em regime de urgência, “proibir a emissão de CARs em terras indígenas
delimitadas, declaradas, demarcadas fisicamente e interditadas".
Ainda
de acordo com o documento, o governo de Mato Grosso automatizou a forma como o
CAR é analisado, por meio do Decreto Estadual 780/2024. No entanto, tal mudança
não interferiu na condição dos cadastros sobrepostos, diz o documento.
A
advogada também destaca que, "em tese, a Sema-MT não teria competência
para a análise dos CARs sobrepostos em terras indígenas, já que são bens da
União e não do estado" , reforça.
Ainda de acordo com De Paula, "o CAR não é documento que autoriza posse ou
propriedade. Ter um CAR não autoriza ocupação", explica.
A
DW também entrou em contato Ministério Público Federal de Mato Grosso para
saber em que estágio se encontra a Ação Civil Pública e também para saber se há
algum instrumento jurídico que pode invalidar CARs sobrepostos a terras
indígenas regularizadas. O órgão não respondeu até a publicação desta
reportagem.
No
entanto, a declaração do CAR permite que os proprietários desenvolvam
atividades agrícolas e comerciais na terra, mesmo com o cadastro em análise.
Tipuici Manoki, 36 anos, da etnia Manoki, mora na aldeia 13 de Maio, uma das
dez que compõem a Terra Indígena Irantxe, que fica em Brasnorte, cidade ao sul
do Mato Grosso. Junto com o seu povo, ela reivindica a TI Manoki, que já teve o
seu processo encaminhado para o Ministério da Justiça e já foi delimitada.
Mesmo
em estágio avançado de demarcação, segundo Manoki, a terra está ocupada por
fazendeiros que cultivam milho e soja em larga escala e criam gado. "Eles
fizeram o CAR, em 2020, durante a pandemia, nós protestamos, mas nada
adiantou", recorda.
Segundo
Tipuici, a cada dia que passa, o impacto ambiental nas terras indígenas só
aumenta. "Hoje, na beira do rio estão retirando as matas ciliares para
criar gado. O rio do Sangue está assoreado. Faz uma semana que a Funai desceu
[foi a terra] para fiscalizar e encontraram muitos madeireiros tirando toras de
madeira nobre”, explica.
A
indígena afirma que diversas espécies "raras e valiosas para a
biodiversidade da Floresta Amazônica" já foram retiradas de lá.
Consequentemente, diversos animais se afastaram da terra. "O Ingá, que
serve para a nossa comida e dos animais, sumiu. A Taúba e a cerejeira, árvores
nobres, sumiram. O Gavião Real e o Mutum [pássaros], que se alimentam de
vegetais sumiram", relata. Nesse ritmo, há um risco de quando o Estado
realizar a desintrusão da terra, não sobrar mais nada para o povo Manoki.
• Desmatamento
avança nas terras indígenas
Dineva
Maria, 46 anos, mãe de nove filhos, é do povo Kayabi. Hoje, ela vive na Aldeia
Tatui, em Juara, no Vale do Arinos, região noroeste de Mato Grosso. A geração
anterior da família de Dineva viveu no território original dos Kayabi, a TI
Batelão, em Sinop. Em 1940, parte do povo que vivia por lá foi removido pela
Frente de Colonização de Mato Grosso para a região do Xingu.
A
remoção completa deste povo se deu em 1966, quando um grupo foi enviado para a
região do Rio Teles Pires, que banha os estado do Mato Grosso e Pará e para a
Aldeia Tatui, no município de Juara, também no Mato Grosso.
Hoje,
os Kayabi reivindicam o território de origem, que já foi declarado no processo
de homologação. Dineva conta que, em 2008, tentaram retornar ao território, mas
não tiveram êxito. "Os madeireiros tomaram conta das terras e não deixaram
a gente entrar", explica.
Uma
das tradições dos Kayabi é o artesanato produzido a partir do barro, que,
segundo Dineva, é "considerado sagrado". "A gente nem pode mais
ter acesso ao nosso barro sagrado para fazer a nossa cerâmica. Temos que
reivindicar o nosso território de longe, sem poder viver nele", lamenta.
Fonte:
DW Brasil
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