sábado, 5 de outubro de 2024

Em Mato Grosso, CAR vira arma para grilar terras indígenas

Cerca de 1,7 milhão de hectares de terras indígenas de Mato Grosso estão registrados como propriedades rurais, utilizando indevidamente o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para legitimar processos de grilagem. É o que aponta um relatório produzido pela ONG Operação Amazônia Nativa (Opan) em parecia com o Instituto Centro de Vida (ICV).

A DW Brasil teve acesso ao documento e constatou um total de 199 cadastros sobrepostos a 59 terras indígenas já regularizadas no estado. A terra regularizada está na fase final de demarcação, esperando apenas a desintrusão ou retirada de possíveis ocupantes.

"Quer dizer que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) não está seguindo nem mesmo os critérios dela, pois esses cadastros estão sobrepostos a terras que já possuem registro em cartório. Nós recomendamos que todos esses cadastros em terras regularizadas sejam desativados", disse o indigenista Ricardo  Carvalho, um dos autores do relatório.

Se consideradas todos as 74 terras índigenas do estado que estão em diferentes etapas — declaradas, delimitadas, em estudo, regularizadas e homologadas — e que somam 15 milhões de hectares, o total de cadastros sobrepostos salta para 691 — cobrindo 6,84% dessas áreas indígenas.

O CAR é um sistema público eletrônico de abrangência nacional. Ele é compulsório e deve ser realizado por todos os imóveis rurais. O seu propósito é congregar as informações ambientais das propriedades e posses rurais referentes às condicionantes ambientais, a exemplo das Áreas de Preservação Permanente (APP), de uso restrito, de Reserva Legal, de remanescentes de florestas e demais formas de vegetação nativa e das áreas consolidadas.

O dispositivo, criado pelo Código Florestal em 2012,  é usado para planejar, monitorar e controlar o combate ao desmatamento ilegal. Quando os dados são lançados, o cadastro fica aguardando análise por parte de um técnico. Após cumprir as etapas, o registro, então, é validado.

Segundo a Opan, a inscrição irregular de áreas consideradas como não cadastráveis, como as terras indígenas, acaba favorecendo a prática de grilagem e prejudica os povos que vivem nessas regiões.

O relatório revelou ainda que 49% das áreas de imóveis rurais sobrepostos — ou seja, quase metade das propriedades privadas sobrepostas aos territórios indígenas — estão em terras que se encontram nas fases iniciais de estudo e delimitação. Essas fases são consideradas mais vulneráveis a disputas e contestações.

De acordo com Ricardo Carvalho, "a Sema-MT costuma responder que esses cadastros sobrepostos a terras indígenas ainda estão em análise, ou seja, não foram validados", pontua. Mas, segundo o relatório, há pelo menos seis cadastros validados sobrepostos a terras indígenas regularizadas.

Dois desses cadastros estão localizados na terra TI Apiaká do Pontal e Isolados. A presença de não indígenas nestes locais pode forçar um contato dos indígenas que optaram por manterem-se distantes.

Para analista socioambiental do Instituto Centro de Vida (ICV), Júlia Mariano, a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais em terras indígenas não só compromete o direito originário dos povos aos seus territórios, mas também legitima o uso econômico dessas áreas por terceiros.

"Apesar da legislação determinar que os Cadastros Ambientais Rurais em terras indígenas devem ser indeferidos, nossos resultados mostram que na realidade não é bem assim. Muitos territórios indígenas ainda têm imóveis cadastrados e registros ativos, o que os deixa vulneráveis a atividades ilegais. Essa situação não só desrespeita a lei, mas também ameaça a integridade desses espaços e comunidades", disse Mariano.

A DW entrou em contato com a Sema-MT, mas até a publicação dessa reportagem não obteve retorno.

•                                         O que diz a lei

A advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana De Paula Batista explica que, segundo o Artigo nº 231 da Constituição Federal, "os direitos [dos indígenas à terra são originários e independem da conclusão formal do processo de demarcação para seu reconhecimento, por isso, o decreto 1031/2017 é inconstitucional". Em outras palavras, o direito dos indígenas à posse da terra deve ser garantido desde as fases iniciais do processo de demarcação.

Esse é o argumento, como cita no relatório da Opan, usado pelo Ministério Público Federal em uma Ação Civil Pública movida contra o Estado de Mato Grosso, que visa, em regime de urgência, “proibir a emissão de CARs em terras indígenas delimitadas, declaradas, demarcadas fisicamente e interditadas".

Ainda de acordo com o documento, o governo de Mato Grosso automatizou a forma como o CAR é analisado, por meio do Decreto Estadual 780/2024. No entanto, tal mudança não interferiu na condição dos cadastros sobrepostos, diz o documento. 

A advogada também destaca que, "em tese, a Sema-MT não teria competência para a análise dos CARs sobrepostos em terras indígenas, já que são bens da União e não do estado" ,  reforça. Ainda de acordo com De Paula, "o CAR não é documento que autoriza posse ou propriedade. Ter um CAR não autoriza ocupação", explica.

A DW também entrou em contato Ministério Público Federal de Mato Grosso para saber em que estágio se encontra a Ação Civil Pública e também para saber se há algum instrumento jurídico que pode invalidar CARs sobrepostos a terras indígenas regularizadas. O órgão não respondeu até a publicação desta reportagem.

No entanto, a declaração do CAR permite que os proprietários desenvolvam atividades agrícolas e comerciais na terra, mesmo com o cadastro em análise. Tipuici Manoki, 36 anos, da etnia Manoki, mora na aldeia 13 de Maio, uma das dez que compõem a Terra Indígena Irantxe, que fica em Brasnorte, cidade ao sul do Mato Grosso. Junto com o seu povo, ela reivindica a TI Manoki, que já teve o seu processo encaminhado para o Ministério da Justiça e já foi delimitada.

Mesmo em estágio avançado de demarcação, segundo Manoki, a terra está ocupada por fazendeiros que cultivam milho e soja em larga escala e criam gado. "Eles fizeram o CAR, em 2020, durante a pandemia, nós protestamos, mas nada adiantou", recorda.

Segundo Tipuici, a cada dia que passa, o impacto ambiental nas terras indígenas só aumenta. "Hoje, na beira do rio estão retirando as matas ciliares para criar gado. O rio do Sangue está assoreado. Faz uma semana que a Funai desceu [foi a terra] para fiscalizar e encontraram muitos madeireiros tirando toras de madeira nobre”, explica.

A indígena afirma que diversas espécies "raras e valiosas para a biodiversidade da Floresta Amazônica" já foram retiradas de lá. Consequentemente, diversos animais se afastaram da terra. "O Ingá, que serve para a nossa comida e dos animais, sumiu. A Taúba e a cerejeira, árvores nobres, sumiram. O Gavião Real e o Mutum [pássaros], que se alimentam de vegetais sumiram", relata. Nesse ritmo, há um risco de quando o Estado realizar a desintrusão da terra, não sobrar mais nada para o povo Manoki.

•                                         Desmatamento avança nas terras indígenas

Dineva Maria, 46 anos, mãe de nove filhos, é do povo Kayabi. Hoje, ela vive na Aldeia Tatui, em Juara, no Vale do Arinos, região noroeste de Mato Grosso. A geração anterior da família de Dineva viveu no território original dos Kayabi, a TI Batelão, em Sinop. Em 1940, parte do povo que vivia por lá foi removido pela Frente de Colonização de Mato Grosso para a região do Xingu.

A remoção completa deste povo se deu em 1966, quando um grupo foi enviado para a região do Rio Teles Pires, que banha os estado do Mato Grosso e Pará e para a Aldeia Tatui, no município de Juara, também no Mato Grosso.

Hoje, os Kayabi reivindicam o território de origem, que já foi declarado no processo de homologação. Dineva conta que, em 2008, tentaram retornar ao território, mas não tiveram êxito. "Os madeireiros tomaram conta das terras e não deixaram a gente entrar", explica.

Uma das tradições dos Kayabi é o artesanato produzido a partir do barro, que, segundo Dineva, é "considerado sagrado". "A gente nem pode mais ter acesso ao nosso barro sagrado para fazer a nossa cerâmica. Temos que reivindicar o nosso território de longe, sem poder viver nele", lamenta.

 

Fonte: DW Brasil

 

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