Uma
jornada contínua de descoberta, indignação e luta contra a violência de gênero
A
primeira vez que eu realmente parei para prestar atenção e entender o que era a
violência de gênero eu tinha 23 anos. Estava morando em outro país, vivendo o
sonho de trabalhar com algo que amava ao lado de pessoas que me desafiavam a
ser melhor todos os dias. Naquela época, os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável da ONU estavam em alta e a organização internacional para a qual eu
trabalhava queria que nossos projetos estivessem relacionados com essas metas.
Foi numa dessas conversas de trabalho que uma das minhas colegas, a Gabriela,
disse que o objetivo com o qual mais se identificava era o número 5, igualdade
de gênero.
Minha
primeira reação foi surpresa. Como assim era essa a meta que ela via como a
mais importante? Mais importante que a fome, que as guerras, que a pobreza?
Minha colega sorriu e me esticou a mão. “Venha comigo”, disse ela, e eu entrei
de cabeça na toca do coelho.
Gabi
foi a primeira de uma série de amigas que me ensinou o que era a violência de
gênero e como afeta a vida de aproximadamente metade das pessoas que habitam
este planeta, das mais variadas formas. É um problema que existe para todas
nós, independente da nossa idade, nacionalidade, classe social ou cor da pele –
ainda que, com certeza, parcelas da população sofram de forma diferente de
acordo com suas características sociais.
Por
ser algo tão presente, a violência de gênero termina se tornando parte do
cotidiano. Somos ensinadas a não vê-la ou, se a vemos, a não dar tanta
importância assim; a acreditar que talvez a culpa do que está acontecendo seja
somente nossa; a aceitar que as coisas são assim mesmo – boys will be boys – e
não vale a pena tentar mudar.
Segundo
a Organização Mundial da Saúde, 35% das mulheres em todo o mundo são vítimas de
violência física e/ou sexual realizada, em sua maior parte, por seus parceiros.
A definição da ONU considera que qualquer violência, seja ela sexual, física,
psicológica ou econômica, pode ser configurada como de gênero. No Brasil, quase
4 de cada 10 mulheres já sofreram alguma dessas violências dentro de sua
própria casa, segundo levantamento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão em
2022.
Uma
das representações que eu mais gosto da violência de gênero é uma imagem de um
iceberg, criado pela Anistia Internacional. A parte que podemos ver, a ponta do
iceberg que está sobre a água, representa as violências mais visíveis.
Agressões físicas, ameaças, estupro, até chegar ao ponto mais alto com o
assassinato. Só que esse iceberg possui uma parte muito grande que fica debaixo
da água e esta representaria todas as coisas menos explícitas. Pagar um salário
mais baixo a uma mulher que a um homem que realiza a mesma função. Fazer uma
piadinha de cunho sexual com o grupo de amigos. Culpar a vítima de uma violação
pela roupa que usava. Delegar toda tarefa de cuidado do lar às mulheres. E por
aí vai.
São
violências mais sutis, mas que sustentam a base desse iceberg. Retroalimentam o
ódio e colaboram para aumentar ainda mais a brecha de gênero. Essa imagem com
certeza é uma forma muito sagaz de enxergar como a violência de gênero pode
escalar de algo considerado inofensivo até chegar a consequências devastadoras.
O
Mapa Nacional da Violência de Gênero oferece dados compilados de vários órgãos
públicos sobre esse tema. Em 2023, a Central de Atendimento à Mulher do governo
federal recebeu quase 75 mil denúncias de violência. Porém, 61% das mulheres
que sofreram violência no ano não procuraram uma delegacia para denunciar.
Dados
do SUS mostram também que em 2022 mais de 202 mil mulheres brasileiras sofreram
algum tipo de violência. Entre janeiro e outubro de 2023, 1.127 feminicídios
foram registrados no nosso país, ao lado de 3.423 mortes violentas em 2022. Eu
me pergunto qual foi a quantidade de outras violências que essas mulheres
assassinadas não sofreram antes de chegar ao ponto mais alto do iceberg…
Demorei
mais de vinte anos da minha vida para enxergar o quanto precisamos falar sobre
violência de gênero. Só que assim que comecei a vê-la, já não pude mais
des-ver. E nem deixar pra lá.
Quando
as pessoas se aproximam de mim e me perguntam como tive a ideia de escrever meu
último livro, Mulheres que não eram somente vítimas, é simples explicar. Que
mulher não poderia falar sobre violência de gênero? Qual de nós não está
atravessada por normas de comportamento que nos exigem sempre mais, que nos
massacram afirmando que nunca seremos suficientes? Que mulher não seria capaz
de dar mil e um exemplos de situações que a deixaram incômoda, assustada,
machucada, reprimida pelo simples fato de ser mulher?
Faltam
seis anos para chegar a 2030, o prazo que o mundo tem para alcançar os
Objetivos da ONU. Parece pouco tempo para realizar as mudanças necessárias para
que todas as dezessete metas se tornem realidade, incluindo o objetivo da
igualdade de gênero. Não sei se chegaremos lá. Mas é inegável que podemos dar
passos sólidos em direção a uma mudança para melhor. Um deles, na minha
opinião, é o que a Gabi fez por mim e o que eu tento fazer hoje com outras
mulheres: explicar, ensinar, mostrar que existem outras formas de ver o mundo e
ser mulher.
Segundo
o estudo do Instituto Patrícia Galvão mencionado anteriormente, os principais
fatores que ajudam a que as mulheres saiam de uma relação de violência são o
apoio e acolhimento da família e amigos e o auxílio do Estado para se proteger
do agressor e conseguir escapar de uma situação de perigo.
Hoje,
quase dez anos depois da minha primeira aproximação ao tema da violência de
gênero e suas raízes profundas em nossa sociedade, entendi que para mudar a
minha realidade era preciso continuar aprendendo e refletindo. Ainda bem que
estou rodeada de mulheres sempre dispostas a me acolher e a compartilhar nossas
vivências. E, assim como elas estão para mim, também espero com os braços
abertos às companheiras que, assim como eu, quiserem embarcar nessa jornada de
descoberta, indignação e luta.
Fonte:
Por Regiane Folter, no Le Monde
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