segunda-feira, 22 de abril de 2024

Uma jornada contínua de descoberta, indignação e luta contra a violência de gênero

A primeira vez que eu realmente parei para prestar atenção e entender o que era a violência de gênero eu tinha 23 anos. Estava morando em outro país, vivendo o sonho de trabalhar com algo que amava ao lado de pessoas que me desafiavam a ser melhor todos os dias. Naquela época, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU estavam em alta e a organização internacional para a qual eu trabalhava queria que nossos projetos estivessem relacionados com essas metas. Foi numa dessas conversas de trabalho que uma das minhas colegas, a Gabriela, disse que o objetivo com o qual mais se identificava era o número 5, igualdade de gênero.

Minha primeira reação foi surpresa. Como assim era essa a meta que ela via como a mais importante? Mais importante que a fome, que as guerras, que a pobreza? Minha colega sorriu e me esticou a mão. “Venha comigo”, disse ela, e eu entrei de cabeça na toca do coelho.

Gabi foi a primeira de uma série de amigas que me ensinou o que era a violência de gênero e como afeta a vida de aproximadamente metade das pessoas que habitam este planeta, das mais variadas formas. É um problema que existe para todas nós, independente da nossa idade, nacionalidade, classe social ou cor da pele – ainda que, com certeza, parcelas da população sofram de forma diferente de acordo com suas características sociais.

Por ser algo tão presente, a violência de gênero termina se tornando parte do cotidiano. Somos ensinadas a não vê-la ou, se a vemos, a não dar tanta importância assim; a acreditar que talvez a culpa do que está acontecendo seja somente nossa; a aceitar que as coisas são assim mesmo – boys will be boys – e não vale a pena tentar mudar.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, 35% das mulheres em todo o mundo são vítimas de violência física e/ou sexual realizada, em sua maior parte, por seus parceiros. A definição da ONU considera que qualquer violência, seja ela sexual, física, psicológica ou econômica, pode ser configurada como de gênero. No Brasil, quase 4 de cada 10 mulheres já sofreram alguma dessas violências dentro de sua própria casa, segundo levantamento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão em 2022.

Uma das representações que eu mais gosto da violência de gênero é uma imagem de um iceberg, criado pela Anistia Internacional. A parte que podemos ver, a ponta do iceberg que está sobre a água, representa as violências mais visíveis. Agressões físicas, ameaças, estupro, até chegar ao ponto mais alto com o assassinato. Só que esse iceberg possui uma parte muito grande que fica debaixo da água e esta representaria todas as coisas menos explícitas. Pagar um salário mais baixo a uma mulher que a um homem que realiza a mesma função. Fazer uma piadinha de cunho sexual com o grupo de amigos. Culpar a vítima de uma violação pela roupa que usava. Delegar toda tarefa de cuidado do lar às mulheres. E por aí vai.

São violências mais sutis, mas que sustentam a base desse iceberg. Retroalimentam o ódio e colaboram para aumentar ainda mais a brecha de gênero. Essa imagem com certeza é uma forma muito sagaz de enxergar como a violência de gênero pode escalar de algo considerado inofensivo até chegar a consequências devastadoras.

O Mapa Nacional da Violência de Gênero oferece dados compilados de vários órgãos públicos sobre esse tema. Em 2023, a Central de Atendimento à Mulher do governo federal recebeu quase 75 mil denúncias de violência. Porém, 61% das mulheres que sofreram violência no ano não procuraram uma delegacia para denunciar.

Dados do SUS mostram também que em 2022 mais de 202 mil mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência. Entre janeiro e outubro de 2023, 1.127 feminicídios foram registrados no nosso país, ao lado de 3.423 mortes violentas em 2022. Eu me pergunto qual foi a quantidade de outras violências que essas mulheres assassinadas não sofreram antes de chegar ao ponto mais alto do iceberg…

Demorei mais de vinte anos da minha vida para enxergar o quanto precisamos falar sobre violência de gênero. Só que assim que comecei a vê-la, já não pude mais des-ver. E nem deixar pra lá.

Quando as pessoas se aproximam de mim e me perguntam como tive a ideia de escrever meu último livro, Mulheres que não eram somente vítimas, é simples explicar. Que mulher não poderia falar sobre violência de gênero? Qual de nós não está atravessada por normas de comportamento que nos exigem sempre mais, que nos massacram afirmando que nunca seremos suficientes? Que mulher não seria capaz de dar mil e um exemplos de situações que a deixaram incômoda, assustada, machucada, reprimida pelo simples fato de ser mulher?

Faltam seis anos para chegar a 2030, o prazo que o mundo tem para alcançar os Objetivos da ONU. Parece pouco tempo para realizar as mudanças necessárias para que todas as dezessete metas se tornem realidade, incluindo o objetivo da igualdade de gênero. Não sei se chegaremos lá. Mas é inegável que podemos dar passos sólidos em direção a uma mudança para melhor. Um deles, na minha opinião, é o que a Gabi fez por mim e o que eu tento fazer hoje com outras mulheres: explicar, ensinar, mostrar que existem outras formas de ver o mundo e ser mulher.

Segundo o estudo do Instituto Patrícia Galvão mencionado anteriormente, os principais fatores que ajudam a que as mulheres saiam de uma relação de violência são o apoio e acolhimento da família e amigos e o auxílio do Estado para se proteger do agressor e conseguir escapar de uma situação de perigo.

Hoje, quase dez anos depois da minha primeira aproximação ao tema da violência de gênero e suas raízes profundas em nossa sociedade, entendi que para mudar a minha realidade era preciso continuar aprendendo e refletindo. Ainda bem que estou rodeada de mulheres sempre dispostas a me acolher e a compartilhar nossas vivências. E, assim como elas estão para mim, também espero com os braços abertos às companheiras que, assim como eu, quiserem embarcar nessa jornada de descoberta, indignação e luta.

 

Fonte: Por Regiane Folter, no Le Monde

 

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