No Senado,
ganha o populismo penal, disfarçado de embate com STF
A
votação foi esmagadora. Apenas nove dos 81 senadores (61 presentes) votaram contra
a PEC 45, apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que
inclui na Constituição Federal a criminalização da posse e do porte de qualquer
quantidade de droga ilícita.
Na
prática, isso significa que qualquer pessoa que porte ou use qualquer
substância proibida pode ser presa e levada a uma delegacia, onde a autoridade
policial decidirá sozinha se abrirá um inquérito policial por tráfico ou uso de
drogas, que resultará em processo judicial.
Todos
serão condenados ou terão que fazer um tratamento médico. Seria como se todas
as pessoas que tomam um drinque fossem obrigadas a fazer tratamento contra
alcoolismo. Incluindo os caros parlamentares.
Embora
o senador Pacheco tenha “dourado” a pílula, afirmando que os usuários não serão
encarcerados, não há critérios objetivos na PEC para definir quem é usuário ou
quem é traficante.
O
que já sabemos o que significa, até por que a lei em vigor, a 11.343, tem a
mesma falha. É por isso que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal
(STF) a constitucionalidade do artigo 28 dessa lei, que estabelece punição para
o usuário de drogas sem definir a quantidade limite para que seja considerado
um traficante.
Se
aprovada na Câmara dos Deputados, a PEC entrará em vigor como emenda
constitucional mesmo que com decisão diversa do STF, onde a tendência é pela
descriminalização do usuário, com quantidade máxima de uso e porte previamente
estabelecida pela corte.
Até
que a PEC seja considerada inconstitucional – o que deve acontecer –, já
sabemos quem será enquadrado como traficante. Os mesmos jovens negros que são
alvo de batidas policiais truculentas e jogados sem julgamento em prisões
desumanas e controladas pelo crime organizado.
Aquele
crime organizado que os políticos dizem combater enquanto o PCC, a maior facção
de São Paulo, nascida nessas mesmas prisões, lava dinheiro no transporte
público de São Paulo na cara das autoridades.
Uma
reportagem da Agência Pública de 2019 já revelou que os negros são mais
enquadrados por tráfico mesmo com menores quantidades de droga. No ano passado,
uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Ministério
da Justiça, que analisou mais de 5 mil processos de sentenciados por tráfico de
drogas, definiu o perfil majoritário desses réus: jovem, de baixa escolaridade,
não branco, que, quando houve flagrante de porte de drogas ilícitas, tinha
quantidades relativamente pequenas.
Outra
informação da mesma pesquisa chama atenção de ativistas de direitos humanos
como Rebeca Lerer, também organizadora das marchas da maconha que em 2011, por
decisão do STF, foram legalizadas. “Tem um dado ali que foi pouco divulgado:
menos de 13% dos condenados pela lei antidrogas tinham qualquer vínculo com o
crime organizado. Ou seja, essa lei está longe de combater o crime organizado,
apenas está jogando mais gente nos presídios controlados por facções”, diz
Lerer, que estava entre os ativistas que pressionaram para aprofundar o debate
no Congresso antes da votação.
“A
quantidade de mentiras que foi dita nessas audiências me lembrou a CPI da Covid
ao contrário”, brinca a ativista. “O uso de drogas é um fenômeno
biopsicossocial, faz parte da experiência humana, e a proibição nunca foi capaz
de reduzir a circulação de drogas. E o Brasil tem uma legislação muito antiga,
muito fora da curva em relação a isso mesmo comparado a outros países da
América Latina. A pretexto de proteger os usuários das drogas, [a legislação]
os coloca como massa de manobra porque trata a todos como doentes ou como
bandidos.”
Nem
mesmo para os adictos a legislação é favorável, ela explica. “Sim, entre 10% e
20% das pessoas que usam drogas desenvolvem algum tipo de dependência ou
transtorno, segundo os dados da ONU. Mas a criminalização agrava esse problema
porque afasta as pessoas do sistema de saúde, você tem medo de falar disso com
o médico porque você pode ser criminalizado e não há estrutura para um
tratamento real. A única opção acaba sendo a internação, que é uma forma de
privação de liberdade e está longe de ser uma solução”, afirma a jornalista e
ativista.
“Quem
está ganhando com a PEC? A rede de comunidades terapêuticas, que é também quem
está por trás dessa PEC. Existe um subsídio crescente do governo para as
comunidades terapêuticas, e a maior parte delas é de cunho religioso, muitos
desses pastores que estão na política são donos de comunidades terapêuticas,
enriqueceram com isso, e não é um tipo de tratamento que é cientificamente
comprovado”, denuncia.
“Se
a gente quer que o consumo de drogas caia, então vamos falar de automedicação,
stress e da insegurança que vivemos diariamente, e sobre todas as drogas,
inclusive do Rivotril que custa R$ 8 a caixa com 30 comprimidos. Menos que o
crack, e tem em qualquer farmácia. Ninguém está nem aí para a saúde pública”,
concluiu, entre o desânimo e a revolta.
Ao
que tudo indica, o Congresso continua jogando com as nossas vidas com um olho
no voto conservador e outro nos seus próprios interesses. Nunca foi tão
importante qualificar o debate democrático com informação de qualidade.
A
PEC de Rodrigo Pacheco e o negacionismo científico. Por Carla Teixeira
O
Senado Federal aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC), submetida pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que torna
crime a posse de qualquer quantidade de substância ilícita. Na prática é uma
resposta direta à decisão do Supremo Tribunal Federal que julga, desde 2015, a
inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas, buscando critérios
para diferenciar usuários de traficantes.
A
proibição das drogas, especificamente da cannabis – vinculada por vários
estudos históricos e antropológicos aos pretos escravizados do período colonial
e imperial, e utilizada nos hospitais de alienados no início da República até
que fosse proibida – é mais um expediente do racismo institucional brasileiro.
Proibir e criminalizar o porte de substâncias ilícitas amplamente consumidas
abre caminho para que sejam utilizadas como moeda em todo tipo de crime, da
organização de milícias à invasão de terras demarcadas.
Nessa
direção, o Estado se converte num agente ativo para prender, matar e construir
organizações criminosas essencialmente compostas por jovens negros e
periféricos. Estes, sem acesso à educação e oportunidades de emprego digno,
tornam-se presas fáceis das organizações criminosas que a cada dia se entranham
com mais eficiência nas instituições do Estado, a exemplo do que se passa
atualmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.
De
acordo com pesquisa de 2023 realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), 68% dos réus por tráfico são negros; 72% têm menos de 30 anos
e 67% não concluíram o ensino básico. Em apenas 13% dos casos há envolvimento
anterior com organizações criminosas. Ou seja, é na prisão superlotada que
esses quadros vulneráveis são mobilizados pelos grupos criminosos. O Brasil
possui a terceira maior população carcerária do mundo, contando quase um milhão
de pessoas.
Além
do custo humano, há as expensas econômicas. O Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania (CESeC) revelou que em 2017 o Rio de Janeiro gastou quase R$ 1 bilhão
na guerra às drogas, enquanto São Paulo desperdiçou R$ 4,2 bilhões.
A
aprovação da PEC de Rodrigo Pacheco, aliada à aprovação do projeto que extingue
a possibilidade de saídas temporárias dos presídios – parcialmente vetado pelo
presidente Lula por ferir os princípios da dignidade humana – aponta para um
futuro temeroso de superencarceramento e prováveis rebeliões, com o crescimento
das organizações criminosas e das milícias.
Tais
aspectos contribuem para o fortalecimento dos grupos da extrema direita que,
sedutores com suas soluções fáceis para problemas difíceis, apenas têm a ganhar
com uma revolta carcerária a nível nacional, uma vez explícita – mas não
enfrentadas – as ligações das milícias e das organizações criminosas com
quadros parlamentares e da alta burocracia do funcionalismo público.
Como
apontou Muniz Sodré em seu livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo
nacional, o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo. A PEC de
Rodrigo Pacheco é apenas mais uma manifestação disso: negacionismo científico,
racismo institucional e total ausência de compromisso cívico dos senadores com
os problemas reais da sociedade. Essas e outras medidas evidenciam que na
democracia do Brasil atual o parlamento é apenas uma Casa para lamentar.
A
maconha e o fracasso da guerra às drogas. Por Maisa Diniz
Desde
a mais tenra infância somos ensinados a temer as drogas. Quem nunca foi
alertado de que, se em algum momento recebesse uma oferta de droga, sua
resposta indubitavelmente deveria ser não. Um não convicto e retumbante, capaz
de afastar qualquer influência.
O
tempo passou e a vida adulta nos faz compreender o quão frágil é essa ideia.
Maconha, cocaína, crack, por exemplo, são as substâncias não reguladas mais
consumidas do Brasil e, portanto, consideradas drogas. No entanto, vale
ressaltar que drogas também são substâncias reguladas, ou seja, permitidas com
restrições. Nesse grupo, dentre os mais consumidos no país estão o álcool, o
cigarro e o rivotril. Seis substâncias completamente diferentes entre si, todas
consideradas drogas, mas apenas algumas delas são reguladas pelo governo, e seu
uso legitimado pela sociedade.
Podemos
nos ater a uma delas: a maconha. A maconha (ainda) não se encontra entre as
drogas lícitas e isso precisa mudar o quanto antes.
No
Brasil, 443 pessoas morrem todos os dias por causa do cigarro. São mais de 160
mil mortes anuais somente no nosso país. No mundo, o tabaco mata mais de 8
milhões de pessoas anualmente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde
(OMS). Quando o assunto é álcool, só em 2021, foram computadas 69 mil mortes e
335 mil internações associadas ao álcool no país, de acordo com dados do
Datasus. Vale lembrar a tragédia que aconteceu em 2023 em Catalão, Goiás, onde
um trabalhador rural morreu após beber uma garrafa inteira de cachaça para
ganhar uma aposta num bar. A caso foi registrado como morte natural.
A
maconha nunca matou ninguém. Não existe na história da humanidade um registro
sequer sobre uma pessoa que tenha tido overdose de maconha. Além da não
letalidade, a maconha tem um outro diferencial gritante: seu potencial
medicinal. A maconha hoje é comprovadamente um remédio utilizado para tratar
pelo menos trinta doenças e condições de saúde, que vão desde doenças raras até
depressão e ansiedade, a epidemia dos nossos tempos.
Um
exemplo milagroso é a história emocionante da Clarian, filha da Cida Carvalho,
conhecida como Cidinha, fundadora da Cultive, Associação de Cannabis e Saúde,
uma das principais associações de cannabis de São Paulo. Clarian foi
diagnosticada com Síndrome de Dravet, uma forma de epilepsia caracterizada por
convulsões recorrentes. Ainda criança, antes de tratar a epilepsia com
cannabidiol, ela chegou a convulsionar mais de cinquenta vezes em um único dia.
Vale lembrar, para além das doenças raras, o Brasil é o país mais ansioso do
mundo e o quinto mais depressivo, segundo a OMS. A quantidade de pessoas que
poderiam efetivamente se beneficiar do remédio de cannabis é inimaginável.
Por
fim, o cânhamo. Sem potencial medicinal, o macho da planta não produz as
flores, de onde se extrai a medicina, e tem uma das fibras vegetais mais
resistentes da natureza. O potencial industrial desta commodity poderia gerar
um impacto gigantesco no Brasil, onde ainda não é comercializado como em outros
continentes como na América do Norte, Europa e Ásia Em outras palavras, tudo o
que é de plástico poderia ser de cânhamo. Segundo a consultoria Kaya Mind, para
o Brasil, um investimento no mercado de cânhamo significaria R$ 4,9 bilhões
movimentados e uma arrecadação de R$ 330,1 milhões em impostos. Isso tudo
através da promoção de uma economia verde, sustentável e de baixo carbono.
Os
argumentos para regular a maconha no Brasil são muitos e vão além dos
benefícios medicinais mencionados acima e da sua distinção em relação aos
malefícios de outras drogas – inclusive aquelas livremente legitimadas. O
último dos argumentos, mas não menos importante, é que a regulação é a melhor
resposta para o fracasso da guerra contra o narcotráfico. Fracasso porque se
mostraram ineficientes todas as políticas baseadas na repressão total.
Reconhecer que um usuário de maconha não é um criminoso é o primeiro passo para
isso.
A
guerra às drogas é um fracasso que deixou de ser uma campanha e passou a ser
uma cultura, fundada na nutrição de um medo coletivo, esse sujeito
indeterminado responsável por tantos imaginários trágicos. E é por ele que
toleramos tantas injustiças. Difícil desconhecer esse filme e como ele acaba:
com a penalização permanente de pretos e pobres, o encarceramento em massa e
injusto, e a aplicação desigual da lei em razão da cor e das condições sociais
e econômicas do usuário.
Lideranças
como o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama já se posicionaram sobre o
tema: “Jovens de classe média não são presos por fumar maconha, mas jovens
pobres são”. Fazer do usuário de maconha um criminoso, perigoso, que precisa
estar atrás das grades, é o nascedouro das nossas maiores desigualdades.
Fonte:
Por Marina Amaral, da Agencia Pública/A Terra é Redonda/Le Monde
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