Estratégia
baseada em polipílulas pode ser saída para acesso e adesão no combate às
doenças cardiovasculares
Uma
nova alternativa no combate e prevenção de doenças crônicas não transmissíveis
(DCNT), com foco nas doenças cardiovasculares, pode estar mais perto do que
nunca. Os recentes avanços da medicina têm reinventado áreas como genética,
oncologia e bioengenharia, mas uma tecnologia relativamente antiga é quem pode
liderar o futuro das DCNTs: a polipílula.
A
existência de pílulas que combinam mais de uma substância ativa data de muitas
décadas. Medicamentos usados no controle da hipertensão ou do HIV, por exemplo,
seguem essa lógica. A polipílula, porém, segue outro conceito: a combinação de
substâncias que não pertencem à mesma classe, mas têm efeitos sinergéticos. Ou
seja, que apontam para os mesmos benefícios, neste caso, da saúde
cardiovascular.
O
conceito foi apresentado ao mundo em 2003 pelos médicos Nicholas John Wald e
Malcolm Law, ambos especialistas em medicina preventiva. Ao realizar um estudo
de meta-análise, Wald e Law identificaram que a combinação de estatinas, drogas
usadas para abaixar a pressão arterial, ácido fólico e aspirina, resultou numa
redução de 88% dos eventos de doença arterial coronariana e de 80% dos eventos
de acidente vascular cerebral (AVC). Além disso, estimaram que um terço das
pessoas que tomassem a medicação a partir dos 55 anos poderiam ganhar, em
média, 11 anos de vida livres de tais eventos.
Além
dos benefícios na redução dos riscos cardiovasculares por si só, a nova
abordagem traz consigo outros pontos positivos, como a menor incidência de
efeitos colaterais e a facilitação da adesão ao tratamento, um dos principais
empecilhos no combate às doenças crônicas atualmente.
“Uma
das maiores dificuldades no controle desse grupo de doenças é a adesão a longo
prazo”, analisa Erlon Oliveira de Abreu Silva, cardiologista clínico e
pesquisador do Instituto de Pesquisa do Hcor. “Quando a gente simplifica o
tratamento medicamentoso, saindo de quatro, cinco medicamentos diários para um
comprimido uma vez por dia, damos um passo muito grande em direção a uma
melhora de adesão. Não é algo baseado apenas em opinião, é algo já defendido
por órgãos internacionais como a Federação Mundial do Coração”.
Evidências
são positivas
Doenças
crônicas não transmissíveis (DCNT) são as principais responsáveis por óbitos no
mundo: aproximadamente 17 milhões de pessoas morrem prematuramente por ano,
segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – número que pode saltar para 150
milhões nos próximos anos caso não sejam tomadas ações em relação ao cenário
atual. Os desafios de enfrentamento são muitos, uma vez que a incidência das
DCNTs está intimamente ligada aos fatores de risco modificáveis: hábitos
alimentares, prática de atividades físicas, tabagismo e consumo de bebidas
alcóolicas. Tais fatores, por sua vez, estão associados à realidade
socioeconômica de um indivíduo e o resultado dessa equação é que a taxa de
incidência de doenças crônicas tem disparado nos países em desenvolvimento, um
problema e tanto para o sistema de saúde.
Diante
do potencial de impacto na saúde global a um custo relativamente baixo, as
pesquisas sobre a abordagem da polipílula se multiplicaram nos últimos 20 anos.
Especialistas da Federação Mundial do Coração publicaram um comentário
analítico em 2022 na revista The Lancet em que salientaram que, em um cenário
de adesão mínima de 50% da população com 55 anos ou mais, é possível reduzir 2
milhões de mortes por doenças cardiovasculares por ano, e de 4 milhões de
eventos cardíacos.
O
Brasil também tem um histórico com as pesquisas focadas na eficácia das
polipílulas. O primeiro projeto que contou com a participação do país aconteceu
ainda em 2011, quando o Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital do Coração
(IPE-Hcor), ao lado de outros seis países, avaliou a administração de um
comprimido que combinava quatro medicamentos na redução de risco cardiovascular
moderado, da pressão arterial e do colesterol. Segundo o então diretor do IEP
HCor e coordenador da pesquisa no Brasil, Otávio Berwange, todos os países
colaboradores observaram uma redução de 60% no risco de a pessoa sofrer um
derrame ou infarto no futuro, além da redução na pressão arterial e no
colesterol.
“Foi
um estudo com base no que chamamos de prevenção primária, que é aquela focada
em pessoas que ainda não desenvolveram uma doença cardiovascular. O estudo foi
breve, feito com 378 pessoas com um risco cardiovascular intermediário,
acompanhadas por um período de 12 semanas. Os resultados foram positivos, e
mostraram que o grupo que utilizou a polipílula teve uma redução significativa
do nível de pressão e do nível LDL de colesterol, bastante promissor. E é um
resultado que foi repetido em outros cenários, com outros grupos de pesquisa
mundo afora”, afirma Erlon Oliveira de Abreu Silva.
Em
2020, uma nova pesquisa sobre o uso de polipílula foi iniciada. Dessa vez, a
parceria foi realizada entre o Hospital Moinhos do Vento e o Ministério da
Saúde, através do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema
Único de Saúde (PROADI-SUS), e tem como objetivo avaliar se o uso de uma
polipílula com a combinação de medicamentos para controlar a pressão e o
colesterol, isolada ou associada à modificação do estilo de vida, é capaz de
reduzir o número de casos de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a taxa de
declínio cognitivo em pessoas de 50 a 75 anos com baixo a moderado risco de
doenças cardiovasculares.
Os
resultados da primeira fase do projeto responsável pela primeira pílula
desenvolvida no Brasil, intitulado “PROMOTE”, são animadores. Segundo Sheila
Martins, responsável técnica do projeto e chefe do Serviço de Neurologia e
Neurocirurgia do Hospital Moinhos de Vento, todos os participantes que
receberam a polipílula tiveram redução da pressão arterial em cerca de 13 mmHg
na pressão sistólica e 6 mmHg na diastólica. Comparado ao uso do placebo, houve
uma diferença de 7mmHg entre os dois grupos, sendo já evidenciado em estudos
clínicos anteriores a redução de 2mmHg da pressão arterial, reduzindo em 10% o
risco de AVC.
Prevenção
combinada
A
pesquisadora, que também é presidente da Organização Mundial de Acidente
Vascular Cerebral (WSO, na sigla em inglês), conta que a ideia de realizar a
pesquisa surgiu muito antes, justamente pela necessidade de contribuir com
evidências científicas para o debate sobre a prevenção de eventos
cardiovasculares. Ela explica que, pela literatura, já se sabe que a pressão
alta é um fator de risco para AVC, infarto e outras condições de mesma
natureza, e para esse cenário já existem protocolos bem definidos. Mas, para a
parcela da população com a pressão na faixa de 120 a 139, que ainda não se
configura como hipertensão, a abordagem recomendada ainda se concentra muito na
modificação dos fatores relacionados ao estilo de vida, muitas vezes de difícil
adesão.
Martins
destaca que é justamente essa população que, ao somar pelo menos um fator de
risco de estilo de vida – como tabagismo ou obesidade –, representa 80% dos
casos de AVC: “Se a gente olhar na comunidade geral, 80% têm baixo ou médio
risco cardiovascular, e não estamos prevenindo essa parcela da população
adequadamente. Então, a expectativa era que ao fazer o tratamento preventivo
com a polipílula, a gente reduziria metade dos eventos cardiovasculares. Então,
a pesquisa nasce para trazer evidências científicas para verificar essa
hipótese.”
Além
da administração da polipílula, parte dos participantes da pesquisa clínica têm
acesso também a um aplicativo apelidado de “riscômetro”. A plataforma
identifica, a partir de respostas sobre estilo de vida fornecidas pela pessoa,
os fatores de risco atuais e sugere estratégias para modificá-los. Além disso,
ela dispara lembretes para a realização de atividades físicas e atualizações, e
permite que o usuário acompanhe o progresso a longo prazo.
“Quando
comparamos os grupos, o que teve os melhores resultados foi o que utilizou a
polipílula com o riscômetro. E é algo fantástico, porque a gente queria
entender se vale a pena recomendar um aplicativo para esse tipo de
acompanhamento, e a resposta foi super válida. E além da redução da pressão
arterial, identificamos também a redução do colesterol em 40mm, então há um
potencial enorme demonstrado já nos resultados preliminares”, compartilha
Martins.
<<<
Respostas a longo prazo e diálogo com órgãos reguladores
Mas
ainda há lacunas a serem preenchidas em termos de evidências científicas,
principalmente no que diz respeito a evidências de longo prazo, como salienta
uma revisão publicada no jornal Current Cardiology Report em 2017, que analisou
as potências e limitações da estratégia. Além da preocupação com as limitações
no ajuste de doses, há um debate ético sobre o excesso de medicalização, uma
vez que ainda não é consenso se a polipílula seria recomendada para a população
geral ou apenas para populações-alvos, como aqueles no limiar do padrão
estabelecido para pressão alta, como mencionado por Martins. A própria
recomendação inicial da idade de administração, estabelecida em 55 anos por Law
e Ward, ainda é controversa entre a comunidade científica.
Outra
preocupação é a questão de eventos adversos, como hemorragias, e mortalidade,
cuja revisão aponta não existir evidências suficientes para os desfechos a
longo prazo. Das nove polipílulas avaliadas para uso clínico ou em estágio de
pesquisa, apenas quatro contavam com follow-up de um ano ou mais, e apenas um
ultrapassava um período de dois anos. Outro estudo, dessa vez de meta-análise,
publicado na Cureus Journal of Medicine, analisou seis pesquisas clínicas com a
polipílula, e identificou que o período de follow-up variou de nome meses a
cinco anos.
A
adoção nos consultórios também depende de maior informação para prescrição das
polipílulas para aqueles pacientes que já se encontram em uso de outros
fármacos ou apresentam comorbidades – demanda que pode ser trabalhada a partir
dos dados de vida real. O uso da Aspirina como um dos componentes presentes na
combinação é alvo de debate, e foi adereçado em um estudo randomizado publicado
na The New England Journal of Medicine em 2020.
E
para além dos critérios clínicos e desfechos, há ainda necessidade de expandir,
juntamente aos órgãos de regulamentação como Food and Drugs Administration
(FDA) e ANVISA, os critérios regulatórios para drogas que combinam três ou mais
substâncias ativas – o desafio, identificado ainda em 2006 em publicação no
European Journal of Heart, ainda não teve uma resposta satisfatória. Autores de
diferentes estudos salientam que as definições do que são medicações combinadas
ainda é pobre, e é preciso aprofundar também os parâmetros de propriedade
intelectual para medicamentos desse nicho.
·
Implementação da polipílula ainda é desafio
Apesar
das dezenas de estudos com números impactantes e da recomendação da adoção das
polipílulas como política de saúde pública por organizações e federações
mundiais de saúde, a adesão da estratégia ainda esbarra em desafios que, de
acordo com Silva, vão desde questões técnicas até culturais.
A
jornada começa ainda no laboratório, com a necessidade de estabilizar as
moléculas utilizadas na medicação. O profissional destaca que, por se tratar de
diferentes classes medicamentosas em uma única plataforma, que atuam em
diferentes receptores, há o trabalho de compreender e analisar se a
estabilidade de todas as substâncias em uma única pílula é possível. Há ainda o
cuidado no ajuste da dosagem para que o efeito desejado seja alcançado – já que
a ideia é que o tratamento seja feito com apenas uma dose diária.
A
captação de recursos para o financiamento das pesquisas e a produção das
polipílulas também são desafiadores, porque a abordagem ainda não é palatável
para as grandes farmacêuticas. Por esse motivo, o pesquisador do Hcor explica
que muitas das pesquisas são subsidiadas por recursos públicos, mas encontram
barreiras na etapa de produção em larga escala e inserção no mercado:
“Não
dá para desconsiderar o ponto de vista mercadológico. Já temos medicações
consagradas, que tratam cada uma na sua área. Então, acabamos esperando pelo
financiamento de entidades públicas, por parceiros dispostos a financiar uma
pesquisa nessa linha, para suprir essa necessidade de mercado. Já existem
inclusive estudos de custo-efetividade em outros países que mostram os
benefícios da polipílula. Um deles, realizado no Alabama (EUA), feito com
pessoas de baixa renda, analisou o uso dessa abordagem e o resultado mostrou um
risco cardiovascular reduzido a um preço muito baixo, ou seja, justamente o que
a gente quer, um acesso mais amplo à saúde a um preço justo.”
Em
publicação na revista The Lancet Neurology, Sheila Martins defendeu a adoção da
polipílula como estratégia de acesso à saúde prioritária em países em
desenvolvimento e de renda baixa. “Em países onde a maioria das pessoas vive
com US$5,50 dólares por dia ou menos – ou seja, quase metade da população
mundial –, a polipílula poderia ser a única solução farmacológica tangível para
reduzir o fardo das doenças cardiovasculares. É urgente incluir a polipílula
nas listas modelo de medicamentos essenciais da OMS para reduzir a carga global
de acidentes vasculares cerebrais e doenças cardiovasculares”, apontou a
presidente da Organização Mundial do AVC.
Abrir
espaço para uma nova abordagem das doenças crônicas não transmissíveis na
cultura de prática clínica, já bem estabelecida como destacado pelos
especialistas, também é uma tarefa árdua e de longo prazo. Silva e Martins
concordam que parte da resistência se deve à impossibilidade de adaptação das
doses disponíveis nas polipílulas anteriores. Essa foi uma das limitações
identificadas e contempladas no projeto encabeçado pelo Moinhos.
“Alguns
médicos especialistas não gostam da ideia de um remédio com as doses fixas, um
dos conceitos da polipílula. Porque ao invés de ficar ditando, aumenta um pouco
esse, abaixa um pouco aquele, temos uma combinação fixa com esses medicamentos,
e mudar essa dosagem na polipílula não é tão simples. Mas já há opções, no
nosso estudo mesmo nós tínhamos a opção de usar uma polipílula com diferentes
dosagens, a depender da resposta do paciente. Se a gente pensar isso em termos
de saúde pública no Brasil, em que tenho essa medicação combinada para cada
nível de pressão, é mais fácil para garantir que todos os pacientes façam o
tratamento, porque há muita inércia terapêutica, a gente perde uma janela de
oportunidade e isso não pode acontecer”, argumenta Martins.
·
De olho no futuro
Para
o futuro, a necessidade de aumentar as pesquisas sobre o custo-efetividade das
polipílulas deve entrar no radar das estratégias de prevenção das doenças
crônicas não transmissíveis. O foco ainda é na modificação dos fatores de risco
modificáveis, com políticas de promoção de um estilo de vida mais saudável, mas
agora com um forte aliado – com potencial já evidenciado nos registros
científicos e chancelado pelas grandes instituições de saúde ao redor do mundo.
“Sempre
falo que o cuidado do coração é uma maratona, não é uma corrida de 100 metros.
O que precisamos é achar uma maneira de fazer a população entender a
importância de fazer hoje algo que pode não provocar um benefício imediato, mas
daqui a 30 anos, quando as pessoas não infartarem, elas vão entender que valeu
a pena a adoção de um estilo de vida mais saudável”, pontua Silva.
Fonte:
Futuro da Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário