segunda-feira, 22 de abril de 2024

Estratégia baseada em polipílulas pode ser saída para acesso e adesão no combate às doenças cardiovasculares

Uma nova alternativa no combate e prevenção de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), com foco nas doenças cardiovasculares, pode estar mais perto do que nunca. Os recentes avanços da medicina têm reinventado áreas como genética, oncologia e bioengenharia, mas uma tecnologia relativamente antiga é quem pode liderar o futuro das DCNTs: a polipílula.

A existência de pílulas que combinam mais de uma substância ativa data de muitas décadas. Medicamentos usados no controle da hipertensão ou do HIV, por exemplo, seguem essa lógica. A polipílula, porém, segue outro conceito: a combinação de substâncias que não pertencem à mesma classe, mas têm efeitos sinergéticos. Ou seja, que apontam para os mesmos benefícios, neste caso, da saúde cardiovascular.

O conceito foi apresentado ao mundo em 2003 pelos médicos Nicholas John Wald e Malcolm Law, ambos especialistas em medicina preventiva. Ao realizar um estudo de meta-análise, Wald e Law identificaram que a combinação de estatinas, drogas usadas para abaixar a pressão arterial, ácido fólico e aspirina, resultou numa redução de 88% dos eventos de doença arterial coronariana e de 80% dos eventos de acidente vascular cerebral (AVC). Além disso, estimaram que um terço das pessoas que tomassem a medicação a partir dos 55 anos poderiam ganhar, em média, 11 anos de vida livres de tais eventos.

Além dos benefícios na redução dos riscos cardiovasculares por si só, a nova abordagem traz consigo outros pontos positivos, como a menor incidência de efeitos colaterais e a facilitação da adesão ao tratamento, um dos principais empecilhos no combate às doenças crônicas atualmente.

“Uma das maiores dificuldades no controle desse grupo de doenças é a adesão a longo prazo”, analisa Erlon Oliveira de Abreu Silva, cardiologista clínico e pesquisador do Instituto de Pesquisa do Hcor. “Quando a gente simplifica o tratamento medicamentoso, saindo de quatro, cinco medicamentos diários para um comprimido uma vez por dia, damos um passo muito grande em direção a uma melhora de adesão. Não é algo baseado apenas em opinião, é algo já defendido por órgãos internacionais como a Federação Mundial do Coração”.

Evidências são positivas

Doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) são as principais responsáveis por óbitos no mundo: aproximadamente 17 milhões de pessoas morrem prematuramente por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – número que pode saltar para 150 milhões nos próximos anos caso não sejam tomadas ações em relação ao cenário atual. Os desafios de enfrentamento são muitos, uma vez que a incidência das DCNTs está intimamente ligada aos fatores de risco modificáveis: hábitos alimentares, prática de atividades físicas, tabagismo e consumo de bebidas alcóolicas. Tais fatores, por sua vez, estão associados à realidade socioeconômica de um indivíduo e o resultado dessa equação é que a taxa de incidência de doenças crônicas tem disparado nos países em desenvolvimento, um problema e tanto para o sistema de saúde.

Diante do potencial de impacto na saúde global a um custo relativamente baixo, as pesquisas sobre a abordagem da polipílula se multiplicaram nos últimos 20 anos. Especialistas da Federação Mundial do Coração publicaram um comentário analítico em 2022 na revista The Lancet em que salientaram que, em um cenário de adesão mínima de 50% da população com 55 anos ou mais, é possível reduzir 2 milhões de mortes por doenças cardiovasculares por ano, e de 4 milhões de eventos cardíacos.

O Brasil também tem um histórico com as pesquisas focadas na eficácia das polipílulas. O primeiro projeto que contou com a participação do país aconteceu ainda em 2011, quando o Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital do Coração (IPE-Hcor), ao lado de outros seis países, avaliou a administração de um comprimido que combinava quatro medicamentos na redução de risco cardiovascular moderado, da pressão arterial e do colesterol. Segundo o então diretor do IEP HCor e coordenador da pesquisa no Brasil, Otávio Berwange, todos os países colaboradores observaram uma redução de 60% no risco de a pessoa sofrer um derrame ou infarto no futuro, além da redução na pressão arterial e no colesterol.

“Foi um estudo com base no que chamamos de prevenção primária, que é aquela focada em pessoas que ainda não desenvolveram uma doença cardiovascular. O estudo foi breve, feito com 378 pessoas com um risco cardiovascular intermediário, acompanhadas por um período de 12 semanas. Os resultados foram positivos, e mostraram que o grupo que utilizou a polipílula teve uma redução significativa do nível de pressão e do nível LDL de colesterol, bastante promissor. E é um resultado que foi repetido em outros cenários, com outros grupos de pesquisa mundo afora”, afirma Erlon Oliveira de Abreu Silva.

Em 2020, uma nova pesquisa sobre o uso de polipílula foi iniciada. Dessa vez, a parceria foi realizada entre o Hospital Moinhos do Vento e o Ministério da Saúde, através do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), e tem como objetivo avaliar se o uso de uma polipílula com a combinação de medicamentos para controlar a pressão e o colesterol, isolada ou associada à modificação do estilo de vida, é capaz de reduzir o número de casos de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a taxa de declínio cognitivo em pessoas de 50 a 75 anos com baixo a moderado risco de doenças cardiovasculares.

Os resultados da primeira fase do projeto responsável pela primeira pílula desenvolvida no Brasil, intitulado “PROMOTE”, são animadores. Segundo Sheila Martins, responsável técnica do projeto e chefe do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia do Hospital Moinhos de Vento, todos os participantes que receberam a polipílula tiveram redução da pressão arterial em cerca de 13 mmHg na pressão sistólica e 6 mmHg na diastólica. Comparado ao uso do placebo, houve uma diferença de 7mmHg entre os dois grupos, sendo já evidenciado em estudos clínicos anteriores a redução de 2mmHg da pressão arterial, reduzindo em 10% o risco de AVC.

Prevenção combinada

A pesquisadora, que também é presidente da Organização Mundial de Acidente Vascular Cerebral (WSO, na sigla em inglês), conta que a ideia de realizar a pesquisa surgiu muito antes, justamente pela necessidade de contribuir com evidências científicas para o debate sobre a prevenção de eventos cardiovasculares. Ela explica que, pela literatura, já se sabe que a pressão alta é um fator de risco para AVC, infarto e outras condições de mesma natureza, e para esse cenário já existem protocolos bem definidos. Mas, para a parcela da população com a pressão na faixa de 120 a 139, que ainda não se configura como hipertensão, a abordagem recomendada ainda se concentra muito na modificação dos fatores relacionados ao estilo de vida, muitas vezes de difícil adesão.

Martins destaca que é justamente essa população que, ao somar pelo menos um fator de risco de estilo de vida – como tabagismo ou obesidade –, representa 80% dos casos de AVC: “Se a gente olhar na comunidade geral, 80% têm baixo ou médio risco cardiovascular, e não estamos prevenindo essa parcela da população adequadamente. Então, a expectativa era que ao fazer o tratamento preventivo com a polipílula, a gente reduziria metade dos eventos cardiovasculares. Então, a pesquisa nasce para trazer evidências científicas para verificar essa hipótese.”

Além da administração da polipílula, parte dos participantes da pesquisa clínica têm acesso também a um aplicativo apelidado de “riscômetro”. A plataforma identifica, a partir de respostas sobre estilo de vida fornecidas pela pessoa, os fatores de risco atuais e sugere estratégias para modificá-los. Além disso, ela dispara lembretes para a realização de atividades físicas e atualizações, e permite que o usuário acompanhe o progresso a longo prazo.

“Quando comparamos os grupos, o que teve os melhores resultados foi o que utilizou a polipílula com o riscômetro. E é algo fantástico, porque a gente queria entender se vale a pena recomendar um aplicativo para esse tipo de acompanhamento, e a resposta foi super válida. E além da redução da pressão arterial, identificamos também a redução do colesterol em 40mm, então há um potencial enorme demonstrado já nos resultados preliminares”, compartilha Martins.

<<< Respostas a longo prazo e diálogo com órgãos reguladores

Mas ainda há lacunas a serem preenchidas em termos de evidências científicas, principalmente no que diz respeito a evidências de longo prazo, como salienta uma revisão publicada no jornal Current Cardiology Report em 2017, que analisou as potências e limitações da estratégia. Além da preocupação com as limitações no ajuste de doses, há um debate ético sobre o excesso de medicalização, uma vez que ainda não é consenso se a polipílula seria recomendada para a população geral ou apenas para populações-alvos, como aqueles no limiar do padrão estabelecido para pressão alta, como mencionado por Martins. A própria recomendação inicial da idade de administração, estabelecida em 55 anos por Law e Ward, ainda é controversa entre a comunidade científica.

Outra preocupação é a questão de eventos adversos, como hemorragias, e mortalidade, cuja revisão aponta não existir evidências suficientes para os desfechos a longo prazo. Das nove polipílulas avaliadas para uso clínico ou em estágio de pesquisa, apenas quatro contavam com follow-up de um ano ou mais, e apenas um ultrapassava um período de dois anos. Outro estudo, dessa vez de meta-análise, publicado na Cureus Journal of Medicine, analisou seis pesquisas clínicas com a polipílula, e identificou que o período de follow-up variou de nome meses a cinco anos.

A adoção nos consultórios também depende de maior informação para prescrição das polipílulas para aqueles pacientes que já se encontram em uso de outros fármacos ou apresentam comorbidades – demanda que pode ser trabalhada a partir dos dados de vida real. O uso da Aspirina como um dos componentes presentes na combinação é alvo de debate, e foi adereçado em um estudo randomizado publicado na The New England Journal of Medicine em 2020.

E para além dos critérios clínicos e desfechos, há ainda necessidade de expandir, juntamente aos órgãos de regulamentação como Food and Drugs Administration (FDA) e ANVISA, os critérios regulatórios para drogas que combinam três ou mais substâncias ativas – o desafio, identificado ainda em 2006 em publicação no European Journal of Heart, ainda não teve uma resposta satisfatória. Autores de diferentes estudos salientam que as definições do que são medicações combinadas ainda é pobre, e é preciso aprofundar também os parâmetros de propriedade intelectual para medicamentos desse nicho.

·        Implementação da polipílula ainda é desafio

Apesar das dezenas de estudos com números impactantes e da recomendação da adoção das polipílulas como política de saúde pública por organizações e federações mundiais de saúde, a adesão da estratégia ainda esbarra em desafios que, de acordo com Silva, vão desde questões técnicas até culturais.

A jornada começa ainda no laboratório, com a necessidade de estabilizar as moléculas utilizadas na medicação. O profissional destaca que, por se tratar de diferentes classes medicamentosas em uma única plataforma, que atuam em diferentes receptores, há o trabalho de compreender e analisar se a estabilidade de todas as substâncias em uma única pílula é possível. Há ainda o cuidado no ajuste da dosagem para que o efeito desejado seja alcançado – já que a ideia é que o tratamento seja feito com apenas uma dose diária.

A captação de recursos para o financiamento das pesquisas e a produção das polipílulas também são desafiadores, porque a abordagem ainda não é palatável para as grandes farmacêuticas. Por esse motivo, o pesquisador do Hcor explica que muitas das pesquisas são subsidiadas por recursos públicos, mas encontram barreiras na etapa de produção em larga escala e inserção no mercado:

“Não dá para desconsiderar o ponto de vista mercadológico. Já temos medicações consagradas, que tratam cada uma na sua área. Então, acabamos esperando pelo financiamento de entidades públicas, por parceiros dispostos a financiar uma pesquisa nessa linha, para suprir essa necessidade de mercado. Já existem inclusive estudos de custo-efetividade em outros países que mostram os benefícios da polipílula. Um deles, realizado no Alabama (EUA), feito com pessoas de baixa renda, analisou o uso dessa abordagem e o resultado mostrou um risco cardiovascular reduzido a um preço muito baixo, ou seja, justamente o que a gente quer, um acesso mais amplo à saúde a um preço justo.”

Em publicação na revista The Lancet Neurology, Sheila Martins defendeu a adoção da polipílula como estratégia de acesso à saúde prioritária em países em desenvolvimento e de renda baixa. “Em países onde a maioria das pessoas vive com US$5,50 dólares por dia ou menos – ou seja, quase metade da população mundial –, a polipílula poderia ser a única solução farmacológica tangível para reduzir o fardo das doenças cardiovasculares. É urgente incluir a polipílula nas listas modelo de medicamentos essenciais da OMS para reduzir a carga global de acidentes vasculares cerebrais e doenças cardiovasculares”, apontou a presidente da Organização Mundial do AVC.

Abrir espaço para uma nova abordagem das doenças crônicas não transmissíveis na cultura de prática clínica, já bem estabelecida como destacado pelos especialistas, também é uma tarefa árdua e de longo prazo. Silva e Martins concordam que parte da resistência se deve à impossibilidade de adaptação das doses disponíveis nas polipílulas anteriores. Essa foi uma das limitações identificadas e contempladas no projeto encabeçado pelo Moinhos.

“Alguns médicos especialistas não gostam da ideia de um remédio com as doses fixas, um dos conceitos da polipílula. Porque ao invés de ficar ditando, aumenta um pouco esse, abaixa um pouco aquele, temos uma combinação fixa com esses medicamentos, e mudar essa dosagem na polipílula não é tão simples. Mas já há opções, no nosso estudo mesmo nós tínhamos a opção de usar uma polipílula com diferentes dosagens, a depender da resposta do paciente. Se a gente pensar isso em termos de saúde pública no Brasil, em que tenho essa medicação combinada para cada nível de pressão, é mais fácil para garantir que todos os pacientes façam o tratamento, porque há muita inércia terapêutica, a gente perde uma janela de oportunidade e isso não pode acontecer”, argumenta Martins.

·        De olho no futuro

Para o futuro, a necessidade de aumentar as pesquisas sobre o custo-efetividade das polipílulas deve entrar no radar das estratégias de prevenção das doenças crônicas não transmissíveis. O foco ainda é na modificação dos fatores de risco modificáveis, com políticas de promoção de um estilo de vida mais saudável, mas agora com um forte aliado – com potencial já evidenciado nos registros científicos e chancelado pelas grandes instituições de saúde ao redor do mundo.

“Sempre falo que o cuidado do coração é uma maratona, não é uma corrida de 100 metros. O que precisamos é achar uma maneira de fazer a população entender a importância de fazer hoje algo que pode não provocar um benefício imediato, mas daqui a 30 anos, quando as pessoas não infartarem, elas vão entender que valeu a pena a adoção de um estilo de vida mais saudável”, pontua Silva.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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