Teologias de rama num mundo caótico!
“Cuidado com essas
teologias de rama”, nos dizia um professor de teologia ainda na década de 70.
Ele nos alertava sobre essas teologias que fundamentam os movimentos católicos
que costumam aparecer vez em quando. Referia-se a teologias desorganizadas, baseadas
em textos bíblicos isolados, sem uma hermenêutica segura, sem exegese, com
espiritualidades delirantes, distantes dos empobrecidos, mas que movimentam
grupos por determinado tempo e depois desaparecem.
Hoje, quando vemos
tantas teologias como a da Prosperidade, ou do Domínio, ou do Arrebatamento, me
recordo das teologias de rama. Agora elas não estão somente nos grupos
católicos fundamentalistas, mas também nos meios evangélicos. É até
interessante ver alguns vídeos com pastores subindo literalmente em pilastras,
ou no altar, ou dando bicuda na cara do cão, ou dançando um forró amuado com
sapato de fogo. Primeiro, se fosse num terreiro de candomblé, iriam dizer que
era uma possessão demoníaca. Como acontece em templos evangélicos, é obra do
Espírito Santo. A mesma realidade nesses grupos católicos oracionais que
desmaiam diante do Santíssimo, falam de forma exaltada, claramente momentos de
transe religioso que cada um atribui a quem quiser conforme seus interesses.
A teologia do Domínio
é uma dessas teologias de rama, mas que não pode ser desprezada. Ela visa
ocupar os cargos no Executivo, no Judiciário e Legislativo, em todos os níveis.
Busca controlar a educação, a cultura e a comunicação. Ocupa os conselhos e, sobretudo,
as redes sociais. Não tem vergonha e nem escrúpulo em buscar o poder e impor ao
restante da sociedade seu viés autoritário. É a ideologia perfeita da extrema
direita no acesso ao controle da consciência dos mais frágeis e necessitados.
O capital é
inteligente, ninguém pode negar. Você não vai ver um farialimer subindo pelas
paredes num templo evangélico, ou num grupo exaltado de católicos, mas vai ver
pastores e padres convencendo suas comunidades que essa ideologia é vontade de
Deus. Enfim, onde a ideologia doutrinal da extrema direita não pode chegar, a
religião pode. Como dizia a inteligência dos Estados Unidos ainda na era
Reagan: “religião se combate com religião, não com política”. Enfim, essa
religião alimenta a extrema-direita nos meios mais pobres, o que a ideologia
neoliberal não sabe fazer e não sabe como chegar.
Como já disse o Papa
Francisco, “a direita é centrípeta”, isto é, gira ao redor de si mesma e não
enxerga o resto do mundo. Num mundo caótico e cada vez mais líquido e inseguro,
essas teologias têm muito espaço para crescer e influenciar as pessoas que buscam
alguma forma de segurança. Quando uma se esgotar, surge outra no seu lugar. E
sempre haverá fiéis para segui-las! Mas, é útil ajudar o povo a pensar um pouco
sobre essa realidade!
Ler a Bíblia de forma fundamentalista é
perigoso, gera ilusão. Por frei Gilvander Moreira
Quem lê e interpreta
textos bíblicos de forma fundamentalista lê e entende a Bíblia ao pé da letra,
do jeito que está escrito e não pode ser levado em conta a época, a forma e o
gênero literário, nem o contexto, a finalidade para o qual foi escrito o texto,
seu significado e simbolismo. O desconhecimento das formas e dos gêneros
literários pode levar o/a leitor/a a ter uma compreensão errônea dos textos
bíblicos e a não apreender a verdadeira mensagem contida, tanto no Primeiro
quanto no Segundo Testamento bíblico.
Ensinamentos nos foram
transmitidos por meio dos escritos conhecidos como: históricos, proféticos,
poéticos, sapienciais, legislativos e apocalípticos. Mas, é preciso que o/a
leitor/a busque o significado que os/as autores/as, em determinada circunstância,
na sua cultura, com as formas e os gêneros literários em uso na época, queriam
expressar e, de fato, se expressaram. Desconsiderar as formas e os gêneros
literários leva à projeção das nossas concepções preconcebidas sobre os textos
bíblicos, o que resulta em leitura fundamentalista. Quem, por exemplo, desconsidera os gêneros
literários, ao ler o Evangelho de Marcos, onde diz “o véu do templo se rompeu”
(Mc 15,38) entende apenas como um pano se rasgando. Ou ao ler Apocalipse 21,3
onde diz: “Deus armou sua tenda entre nós”, conclui apenas que Deus como pessoa
está entre nós. Entretanto, considerando os gêneros literários, podemos dizer
que pelo ensinamento e práxis de Jesus Cristo condenado à pena de morte pelos
poderes político, econômico e religioso opressores, o “véu do templo se rompeu”
e não há mais separação entre o céu e a terra, o divino está no humano, Deus
habita no ser humano e em todos os seres vivos. “Deus armou sua tenda entre
nós”, diz o livro do Apocalipse da Bíblia (Ap 21,3). Deus não apenas está entre
nós, mas está em nós, no próximo e primordialmente no outro que é oprimido e
explorado. O evangelista Marcos e o autor do Apocalipse queriam superar todos
os dualismos e separações que a cultura ocidental inoculou nas pessoas com o
objetivo de retirar a dimensão de sacralidade de cada pessoa e abrir espaço
para violentar o ser humano, após retirar dele a dimensão divina.
O Documento da
Pontifícia Comissão Bíblica Interpretação da Bíblia na Igreja faz uma análise
de muitos métodos de interpretação bíblica. Entretanto, o único método
rechaçado com veemência é a leitura fundamentalista da Bíblia. Segundo esse Documento da Igreja, a leitura
fundamentalista é perigosa, porque sufoca e inibe o pensamento. “A abordagem
fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram
propostas bíblicas para os seus problemas da vida. Ela pode enganá-las
oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas, ilusórias, ao invés de lhes dizer
que a Bíblia não contém necessariamente, uma resposta imediata a cada um desses
problemas. A leitura fundamentalista convida, sem dizê-lo, a uma forma de
suicídio do pensamento. Ela coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde,
inconscientemente, as limitações humanas da mensagem bíblica, com a substância
divina dessa mensagem.”
Quando uma pessoa diz:
“a Bíblia não deve ser interpretada, mas apenas colocada em prática”,
inconscientemente, essa pessoa está fazendo leitura fundamentalista. É verdade
que a Palavra de Deus não está só contida na Bíblia, mas ela é uma das formas
da revelação de Deus para o povo oprimido e escravizado que acredita no Deus da
vida. A palavra de Deus está na Bíblia, mas também está presente na vida, na
criação, no outro, prioritariamente a partir do outro que é oprimido e
injustiçado, e, se manifesta plenamente no seu Filho Jesus, cujos ensinamentos
e práxis estão na Bíblia. Como não são sensatas as interpretações aleatórias,
ingênuas e nem fundamentalistas, necessário se faz compreender os textos
bíblicos em uma leitura libertadora.
A leitura libertadora
dos textos bíblicos consiste em interpretação comunitária, aberta ao outro,
dinâmica, ecumênica e interreligiosa, geradora de vida, transformadora e
multifacetária. A leitura libertadora leva em conta as formas e os gêneros
literários, o contexto histórico, social econômico, cultural e religioso da
época em que nasceram os escritos bíblicos. Daí a importância do estudo da
Bíblia, também nas suas Formas e Gêneros Literários. Para uma boa compreensão
da Bíblia é fundamental reconhecer e identificar os gêneros literários dos
textos bíblicos.
Pessoas habituadas ao
estudo da Bíblia entendem que as formas e os gêneros literários são maneiras de
comunicação oral e escrita, usados pelos autores e autoras da Bíblia, para
expressar o seu pensamento e a sua mensagem. A escolha da forma ou do gênero que
os autores e autoras da Bíblia usaram dependeu de vários fatores, entre os
quais, o conteúdo, o ambiente do/a autor/a, aquilo que ele/ela deseja
comunicar, o povo destinatário que recebeu o anúncio. Deus quis se comunicar
com o ser humano para revelar a sua mensagem, no seu imenso amor pelas suas
criaturas. O/a autor/a muitas vezes se serviu de livros, textos que nasceram
fora da história dos povos da Bíblia, mas foram introduzidos nela, como o livro
de Jó, a narrativa do dilúvio… Outros sofreram influências de diferentes povos
e culturas, com os quais conviviam e dos povos circunvizinhos, tais como, os
sumério-acádicos, cananeus, egípcios, helenistas, romanos, amorreus, hititas,
entre outros.
Esses povos tinham
suas divindades, a quem dedicavam hinos e salmos na forma épico-mítica, por
meio dos quais, descreviam também suas características, confiavam suas batalhas
e atribuíam suas conquistas. Muitos desses textos influenciaram os escritos bíblicos,
como, por exemplo, o Salmo 104 teve sua inspiração no hino dedicado à divindade
Aton, deus egípcio. As narrativas da criação em Gênesis 1,1-2,4a e 2,4b-7
sofreram influência do hino a Enuma Elish, mito babilônico da criação; a
narrativa do dilúvio bíblico, do poema de Gilgamesh, mitos existentes na
cultura acádica e babilônica que serviram de inspiração para os povos da
Bíblia. No livro de Gênesis, os relatos da Criação estão em uma linguagem
simbólica e podem ser considerados contramitos, isto é, mitos usados para
“explicar” as origens e responder a mitos mistificantes dos povos vizinhos.
Mito não é algo que não existe. Trata-se de uma tentativa de explicar o difícil
de ser explicado. Por isso usa uma linguagem simbólica.
“No início (bereshit,
em hebraico) criou Deus …” (Gen 1,1a). Assim abre-se a Bíblia. Normalmente se
entende a primeira palavra da Bíblia de forma temporal, cronológica, como se
tivesse tido um início a partir do nada e em tal data. Essa interpretação tem
alimentado um conflito artificial entre Criação e Evolução. Darwin tem sido
satanizado, caluniado e incompreendido pelos adeptos da “teoria da criação”. A
questão não é criação ou evolução, mas criação na evolução. A palavra bereshit
(= no início) é difícil de ser traduzida, pois é “início, começo, cabeça”, mas
não no sentido temporal, cronológico. Trata-se de “início, começo” no sentido
qualitativo, no mais profundo das relações da teia da vida. Temos que trazer à
mente a distinção que os gregos fazem na ideia de tempo: chronos (tempo físico
quantitativo, sucessão dos fatos) e kairos (tempo qualitativo, o divino tocando
o humano, a graça contagiando tudo). O/a autor/a bíblico não quis estabelecer
uma oposição entre Criação e Evolução, pois falou de “início” no sentido de
algo profundamente qualificado tocando a evolução. A criação se dá na evolução.
O dedo de Deus toca tudo. Tudo está permeado e perpassado pela dimensão divina.
Evolução é a criação continuada, continuamente acontecendo.
Reflexões sobre as causas da crise
sistêmica. Por Leonardo Boff
Seguramente vigora um
complexo de causas que subjazem à atual crise sistêmica. Ela tomou todo o
planeta e nos colocou numa encruzilhada: ou seguimos o caminho inaugurado pela
modernidade a partir dos séculos XVII/ XVIII com o advento do espírito científico
que modificou a face da Terra e trouxe-nos incontáveis benefícios para a vida.
Mas ao mesmo tempo deu-se a si mesma os meios de sua autodestruição. Vamos mais
longe: a forma como decidimos habitar o planeta e organizar nossas sociedades
com custos altíssimos para os ecossistemas e para as relações sociais,
brutalmente desiguais, nos fizeram tocar nos limites da Terra.
A seguir esse
caminho,um abismo aterrador se apresenta à nossa frente. A Terra viva pode não
nos querer mais sobre sua superfície por sermos demasiadamente violentos e
destrutivos. Podemos sucumbir pelo antropoceno, pelo necreceno, pelo virusceno
e por fim pelo piroceno, ocasionados por nós mesmo e também pela reação da
própria Terra viva, ferida e vitalmente enfraquecida, que reage desta forma.
Ou então, num momento
de aguda consciência face ao possível desaparecimento da espécie, o ser humano
dê um salto quântico em seu nível de consciência, cai em si, dá-se conta de que
pode realmente chegar ao fim de sua aventura planetária e mudar, forçosamente e
definir um novo rumo.
Certamente não se fará
sem uma fenomenal crise que pode levar porções significativas da humanidade,
começando pelos mais vulneráveis, mas não poupando nem os mais apetrechados.
Assim ocorreu em tempos pré-históricos do planeta, nos quais até 70% da carga
biótica desapareceu definitivamente.
Qual será o rumo?
Estimo que nem sábios, nem cientistas nem mestres espirituais saibam apontar a
direção. A humanidade, agora unida pelo medo e pelo pavor, mais do que pelo
amor ao futuro, perceberá que poderá ter chegado ao fim do caminho andado.
Olhará ao redor e descobrirá uma senda a ser percorrida e construída pelo andar
de todos. “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” nos ensinou um
poeta desesperado espanhol, fugido da perseguição franquista. De dentro de
nossa essência humana teremos que tirar as inspirações e sonhos que nos
consolidam o novo caminho.
Vale a frase de Albert
Einstein: “a ideia que criou a crise atual não pode ser a mesma que nos vai
sair dela”. Temos que sonhar, criar, projetar utopias viáveis e abrir caminhos
novos. As ciências da vida nos confirmaram que somos seres de amor, de solidariedade,
de cuidado, apesar de uma sombra sempre nos acompanhar e que devemos colocá-la
sob vigilância.
Mas antes nos
interroguemos: por que chegamos a este ponto crítico global? Aqui mais que um
saber científico socorre-nos um pensamento filosofante. Entre outras causas,
considero duas fundamentais: a erosão da ética e a asfixia da espiritualidade.
Recuperemos o sentido
clássico de Ethos dos gregos, pois nos iluminam ainda hoje. Ethos escrito em
maiúsculo significa “a casa humana”. Vale dizer, separamos uma parte da
natureza, a trabalhamos de forma a ser o espaço de viver bem. A outra forma é o
ethos em minúsculo que são as formas como organizamos a casa para que nos
sintamos bem nela e possamos dar hospitalidade a quem nos visitar: enfeitar a
sala, colocar corretamente as mesas, cuidar da cozinha, alimentar o fogo sempre
aceso, manter a dispensa abastecida e os quartos decentemente arrumados. São as
virtudes éticas que dão concreção ao Ethos. Mas não só, pertence ao Ethos zelar
pelo entorno da casa, do jardim, de estátuas de divindades e de boa relação com
os vizinhos. Só assim o Ethos (viver bem) ganha forma concreta (ethos).
Hoje o Ethos é a Casa
Comum, o planeta Terra. Por séculos alimentou a humanidade. Mas com o advento
da ciência e da técnica temos explorados de forma ilimitada e irresponsável
seus bens e serviços de forma que hoje ultrapassamos sua capacidade suporte (the
earth overshoot), a assim chamada Sobrecarga da Terra. Ela é finita e não
suporta o projeto da modernidade de um crescimento infinito.
O Ethos (viver bem na
casa) e o ethos, as formas de organizá-la desestruturaram tudo o que é
importante para viver bem: poluímos as águas, sobrecarregamos os alimentos com
agrotóxicos, envenenamos os solos, contaminamos dos ares a ponto de afetar o
sistema da vida natural e da vida humana. Assistimos a erosão geral do Ethos,
do ethos e da ética. A Casa Comum deixa de ser comum, e é apropriada por elites
que detém terras, poder, dinheiro e a condução da política do mundo. Elas se
transformaram no Satã da Terra.
Tão grave quanto à
erosão do Ethos, do ethos e da ética em geral é a asfixia da espiritualidade
humana. Deixemos claro: espiritualidade não é sinônimo de religiosidade, embora
a religiosidade possa potenciar a espiritualidade. A espiritualidade nasce de outra
fonte: do profundo do ser humano. A espiritualidade é parte essencial do ser
humano, como a corporalidade, a psiqué, a inteligência, a vontade e a
afetividade.
Neurolinguistas, os
novos biólogos e eminentes cosmólogos como Brian Swimm, Bohm e outros
reconhecem que a espiritualidade é da essência humana. Somos naturalmente seres
espirituais, mesmo não sendo explicitamente religiosos. Essa porção espiritual
em nós se revela pela capacidade de solidariedade, de cooperação, de compaixão,
de comunhão e de uma total abertura ao outro, à natureza, ao universo, numa
palavra ao Infinito.
A espiritualidade faz
o ser humano intuir que por detrás de todas as coisas há uma Energia poderosa e
amorosa que tudo sustenta e a mantém aberta a novas formas no processo da
evolução. Alguns neurólogos identificaram um fenômeno excepcional. Sempre que se
abordam existencialmente o Sagrado, a experiência de pertença a um Todo maior
verifica-se numa parte do cérebro forte aceleração dos neurônios.
Eles, não os teólogos,
o chamaram de “ponto Deus no cérebro”. Como temos órgãos exteriores pelos quais
captamos a realidade circundante, temos um órgão interior que é nossa vantagem
evolutiva, de perceber aquele ser que faz ser todos os seres, aquela energia
misteriosa que penetra todos os seres e os vivifica.
Essa dimensão
espiritual de nossa natureza foi sufocada por nossa cultura que venera mais o
dinheiro que a natureza, o consumo individual que a repartição, que é mais
competitiva que cooperativa, prefere o uso da violência do que o diálogo para
resolver conflitos e criou a guerra nuclear e biológica como dissuasão, ameaça
e eventual utilização, o que significaria o fim do sistema-vida e do
sistema-humano. A violência e as guerras implicam a asfixia da espiritualidade,
intrínseca à nossa essência.
Atualmente o eclipse
da ética e a desativação da espiritualidade humana poderão levar-nos a
situações dramática, não excluindo tragicamente a extinção da espécie homo
depois de alguns milhões de anos, amados, nutridos pela Magna Mater que não
soubemos retribuir-lhe cuidado, reverência e amor.
Nem por isso
desesperamos. O universo guarda surpresas e o ser humano é um projeto infinito,
capaz de criar soluções para erros que ele mesmo cometeu.
Fonte: Por Roberto
Malvezzi (Gogó), em Outras Palavras/Combate Racismo Ambiental/A Terra é Redonda
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