Saúde mental ainda é pouco abordada nas
discussões sobre mudanças climáticas
Os impactos das
mudanças climáticas na saúde estão entrando de vez na pauta de governos e
instituições. Isso porque a previsão da Organização Mundial de Saúde é de que,
entre 2030 e 2050, as alterações no clima causem aproximadamente 250 mil mortes
e tragam custos adicionais de até 4 bilhões de dólares todos os anos aos
sistemas de saúde a partir do início da próxima década. Dentre os principais
pontos de atenção estão as doenças infecciosas – transmitidas por água,
alimentos e outros vetores – e doenças respiratórias, mas a entidade já lista a
saúde mental (em especial, com o aumento nas taxas de estresse e ansiedade)
como um tópico de preocupação. Conceitos como “eco-ansiedade” e “eco-estresse”,
portanto, devem se tornar mais frequentes e nortear cada vez mais debates daqui
para frente.
Em fevereiro deste
ano, por exemplo, a Nature Mental Health publicou um editorial dedicado ao tema
e salientou que, embora os termos não definam um transtorno psiquiátrico
específico, são usados para descrever respostas emocionais para este novo
cenário climático. Intitulado “Saúde mental climática – fazendo conexões”, o
texto destaca a necessidade de enfrentar o desafio a partir de uma abordagem
multidisciplinar para informar e moldar políticas públicas e iniciativas que
possam mitigar os efeitos negativos que as mudanças climáticas têm na saúde
mental da população global.
A psiquiatria
climática já conta com associações organizadas, como é o caso da Aliança de
Psiquiatria Climática, que convida a classe para se informar a respeito da
transversalidade entre saúde mental e clima e propõe debates com a sociedade
civil. Há também o grupo de geopsiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria
(WPS, na sigla em inglês), que estimula o desenvolvimento de pesquisas para
entender essa relação e oferecer evidências científicas que possam nortear
políticas públicas e estratégias de enfrentamento para o problema.
“É uma vertente que
tenta entender a cadeia causal dos transtornos mentais a partir dos
determinantes geográficos e geopolíticos”, explica João Mauricio
Castaldelli-Maia, professor de psiquiatria no Centro Universitário Faculdade de
Medicina do ABC (FMABC) e vice-presidente do grupo de pesquisa da WPS. “Estudos
sobre como os quadros de depressão se manifestam em países com invernos muito
rigorosos ou com verões muito quentes, por exemplo, já existem há muito tempo.
Porém, com as mudanças climáticas, temos um número cada vez maior de pessoas
vivenciando essas questões de forma extrema. São terremotos, enchentes, secas,
altas temperaturas, uma série de alterações que fazem intersecção também com a
psiquiatria social.”
·
Novo olhar psiquiátrico pelas lentes do
clima
Como explicou Maia,
estudos que analisam o impacto das condições climáticas sob quadros
psiquiátricos não são novidade. Artigos científicos já analisaram no passado o
tema por diversos ângulos, desde a relação entre transtornos mentais e ondas de
calor em Nova Iorque entre 1950 e 1984 , até a ligação entre quadros
depressivos e longos períodos de inverno – para este último caso, há até mesmo
uma definição própria: transtorno afetivo sazonal (TAS) descrito pela primeira
vez em 1984.
Ocorre que os novos
tempos trazem também novos cenários e fatores para serem analisados nos estudos
recentes. De acordo com Castaldelli-Maia, uma das questões centrais atualmente
é observar como a junção de desigualdade e econômica e social e desastres climáticos
intensificam o sofrimento psíquico de quem vive em situação de vulnerabilidade.
“Quem mora em uma área inadequada, como as encostas, vai sofrer muito mais no
período de chuvas intensas. Assim como quem não tem condições de adquirir um
ar-condicionado vai ser mais afetado pelas ondas de calor”, pontua.
Além disso, a
globalização, digitalização e maior discussão sobre saúde mental nas últimas
décadas também tem tornado o ambiente de pesquisa mais rico, com maior
possibilidade para coleta de dados de grandes populações. Nos últimos vinte
anos, por exemplo, houve um aumento nos estudos sobre os impactos psiquiátricos
das ondas de calor para eventos violentos e hospitalização nas emergências
psiquiátricas, assim como aumento de ansiedade e estresse naqueles indivíduos
obrigados a migrar em decorrência de desastres naturais – chamados de
refugiados climáticos.
“As novas pesquisas
estão mostrando esse sofrimento. Antes, tínhamos estudos que mostravam a
adaptação a situações climáticas em intervalos maiores, mas agora, estamos
falando em um contexto de um novo normal, um novo clima marcado por ondas de
calor, de frio, desastres, em um ritmo muito acelerado”, analisa Alfredo Maluf
Neto, psiquiatra no Hospital Israelita Albert Einstein.
Ele explica que nenhum
ser humano é orgânica e psicologicamente preparado para se adaptar a essas
transformações nesse ritmo e pontua que todas essas situações são traumáticas –
embora mais para alguns do que para outros.
“Do ponto de vista de estresse, é inegável que as pessoas ficam mais
apreensivas, se sentem ameaçadas e isso leva a uma configuração dos mecanismos
biológicos que vão ser alavancados como uma cascata e pode chegar a uma
situação patológica que afeta a capacidade e a cognição.”
Pesquisadores têm
ressaltado a prevalência desse fenômeno principalmente nas gerações mais
jovens. Em 2021, um grupo de autores entrevistou 10 mil crianças de dez países
– incluindo o Brasil – sobre o que elas pensavam e como se sentiam em relação
às mudanças climáticas: 59% dos entrevistados afirmaram estar muito ou
extremamente preocupados com este tópico. Mais de 45% afirmaram que os
sentimentos sobre o futuro afetam negativamente a sua vida cotidiana e
funcionamento, 75% deles acham o futuro assustador e 83% pensam que a população
falhou no cuidado do planeta.
“Para essas gerações
que estão crescendo agora, a demanda para se adaptar vai ser muito grande. E
isso em uma fase de desenvolvimento da vida que já é muito complexa”, diz o
psiquiatra do Einstein. “Os indivíduos que já têm mais suscetibilidade para
desenvolver transtornos mentais, aqueles que já vivem em situações mais
adversas, estarão submetidos ao que chamamos de fatores estressores que, a
depender dos mecanismos neurobiológicos envolvidos, podem resultar em um
adoecimento precoce.”
·
Ausência de estratégias de enfrentamento da
eco-ansiedade
Diante da iminente
crise climática, governos do mundo todo têm se preparado por meio da criação de
políticas públicas, estratégias de enfrentamento e planos de prevenção.
Entretanto, ainda são poucas as iniciativas que contemplam a necessidade de
atenção aos efeitos sobre a saúde mental da população.
No Brasil, o governo
atual criou a Secretaria Nacional da Mudança do Clima, que tem entre suas
competências coordenar a implementação, o monitoramento e a avaliação do Plano
Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, criado em 2016. A saúde é uma das 11
áreas listadas com metas específicas, que incluem ampliar o acesso e
monitoramento de qualidade da água para consumo e a criação de uma rede de
pesquisa sobre clima e saúde para ampliação do conhecimento técnico-científico.
Como parte dessa rede,
foi criado o Observatório Clima e Saúde, que reúne, entre outras informações,
114 indicadores associados ao impacto climático na água, no ar, nos vetores
(insetos e outros animais no ciclo de transmissão de agentes infecciosos ao homem
e aos animais domésticos) e nos eventos extremos – que passam também pelos
determinantes sociais. Mas não há nenhum indicador sobre saúde mental
relacionado.
Para Neto, ainda há
uma lacuna estrutural para lidar com os efeitos psicológicos dos eventos
climáticos, mesmo em situações de desastre. Ele ressalta que, mais do que ações
pontuais diante de um desastre natural, por exemplo, é preciso trabalhar na
promoção de saúde mental previamente como parte da estratégia de saúde pública,
além do acompanhamento após o evento traumático.
“Precisamos ter uma
rede de pessoas capacitadas para lidar com essas situações de desastres. Na
pandemia, os governos foram obrigados a olhar para a saúde mental, assim como
as empresas e outros setores da sociedade. Recentemente, tivemos enchentes no
litoral de São Paulo. Passado o primeiro suporte, como está a saúde mental
daquelas pessoas depois de toda aquela tragédia?”, questiona.
Em 2020, pesquisadores
publicaram na Front Psychiatry um estudo piloto aberto de intervenção
psicossocial para sobreviventes de desastres. A ideia era testar um modelo que,
futuramente, pudesse ser estabelecido como padrão internacional no manejo do
sofrimento psíquico e problemas de ajustamento enfrentados por populações que
vivenciaram traumas dessa natureza. A amostragem foi pequena, com a
participação de 15 sobreviventes de incêndios florestais na Austrália, mas os
resultados positivos reforçam o potencial de ferramentas de acompanhamento.
·
Futuro pede olhar para além dos desastres
naturais
Por outro lado, as
iniciativas de acolhimento psicológico para eventos extremos que não
necessariamente cumprem os critérios de desastres naturais, como as ondas de
calor ou frio extremo, ainda são limitadas. Neste contexto, em 2020 a
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) lançou um guia para profissionais de
saúde sobre a relação entre mudança climática e seu impacto em diferentes
grupos de doenças, listando as ações necessárias diante de cada uma. O
documento salienta que ainda há lacunas na literatura científica no que diz
respeito à relação entre mudanças climáticas e transtornos de saúde mental e os
medicamentos utilizados nos tratamentos – um chamado para que a comunidade
científica una esforços para buscar as respostas para essas questões.
Neto reforça que,
embora o caminho seja longo, é preciso começar a olhar para as novas
necessidades de saúde mental a partir de uma perspectiva de políticas públicas
que passa por educação, adaptação das cidades, prevenção e acolhimento.
“Primeiro, é preciso
trazer informação. Sinalizar os impactos que esse cenário de mudanças
climáticas pode ter na saúde mental das pessoas. Segundo, precisamos trabalhar,
na medida do possível, com a mitigação desses eventos, por meio de ações de
preservação do meio ambiente. Por fim, é preciso capacitar os profissionais de
saúde no geral, que estarão na linha de frente do contato com a população, seja
nos locais de desastres ambientais, seja nas unidades de saúde. Não é algo
difícil, é algo que pode ser feito a partir de uma mobilização que inclua as
áreas de saúde, meio ambiente e educação”, completa.
Fonte: Futuro da Saúde
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