sexta-feira, 26 de abril de 2024

Revolução dos Cravos: o campo de concentração usado pela ditadura salazarista contra adversários do regime

Edmundo Pedro (1918-2018), entrou no campo de concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, com 17 anos.

Ele fez parte do primeiro grupo de presos que foi construir o campo, que naquela altura tinha pouco mais do que tendas. Era outubro de 1936.

Edmundo Pedro tinha sido preso oito meses antes por liderar a Juventude do Partido Comunista e embarcou para Tarrafal sem saber bem para onde ia.

Ao lado viajava o seu pai, Gabriel Pedro, também opositor ao governo. Nenhum dos dois sabia, naquele momento, quanto tempo iam passar no exílio. Só voltaram 10 anos depois.

A Colônia Penal de Cabo Verde, nome oficial do campo do Tarrafal, foi criada em abril de 1936, no contexto de vários protestos sociais que tinham começado em 1934, com a greve geral de 18 de janeiro, que deram origem a várias detenções em Portugal.

O regime criou um campo de concentração numa das suas colônias e deportou os presos que considerava mais perigosos ideologicamente para lá.

"A primeira fase do campo acolheu majoritariamente os presos políticos que se opuseram ao regime: anarco-sindicalistas, comunistas e socialistas", explica a historiadora Isabel Flunser Pimentel.

"Parecia-se com os campos, não de extermínio, mas de concentração que existiam na Alemanha nazista ou na Espanha de Franco. O objetivo não era matar os prisioneiros, mas sim neutralizá-los, colocá-los tão longe quanto possível e deixá-los morrer", completa ela.

Inicialmente tratava-se de apenas um campo com tendas de lona. "Foram os próprios presos, em regime de trabalhos forçados, que construíram depois os diferentes barracões", diz Nélida Brito, professora de História Contemporânea na Universidade de Cabo Verde.

Por ali passaram 340 presos, todos portugueses, naquela que ficou conhecida como a "primeira fase" do campo.

As condições eram terríveis: aos maus tratos e espancamentos, juntava-se a escassa alimentação, a falta de condições de higiene — os "banheiros" eram cinco buracos no chão com latas dentro — , aliadas ao clima hostil de Cabo Verde, os perigos da transmissão da malária pelas picadas de mosquitos e a falta de cuidados médicos.

Tanto que o Tarrafal começa a ser conhecido como "o campo da morte lenta".

·        A 'frigideira'

Quem hoje visita o campo do Tarrafal, transformado em Museu da Resistência, pode ler, inscrita nas paredes, a declaração de intenções do médico Esmeraldo Pais da Prata, que deveria zelar pela saúde dos prisioneiros: "Não estou aqui para curar, mas sim para passar certidões de óbito".

"Morreram 33 presos entre 1936 e 1954. A maioria deles de doenças como a malária ou a diarreia, fruto da água que bebiam que não era potável. Mas outros devidos aos maus tratos que sofriam", conta Nélida Brito.

O pior dos castigos era a chamada "frigideira". Criada pelo primeiro dos diretores do campo do Tarrafal, Manual dos Reis, em 1937, tratava-se de uma "caixa" de concreto de seis metros de comprimento, três de largura e uma pequena fenda no teto.

"Exposta ao sol intenso de Cabo Verde, o calor ali dentro podia chegar aos 60 graus", diz a professora de história.

"Quando se estava na frigideira — e aconteceu de ficarem ali doze homens — a umidade da respiração condensava-se nas paredes por onde escorria. Não é necessário ter muita imaginação para se fazer uma ideia do que podia acontecer quando doze homens tentavam respirar dentro de uma caixa daquelas, com o sol tropical a aquecer pelo exterior, e onde a evaporação do ar respirado escorria pelas paredes", escreveu Gilberto Oliveira, preso do campo, no livro Memória Viva do Tarrafal.

"Os corpos encharcados, o ar sem oxigênio sufocante, a fazer o sangue latejar nas fontes, os peitos oprimidos numa semiasfixia de endoidecer, com toda aquela umidade viscosa, acicatada pelos ácidos pútridos do latão dos dejetos de que todos eram obrigados a servir-se; um buraco enfim, onde os homens eram tratados pior que animais", escreve ele.

Gabriel Pedro, pai de Edmundo Pedro, foi o preso que mais tempo passou ali dentro: 135 dias. O desespero foi tal que um dia tentou tirar a própria vida, cortando os pulsos com uma lata que tinha lá dentro.

Encontraram-no a tempo de salvar a vida dele. O filho, Edmundo, ficou trancado na frigideira por 70 dias, depois de uma tentativa de fuga.

"Não se pode imaginar o que era aquilo. A temperatura lá dentro chegava a atingir quase 50 graus. À noite havia uma condensação e a umidade escorria pelas paredes e nós lambíamos aquilo. Tiraram-nos a água. Não se faz ideia do que era aquele sofrimento", contou ele em entrevista ao jornal português i, em 2017.

·        Desativação e reabertura

A maioria dos presos ia parar ao campo do Tarrafal sem qualquer julgamento. "É o caso do Edmundo Pedro", diz a historiadora Irene Flunser Pimentel. "Esteve lá 10 anos e só quando volta à metrópole é que é julgado e condenado a uma pena de ano meio, que já não cumpriu, claro."

Em 1954, anos depois da vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial e alguma pressão internacional, o campo foi fechado.

No entanto, em 1961, com a eclosão da guerra do Ultramar e os movimentos independentistas das colônias portuguesas, o regime decidiu abrir o campo de novo.

O nome foi modificado — passou a ser Campo de Trabalho de Chão Bom — e a "frigideira" foi aposentada.

No lugar dele surge a "holandinha", uma construção em cimento, também precária, mas que estava dentro de outro edifício, impossível de ver do exterior.

Nesta segunda fase, os presos já não são anti-fascistas portugueses, mas sim membros dos movimentos de liberação das colônias africanas.

"Por ali passaram 107 angolanos, 100 guineenses e 20 cabo-verdianos. Nesta segunda fase, não havia tantos trabalhos forçados, até porque o campo já foi construído e eles passaram a maior parte do tempo ali fechados", conta Nélida Brito.

"Criou-se uma biblioteca que tinha três funções: a de biblioteca, graças ao envio de livros, a de escola e a de igreja também. Além disso, graças à cumplicidade de alguns guardas, [os presos] conseguiram 3 rádios. As condições continuavam duras — os castigos corporais e a insalubridade continuaram a existir —, mas não havia a brutalidade da primeira fase."

·        Resistência

Os presos eram separados por nacionalidades e os guardas não deixavam que eles se misturassem, para que uns movimentos políticos não "alimentassem" os outros.

Durante os muitos anos que ali estiveram, os presos desenvolveram formas de resistência.

"Muitos fizeram o que chamavam de superação acadêmica. Os que tinham mais estudos ensinavam os outros, alguns só sabiam escrever o nome. E isto, esta aprendizagem uns com os outros, era uma forma de sobreviver e resistir àquela opressão", conta Diana Andringa, jornalista e autora do documentário Memórias do Campo da Morte Lenta.

Gravado em 2009, no 35º aniversário do encerramento do campo, o documentário mostra o reencontro dos presos que ali entraram e sobreviveram.

"Foi muito emocionante assistir àquilo. Muitos nem se conheciam, a maioria nunca tinha voltado ali e aquela partilha de memórias comuns, foi reparador. Entraram ali de outra forma, como vitoriosos, porque o que estes africanos, presos nos anos 1960, tinham em comum com os portugueses, presos nos anos 30, era o anti-fascismo e o anti-colonialismo."

Nas imagens há relatos de uma crueldade extrema. De violência, espancamentos, histórias de isolamento na holandinha que acabaram em loucura. Mas o que mais impressionou a jornalista foi o que ela chama de "maldade inútil".

"Alguns foram presos com os pais e, quando chegaram aqui, foram obrigados a despir-se. Muito angolanos e guineenses preferiram levar pancada a despirem-se na frente dos pais. Isso, nas suas culturas, é uma coisa que não se faz. E é aqui onde o colonialismo mostra o total desrespeito pela cultura do outro, e é aí, onde os agride de forma brutal", diz a jornalista.

"Foi dito às famílias dos guineenses que eles tinham morrido. E muitas fizeram o funeral. O peso que isto deixa numa família, o trauma de saber depois que se enterrou um filho em vida... Lembro-me também da mulher de um anarquista português, o Mário Castelhano, que recebeu a devolução de um envio postal com a palavra 'faleceu' escrita a vermelho. É assim que ela soube que o marido morreu. Estas são aquelas brutalidades que mais me chocaram, porque é a maldade inútil, não tem nenhuma finalidade, só ferir mais", relata ela.

Quando a revolução aconteceu em Portugal, em 25 de abril de 1974, alguns presos souberam da notícia pelo rádio. Outros têm informações por uns poucos guardas que entretanto tinham criado uma certa relação com alguns.

"Tenho boas notícias para vocês, a coisa rebentou lá", disse-lhes disfarçadamente um guarda cabo-verdiano. Mas ali nada acontece. Pelo menos até o dia 1º de maio.

Naquela manhã, uma multidão juntou-se à porta do campo e exigiu a libertação dos presos. Em poucos minutos o diretor, Dadinho Fontes, e alguns militares entraram no campo, anunciaram a mudança de regime e libertaram os presos.

Quando saíram, os presos foram ovacionados pela multidão que os levou nos ombros ao centro da cidade, numa festa que seguiu pelo dia fora.

"O mais importante não é eles terem tentado matar-nos lentamente", diz em determinado momento do documentário Jaime Schofield, cabo-verdiano que foi preso em 1967.

"O mais importante é a recusa dessa morte lenta. No Tarrafal nós reinventamos a vida, sempre!"

 

¨      Portugal, 1975. Por Afrânio Catani

 

Nesse momento muito se fala do 25 de Abril de 1974 português, isto é, do movimento dos militares lusos que colocou fim a 48 anos da ditadura mais longeva da Europa até então. Foi a chamada Revolução dos Cravos, com o povo indo para as ruas com cravos vermelhos na lapela e também os colocando na boca dos canhões dos tanques e dos fuzis que os militares portavam.

Não pretendo aqui fazer grandes análises sobre o 25 de Abril. Seja como for, apenas procurarei relatar, em rápidas tintas, o que observei 19 meses depois em Lisboa, em momento de grande agitação política e cultural.

Eu tinha 22 anos e acabara de me formar em Administração Pública na Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV), em julho de 1975. O curso de Administração Pública era gratuito na época – hoje não é mais; aliás, é bem caro –, pois éramos bolsistas do governo do Estado de São Paulo. Para manter a bolsa tínhamos que cursar ao menos três disciplinas por semestre e obter, ao menos, a média 6,0 (seis).

Até o segundo semestre de 1975 eu nunca havia viajado de avião, pois na época isso era considerado um luxo. Estávamos em plena ditadura militar no Brasil e alguns amigos já haviam sido presos e/ou chamados para prestar depoimento no DOPS. Eu fora aprovado para cursar o mestrado em Ciências Sociais (sociologia) na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, devendo iniciar os estudos em março de 1976.

Atendendo ao convite de um ex-professor com quem havia trabalhado como auxiliar de pesquisa para ficar um tempo na França, comprei por U$ 1.354,00 um bilhete aéreo pela Varig com direito ao seguinte roteiro, com datas abertas: São Paulo/ Paris/ Londres/ Roma/ Genebra/ Zurique/ Paris/ Madri/ Lisboa/ Rabat/ São Paulo. Além disso, carregava nos bolsos uma cadernetinha com endereços de albergues e de pensões baratas e 600 dólares em travellers checks – decididamente os tempos eram outros.

Fiz o roteiro quase que na íntegra, ao longo de três meses, com exceção de Rabat; até hoje, infelizmente, não conheço o Marrocos. Mas posso explicar: chegando a Lisboa em 18 de Novembro de 1975, me deparei com uma agitação político-cultural que jamais havia experimentado: o clima político era tórrido, com panfletagem, passeatas, protestos, comícios, leituras de poesias, encenação de cenas de peças teatrais em plena rua…Fiquei maravilhado!

Entretanto, antes de mais nada, tinha que enfrentar algo mais prosaico: onde me alojar. Não era possível encontrar um lugar disponível na cidade. Tinha uma lista com mais de dez endereços e…nada. Já desanimado, tentei a Pensão Restauradores, que ficava no último andar de um edifício na Praça dos Restauradores, na Baixa, ao lado da Praça do Rossio. O proprietário, um senhor baixinho e gordinho, com mais de 70 anos, já foi logo dizendo que não havia lugar.

Quando já esperava o elevador para sair, me chamou de volta e disse que se eu quisesse, poderia ficar alguns dias num quarto sem janela (o 426) que era ocupado pelo Manoel, empregado que estava de férias na Beira Alta e que voltaria em poucos dias. O preço era irrisório e topei na hora. Ele me explicou que estava me alojando porque funcionários do governo visitavam hotéis e hospedarias e, constatando a existência de quartos vagos, alojavam os portugueses que regressaram da África, em razão da débâcle do império colonial português.

Ao que consta, era lei governamental e os proprietários eram obrigados a aceitar. Não havia habitações suficientes para todos que voltavam e o velhote não queria receber tais hóspedes, cujas estadas seriam pagas pelo Estado, “sabe-se lá quando!”. Fiquei de 18 a 20 no quarto do Manuel e, nos dias 21, 22 e 23, fui transferido para o 403, com janela e um pequeno banheiro.

Nesse momento era quase impossível não sair às ruas. Portugal já experimentara ao menos cinco governos provisórios, encontrava-se quase à beira de uma guerra civil, as esquerdas não se entendiam e a agitação era maravilhosa. Uma das palavras de ordem era gritada por todos os cantos: “O povo não quer fascistas no poder!” As marchas saiam do Parque Eduardo VII, desciam pela Avenida da Liberdade, passavam pelas Praças dos Restauradores e Rossio e acabavam se concentrando na Praça do Comércio.

Havia, também, manifestações em frente ao Palácio de Belém, onde se alojava a Junta de Salvação Nacional. Alguns dias após a minha chegada, em uma grande concentração popular, com os punhos para o alto, o povo cantava com vigor : “Venceremos/Venceremos/ Com as armas/Que temos nas mãos!”

Eu acompanhava tudo que podia e carregava garrafinhas de água e ao menos outras duas de vinho verde. Comprei montões de livros em Lisboa, e por 20 escudos, dia 20 de novembro de 1975, obras de Reich, de Althusser, de Poulantzas, de historiadores franceses e, em especial, a terceira edição, impressa em 7 de agosto de 1974, de Uma educação para a liberdade, de Paulo Freire.

O livrinho de 74 páginas reúne quatro textos do educador brasileiro: “Papel da Educação na Humanização”, “Educação para a Conscientização – Conversa com Paulo Freire”, “O Processo de Alfabetização Política” e “Princípios Doutrinais duma Educação Libertária”, além de uma relação das publicações do autor, que se encontrava exilado e proibido de retornar ao Brasil.

A tensão era grande por toda a Lisboa e no dia em que deixei o país, domingo à noite, 23 de Novembro de 1975, tive grande dificuldade para chegar ao aeroporto, pois os ônibus circulavam com lentidão e os táxis passavam lotados. Manuel, com quem conversava bastante, saiu à rua à caça de um táxi e conseguiu um, desde que eu aceitasse compartilhá-lo com outros dois passageiros; aceitei na hora.

O aeroporto estava em polvorosa e lotado de soldados armados. Consegui fazer o check in no balcão da Varig e tentei chegar ao guichê de câmbio, pois ainda tinha escudos na carteira. Impossível: um meganha foi me empurrando para a sala de embarque com o cano de sua submetralhadora ou algo similar e fim de conversa. Acabei ficando com umas 30 cédulas verdinhas de 20 escudos que valiam, em Portugal da época, algumas diárias na Pensão Restauradores ou vários livrinhos de Paulo Freire ou ainda garrafinhas fresquinhas de vinho verde.

Só depois os passageiros do vôo RG 85-23-35 (Varig), com destino ao Aeroporto de  Congonhas, São Paulo, Brasil, vieram a saber que naquele dia começava a se apagar a estrela do coronel Otelo Saraiva de Carvalho, um dos responsáveis pela elaboração do plano de operações do Movimento das Forças Armadas (MFA), o movimento de esquerda que derrubou em 1974 a ditadura portuguesa (1926-1974), após quase cinco décadas.

Nos dias seguintes ele foi afastado de todos os cargos que ocupava, inclusive o do comando efetivo do Comando Operacional do Continente (COPCON). Mas isso já é outra história.

Valho-me de artigos de João Pereira Coutinho e de Ruy Castro, autores com quem nem sempre concordo – mas, nesse caso, creio que acertaram em cheio –, publicados na Folha de SPaulo em 21 de Abril de 2024 (respectivamente “Foi bonita a festa, pá?” e “Nos primeiros dias do 25 de Abril Lisboa viveu o Carnaval da liberdade”) para expressar o momento e a relevância do 25 de Abril e das transformações políticas vivenciadas por Portugal

Escreve João Pereira Coutinho que “Entre 1974 e 1975, Portugal oscilou entre radicalismos de sentido oposto: uma tentativa de golpe da extrema direita em março de 1975, uma tentativa de golpe da extrema esquerda em novembro do mesmo ano”.

Ruy Castro, por sua vez, diz que novembro de 1975 marcava o fim da Revolução dos Cravos. “Mas Portugal não voltou a ser o país dos mortos-vivos, dos homens de cinza e mulheres de preto, sem jovens nas ruas, sangrado pelo atraso, pelo analfabetismo e pela guerra colonial, anterior ao 25 de Abril. Instalou-se um civilizado regime de centro que, com eleições livres e alternâncias razoáveis, manteve o poder pelas décadas seguintes, gerando estabilidade, dinamismo e progresso.”

Enfim, esse é o meu modesto testemunho. O fato é que ao sair do vôo da Varig, em Congonhas, retornei a um país governado por um general, em uma ditadura militar em que a tortura, a censura e o medo eram parceiros no cotidiano. Pensando que horas antes me encontrava em um espaço social em que a liberdade dava o tom e retornando a um Brasil cinzento e violento, não pude deixar de me lembrar de H. G. Wells e a Máquina do Tempo.

 

Fonte: BBC News Mundo/Terra é Redonda

 

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