segunda-feira, 22 de abril de 2024

“Pedir desculpas não é o suficiente”, dizem indígenas sobre crimes da ditadura

No Mato Grosso do Sul, cerca de cem indígenas da comunidade Guyraroká, dos Guarani Kaiowá, estão limitados a uma área de 50 hectares à beira de uma rodovia, cercados por lavouras de soja e milho. Enquanto isso, em Minas Gerais, o povo Krenak luta para retomar a área que abriga seus cemitérios e locais sagrados.

São povos que ainda vivem os efeitos da ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, torturando, escravizando e expulsando indígenas de seus territórios. “O Estado sempre vai ficar com dívida com nós, povos indígenas”, afirma Erileide Domingues, jovem liderança da Terra Indígena Guyraroká.

No início de abril, as comunidades Krenak e Guyraroká receberam as primeiras anistias coletivas da história do país, até então concedidas apenas em caráter individual. O reconhecimento foi determinado pela Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, criada em 2002 para jogar luz sobre os crimes da ditadura, e significa um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro.

“O reconhecimento da reparação coletiva não apaga as prisões, assassinatos e torturas cometidas”, escreveu no Twitter (X) a Ministra dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara. “[…] mas é um importante passo para a memória e justiça, e uma forma de marcarmos como também fomos duramente perseguidos nesse período tão violento da história do Brasil”.

Para as lideranças de ambos os povos, no entanto, a verdadeira reparação é a devolução dos territórios roubados pelo Estado brasileiro.

“A gente entende que o pedido de desculpas da comissão é válido, emblemático e simbólico. Mas, se permanecer apenas na simbologia, para o povo Krenak não serve” explica Geovani Krenak, liderança da Terra Indígena Krenak, localizada em Minas Gerais. “Tem que vir [acompanhado] com ações que visem demarcar os Sete Salões para minimizar os traumas sofridos durante a ditadura”, ele completa, se referindo ao território de cerca de 12 mil hectares que lhes foi roubado.

O povo Krenak passou por uma sucessão de violações ao longo do regime militar. Em 1969, os governos federal e de Minas Gerais criaram o Reformatório Agrícola Indígena Krenak às margens do Rio Doce, no município mineiro de Resplendor. Ali, indígenas passavam fome e eram torturados, conforme descrito no pedido de anistia assinado pelo Ministério Público Federal (MPF).

A mudança forçada para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, em 1972, também teve efeitos devastadores, conforme relatos colhidos pelo MPF: “Ao chegarem na Fazenda Guarani, foi ainda pior, pois não podiam viver da caça e pesca, como era na terra anterior; na Fazenda Guarani não tinha sequer rio e o clima era completamente diferente, muito mais frio do que o da terra que sempre ocuparam antes de serem expulsos”.

O avô de Geovani, Jacó, foi um dos anciões que não aguentou a saudade da terra natal e morreu na Fazenda Guarani. Seu pai, falecido em 2010, chegou a ser amarrado em um cavalo e arrastado pela aldeia. Os castigos eram aplicados a quem falasse na língua originária ou dançasse as danças tradicionais.

“Meu pai contava isso com muita revolta, ele tinha muita raiva de militar, acho que isso causou um trauma nele. Ele lembrava isso com muita dificuldade”, conta Geovani.

Em 2021, a Justiça Federal de Minas Gerais determinou um prazo de seis meses para a delimitação da Terra Indígena Sete Salões. No ano seguinte, no entanto, a Fundação Nacional do Índio (Funai) — ainda sob a gestão de Jair Bolsonaro — entrou com um pedido de efeito suspensivo que impediu o cumprimento da sentença. Agora, os Krenak querem que a agência retire o dispositivo.

“Não é cabível que a gente tenha o Estado brasileiro pedindo desculpas e a Funai permaneça com esse pedido”, diz Geovani.

Para Erileide Domingues, da Terra Indígena Guyraroká, os horrores da ditadura também seguem vivos nos relatos do avô, o líder Tito Vilhalva. Quando jovem, ele teve que abandonar sua terra após ser escravizado por fazendeiros que diziam ter comprado a área “com os bugres”, em uma referência racista aos Guarani Kaiowá.

Até hoje, a comunidade luta para recuperar o território. Enquanto isso, vive espremida entre gigantescas lavouras de soja e milho e sofrendo com a contaminação dos agrotóxicos, jogados de avião sobre as plantações vizinhas.

“Sem território a gente não consegue ter nada. Não tem como produzir alimento próprio, não tem como falar de saúde, educação, bem-estar. Sem território, é como se a gente fosse um peixe fora d’água”, diz Domingues.

Segundo informações do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, a demarcação da Terra Indígena Guyraroká foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014, com base na tese do Marco Temporal — de que, para ter direito à terra, os indígenas precisam provar que estavam no local antes da Constituição de 1988. Os indígenas recorreram, e o processo segue em andamento.

•                                                Avá-Canoeiro quase foram extintos

Mesmo antes da ditadura militar, os indígenas eram vistos pelo governo brasileiro como obstáculos a serem tirados do caminho dos grandes projetos de infraestrutura e da expansão da fronteira agrícola. Os Avá-Canoeiro que vivem na região do Rio Araguaia, no Tocantins, são conhecidos como o povo que mais resistiu ao processo de colonização, e pagaram um preço alto por isso.

Após décadas fugindo do avanço de mineradores e fazendeiros, em 1973 eles foram vítimas de um contato forçado da Funai, cujos agentes chegaram disparando contra os indígenas. Depois de presos, eles ainda passaram seis meses sendo exibidos como animais em uma das maiores fazendas da região. “Vinha gente de tudo que é lugar olhar esse povo que tinha sido capturado”, conta Patrícia de Mendonça Rodrigues, antropóloga e responsável pelo relatório que identificou o território dos Avá-Canoeiro.

Dali, o grupo foi levado para viver no território dos indígenas Javaé, de quem eram inimigos históricos. Nesse período, a etnia se reduziu a apenas cinco pessoas. Rodrigues, que entrevistou sobreviventes desse período, diz que eles não gostavam nem de lembrar dessa época.

“Eram cinco pessoas vivendo na periferia da aldeia de um povo com quem eles tinham uma relação histórica de inimizade. Eles vieram nessa situação por quase cinquenta anos, sofrendo marginalização política, cultural e econômica”, diz a antropóloga

Hoje, há mais de quarenta Avá-Canoeiros vivendo na região do Rio Araguaia. Em abril de 2023, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) confirmou uma decisão judicial que obriga o Estado brasileiro a pagar danos morais coletivos pelas violações cometidas contra a etnia.

A luta para ter um território só seu, no entanto, não terminou. Apesar de já ter sido reconhecida e demarcada pelo governo federal, o processo de homologação da Terra Indígena Taego Ãwa ainda não foi concluído, faltando a retirada dos ocupantes não-indígenas.

No final de março, uma decisão do TRF-1 determinou prazo de 15 meses para que a Funai conclua a demarcação, e de 12 meses para que sejam retirados os assentados e fazendeiros que ocupam a área.

 

Fonte: Mongabay

 

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