“Pedir
desculpas não é o suficiente”, dizem indígenas sobre crimes da ditadura
No
Mato Grosso do Sul, cerca de cem indígenas da comunidade Guyraroká, dos Guarani
Kaiowá, estão limitados a uma área de 50 hectares à beira de uma rodovia,
cercados por lavouras de soja e milho. Enquanto isso, em Minas Gerais, o povo
Krenak luta para retomar a área que abriga seus cemitérios e locais sagrados.
São
povos que ainda vivem os efeitos da ditadura militar que vigorou no Brasil
entre 1964 e 1985, torturando, escravizando e expulsando indígenas de seus
territórios. “O Estado sempre vai ficar com dívida com nós, povos indígenas”,
afirma Erileide Domingues, jovem liderança da Terra Indígena Guyraroká.
No
início de abril, as comunidades Krenak e Guyraroká receberam as primeiras
anistias coletivas da história do país, até então concedidas apenas em caráter
individual. O reconhecimento foi determinado pela Comissão de Anistia do
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, criada em 2002 para jogar luz
sobre os crimes da ditadura, e significa um pedido de desculpas formal do
Estado brasileiro.
“O
reconhecimento da reparação coletiva não apaga as prisões, assassinatos e
torturas cometidas”, escreveu no Twitter (X) a Ministra dos Povos Indígenas do
Brasil, Sônia Guajajara. “[…] mas é um importante passo para a memória e
justiça, e uma forma de marcarmos como também fomos duramente perseguidos nesse
período tão violento da história do Brasil”.
Para
as lideranças de ambos os povos, no entanto, a verdadeira reparação é a
devolução dos territórios roubados pelo Estado brasileiro.
“A
gente entende que o pedido de desculpas da comissão é válido, emblemático e
simbólico. Mas, se permanecer apenas na simbologia, para o povo Krenak não
serve” explica Geovani Krenak, liderança da Terra Indígena Krenak, localizada
em Minas Gerais. “Tem que vir [acompanhado] com ações que visem demarcar os
Sete Salões para minimizar os traumas sofridos durante a ditadura”, ele
completa, se referindo ao território de cerca de 12 mil hectares que lhes foi
roubado.
O
povo Krenak passou por uma sucessão de violações ao longo do regime militar. Em
1969, os governos federal e de Minas Gerais criaram o Reformatório Agrícola
Indígena Krenak às margens do Rio Doce, no município mineiro de Resplendor.
Ali, indígenas passavam fome e eram torturados, conforme descrito no pedido de
anistia assinado pelo Ministério Público Federal (MPF).
A
mudança forçada para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, em 1972,
também teve efeitos devastadores, conforme relatos colhidos pelo MPF: “Ao
chegarem na Fazenda Guarani, foi ainda pior, pois não podiam viver da caça e
pesca, como era na terra anterior; na Fazenda Guarani não tinha sequer rio e o
clima era completamente diferente, muito mais frio do que o da terra que sempre
ocuparam antes de serem expulsos”.
O
avô de Geovani, Jacó, foi um dos anciões que não aguentou a saudade da terra
natal e morreu na Fazenda Guarani. Seu pai, falecido em 2010, chegou a ser
amarrado em um cavalo e arrastado pela aldeia. Os castigos eram aplicados a
quem falasse na língua originária ou dançasse as danças tradicionais.
“Meu
pai contava isso com muita revolta, ele tinha muita raiva de militar, acho que
isso causou um trauma nele. Ele lembrava isso com muita dificuldade”, conta
Geovani.
Em
2021, a Justiça Federal de Minas Gerais determinou um prazo de seis meses para
a delimitação da Terra Indígena Sete Salões. No ano seguinte, no entanto, a
Fundação Nacional do Índio (Funai) — ainda sob a gestão de Jair Bolsonaro —
entrou com um pedido de efeito suspensivo que impediu o cumprimento da
sentença. Agora, os Krenak querem que a agência retire o dispositivo.
“Não
é cabível que a gente tenha o Estado brasileiro pedindo desculpas e a Funai
permaneça com esse pedido”, diz Geovani.
Para
Erileide Domingues, da Terra Indígena Guyraroká, os horrores da ditadura também
seguem vivos nos relatos do avô, o líder Tito Vilhalva. Quando jovem, ele teve
que abandonar sua terra após ser escravizado por fazendeiros que diziam ter
comprado a área “com os bugres”, em uma referência racista aos Guarani Kaiowá.
Até
hoje, a comunidade luta para recuperar o território. Enquanto isso, vive
espremida entre gigantescas lavouras de soja e milho e sofrendo com a
contaminação dos agrotóxicos, jogados de avião sobre as plantações vizinhas.
“Sem
território a gente não consegue ter nada. Não tem como produzir alimento
próprio, não tem como falar de saúde, educação, bem-estar. Sem território, é
como se a gente fosse um peixe fora d’água”, diz Domingues.
Segundo
informações do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, a demarcação da Terra
Indígena Guyraroká foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014, com
base na tese do Marco Temporal — de que, para ter direito à terra, os indígenas
precisam provar que estavam no local antes da Constituição de 1988. Os
indígenas recorreram, e o processo segue em andamento.
• Avá-Canoeiro
quase foram extintos
Mesmo
antes da ditadura militar, os indígenas eram vistos pelo governo brasileiro
como obstáculos a serem tirados do caminho dos grandes projetos de
infraestrutura e da expansão da fronteira agrícola. Os Avá-Canoeiro que vivem
na região do Rio Araguaia, no Tocantins, são conhecidos como o povo que mais
resistiu ao processo de colonização, e pagaram um preço alto por isso.
Após
décadas fugindo do avanço de mineradores e fazendeiros, em 1973 eles foram
vítimas de um contato forçado da Funai, cujos agentes chegaram disparando
contra os indígenas. Depois de presos, eles ainda passaram seis meses sendo
exibidos como animais em uma das maiores fazendas da região. “Vinha gente de
tudo que é lugar olhar esse povo que tinha sido capturado”, conta Patrícia de
Mendonça Rodrigues, antropóloga e responsável pelo relatório que identificou o
território dos Avá-Canoeiro.
Dali,
o grupo foi levado para viver no território dos indígenas Javaé, de quem eram
inimigos históricos. Nesse período, a etnia se reduziu a apenas cinco pessoas.
Rodrigues, que entrevistou sobreviventes desse período, diz que eles não
gostavam nem de lembrar dessa época.
“Eram
cinco pessoas vivendo na periferia da aldeia de um povo com quem eles tinham
uma relação histórica de inimizade. Eles vieram nessa situação por quase
cinquenta anos, sofrendo marginalização política, cultural e econômica”, diz a
antropóloga
Hoje,
há mais de quarenta Avá-Canoeiros vivendo na região do Rio Araguaia. Em abril
de 2023, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) confirmou uma decisão
judicial que obriga o Estado brasileiro a pagar danos morais coletivos pelas
violações cometidas contra a etnia.
A
luta para ter um território só seu, no entanto, não terminou. Apesar de já ter
sido reconhecida e demarcada pelo governo federal, o processo de homologação da
Terra Indígena Taego Ãwa ainda não foi concluído, faltando a retirada dos
ocupantes não-indígenas.
No
final de março, uma decisão do TRF-1 determinou prazo de 15 meses para que a
Funai conclua a demarcação, e de 12 meses para que sejam retirados os
assentados e fazendeiros que ocupam a área.
Fonte:
Mongabay
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