Para a Nestlé, nem todos os bebês são
iguais: relatório revela produtos piores nos países do Sul Global
UM RELATÓRIO INÉDITO,
divulgado hoje, escancarou uma estratégia perversa: a Nestlé está despejando
produtos de qualidade nutricional inferior em países da África, Ásia e da
América do Sul – incluindo o Brasil. Por meio de análises laboratoriais, os
pesquisadores descobriram que o Cerelac, conhecido no Brasil como Mucilon, e o
Nido, o Ninho, contêm teores de açúcar muito acima do recomendado para crianças
menores de dois anos.
O relatório, publicado
nesta terça, 16, pela Public Eye, com colaboração da Rede Internacional em
Defesa do Direito de Amamentar, a Ibfan, deixa evidente a contradição: na
Suíça, país-sede da empresa, os mesmos produtos são vendidos sem qualquer
adição de açúcar. Parece que em casa de ferreiro… o espeto é realmente de
ferro.
Para que não reste
dúvidas: em seu país, a Nestlé vende o cereal sabor biscoito sem adição de
açúcar; no Senegal, o Cerelac do mesmo sabor contém seis gramas de açúcar
adicionado por porção.
Nos principais
mercados da Nestlé na Europa – Alemanha, França e Reino Unido – todos os leites
para crianças de um a três anos também não contêm açúcar adicionado.
As duas marcas –
Cerelac e Nido – estão entre as mais
vendidas na categoria “comida de bebê” em países em desenvolvimento. A
corporação promove um malabarismo retórico ao afirmar que o objetivo dos
produtos é ajudar as crianças a “levar uma vida mais saudável”.
Segundo informa o site
global da empresa, esses produtos são enriquecidos com vitaminas, minerais e
outros micronutrientes “essenciais”, e ajudam no crescimento, no fortalecimento
do sistema imunológico e no desenvolvimento cognitivo. O rótulo, porém, esconde
o ingrediente crítico que a ciência já provou ter relação com o desenvolvimento
de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis.
• Diferença no padrão de ingredientes e
recusa de laboratórios suíços em testar as amostras
A promoção dos mesmos
produtos com padrões de ingredientes muito diferentes entre o Norte e o Sul
global escancara o que os pesquisadores chamaram de um “duplo padrão
injustificável”. Para a professora Fabíola Nejar, nutricionista e integrante da
Ibfan, esse é um “jogo sujo”.
“É um produto que cria
um mercado que nem deveria existir, porque na verdade é uma fase em que a
criança deveria ter contato com alimentos minimamente processados, alimentos in
natura e elementos da cultura alimentar daquela família”, diz. Fabíola foi uma
das pesquisadoras responsáveis pelo parecer técnico do relatório.
Para encontrar provas
desse duplo-padrão, foi realizada uma compra dos produtos em mercados-chave da
corporação. As amostras foram enviadas para alguns laboratórios da Suíça. Para
a surpresa dos pesquisadores, muitas dessas empresas se negaram a fazer a testagem.
“O assunto revelou-se
mais complicado do que o esperado”, diz o relatório. Um dos laboratórios alegou
que não poderia fazer o teste porque os resultados “poderiam ter um impacto
negativo” entre os clientes. Perante estas recusas, os pesquisadores de Public
Eye e Ibfan recorreram a um laboratório sediado na Bélgica, o Centro de
Especialização Alimentar de Bruxelas. “É uma força que tem a ver com cifrão,
que tem a ver com a economia”, analisa Nejar sobre a recusa dos laboratórios
suíços.
• E esse açúcar aí?
O levantamento da
Public Eye mostrou que o Ninho no Brasil não contém adição de açúcar. O país é
o terceiro maior mercado consumidor da marca. Mas o Mucilon, um produto voltado
para a introdução alimentar, ou seja, quando a criança já completou seis meses
de idade, é vendido no país com adição de açúcar em seis dos oito tipos
disponíveis no mercado. Na análise laboratorial os pesquisadores encontraram
uma média de quatro gramas por porção de 21 gramas, ou seja, quase 20% do
produto.
Os maiores níveis de
açúcar (4,2g e 4,3g, respectivamente) foram encontrados no Mucilon Multicereais
e no Mucilon Arroz. O açúcar aparece como segundo ingrediente da lista de todos
os oito produtos.
A termo de comparação,
no maior mercado consumidor do Ninho, a Indonésia, a realidade é outra. O leite
da Nestlé para crianças de um a três anos contém dois gramas de açúcar
adicionado para cada 100g de produto.
O açúcar do Mucilon
normalmente vem na forma de sacarose, enquanto o Ninho aparece acrescido de
mel. O primeiro produto está presente em mais de 50 países, sendo que a Índia e
o Brasil representam cerca de 40% desse mercado. Paquistão, Nigéria e África do
Sul são outros países importantes para a marca.
Já o Ninho figura em
pelo menos 40 países, sendo que a Indonésia sozinha representa um terço do
mercado global.
Talvez o aspecto mais
chocante dessa história é que esses açúcares presentes no Mucilon até pouco
tempo estavam escondidos dos consumidores no Brasil. Não era obrigatório
divulgar o teor de açúcar adicionado nos rótulos nutricionais e a Nestlé não
comunicava essa informação de forma voluntária, por óbvio. A legislação previa
que os açúcares podiam ser contabilizados na tabela nutricional junto com os
carboidratos.
Isso mudou a partir
das novas regras de rotulagem nutricional para alimentos e bebidas, que
entraram em vigor em outubro de 2023. O novo regulamento, que sofreu inúmeros
ataques da indústria, inclusive da própria Nestlé, também se aplicará a
alimentos para fins especiais, como o Mucilon.
O açúcar adicionado é
um ingrediente que não deve fazer parte da alimentação de crianças menores de
dois anos. Essa é uma recomendação expressa pela Organização Mundial da Saúde,
além de governos locais, como é o caso do Guia Alimentar para Crianças Menores
de Dois Anos, documento do Ministério da Saúde do Brasil.
Apesar das diretrizes
estabelecidas pela OMS, a adição de açúcar aos alimentos para bebês é permitida
na maioria dos países, que se baseiam no Codex Alimentarius, um conjunto de
normas internacionais desenvolvidas por uma comissão intergovernamental e coordenada
conjuntamente pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
e pela OMS. O lobby, porém, se faz presente. Numa revisão recente da norma para
leites de crescimento, a indústria representava mais de 40% dos participantes.
A Nestlé parece
conhecer muito bem essas diretrizes em saúde pública. No site do Ninho Brasil a
corporação diz que “é ideal evitar o consumo desses ingredientes [açúcares] na
infância, pois o sabor doce pode influenciar a preferência por este tipo de alimento
no futuro”.
• De mãe para mãe – o marketing kamikaze
da Nestlé
A Nestlé ocupa o topo
de vendas do mercado brasileiro de alimentos destinados a crianças. Em 2022, as
vendas para essa categoria de produtos passaram de US$ 600 milhões. Nosso país
é um prato cheio para a corporação suíça. Por isso, o relatório encomendou uma
pesquisa para avaliar também as estratégias de marketing e lobby aplicadas no
contexto brasileiro.
O levantamento
encontrou nove estratégias usadas pela Nestlé para construir um discurso de
saudabilidade sobre seus produtos, além de fazer uma aproximação cada vez mais
sofisticada com a família, principalmente com as mães, colocando-se no lugar de
uma grande “aliada” no cuidado com bebês e crianças.
O estudo foi
coordenado por Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, o Nupens, e professora na Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
Para Bortoletto, chama
atenção a confusão promovida pelos vídeos de receita com Mucilon. “Tem aquelas
receitas que são com produtos com açúcar e tem as receitas que são com produtos
sem açúcar. E quando são os produtos com açúcar, tem um pequeno aviso que é
para crianças maiores de dois anos, e os outros não. Mas é a mesma história
visual e o mesmo tipo de narrativa dentro do mesmo espaço”, alerta a
pesquisadora.
Trata-se do site
“Receitas Nestlé”, que oferece receitas com vários produtos da corporação,
inclusive os destinados às crianças, como o Mucilon. A pesquisa brasileira
encontrou 109 receitas, 21 vídeos, 41 artigos e dicas e um livro de receitas
relacionados ao produto.
As mensagens reforçam
uma suposta saudabilidade e comunicam que há adição de vitaminas e minerais,
como ferro e zinco “que ajudam no desenvolvimento adequado do cérebro”, diz a
apresentadora. Em outro momento, ela afirma que “um cookie de frutas com Mucilon
é exatamente o que seu filho precisa.” Nesse caso, ela usa o Mucilon
Multicereais, que contém 4,2g de açúcar por porção.
“Eu sei que você quer
que seu filho cresça da melhor maneira possível, mas sei da correria do seu dia
a dia”, diz a apresentadora. O jeito de passar a mensagem “de mãe para mãe” é
uma estratégia conhecida. Fabíola Nejar diz que “tudo isso é muito difícil
porque você acredita na marca”.
A pesquisadora lembra
que a formação do paladar nessa primeira infância é um aspecto muito importante
para a nutrição e o consumo desse tipo de produto marca as papilas gustativas
dos bebês. Nessa fase da vida em especial é preciso proteger as crianças de
alimentos ultraprocessados, que contêm ingredientes críticos, como sódio,
gordura e açúcar.
E, como mãe, ressalta
que “se tem uma coisa que traz culpa é quando a criança não come”. As mensagens
como as passadas no vídeo de receitas com Mucilon vêm muito a calhar nesse
sentido: a Nestlé é uma amiga da mãe em desespero.Outra estratégia importante
da corporação é a mobilização de influenciadoras digitais. A Nestlé tem feito muitas “parcerias” com
mulheres mães. Exemplo disso é a publicidade feita com Fabi Santina,
responsável pelo perfil Vida de Mãe Podcast. Um dos episódios do podcast, em
que fala sobre maternidade, foi patrocinado pelo Mucilon. Participou da
conversa Shantal Verdelho, mãe de três filhos e influenciadora digital com mais
de um milhão de seguidores no instagram.
A parte mais
publicitária do episódio dura cerca de cinco minutos e são feitos inúmeros
elogios ao produto. A apresentadora é quem começa: “A gente está aqui falando
de introdução alimentar, da primeira refeição, então vamos falar do Meu
Primeiro Lanchinho, que está aqui.”
E a convidada logo
participa: “No carro, para você dar uma coisa prática, eu sempre levo na bolsa
algo assim. Aí ele [meu filho] só pega ali, abre, come. Ele fica super feliz de
ver qual que é o lanchinho do dia, e Meu Primeiro Lanchinho cai perfeito.” Já
no fim, Fabi conclui que “as mães agradecem. Eu adoro coisas que facilitam a
vida da mãe, porque vida de mãe não é fácil”.
As estratégias, muitas
vezes, são mais sutis e pouco transparentes para o público geral. O relatório
da Public Eye destaca que a Nestlé tem contratado influenciadoras para
produzirem conteúdo próprio, mostrando o produto no dia a dia como se fosse um
uso voluntário, sem deixar explícito que aquela postagem se trata de um
conteúdo patrocinado, o que “borra as fronteiras entre marketing e conselhos
nutricionais”.
É importante dizer que
esse tipo de publicidade fere o Código Internacional de Comercialização de
Substitutos do Leite Materno, que proíbe todas as formas de promoção de fórmulas infantis, leites de crescimento para
bebês de até três anos e de alimentos para esse público que contêm elevados
níveis de açúcar.
Em todo o mundo, a
pesquisa encontrou mais de 70 publicações nas redes sociais que promoveram
indevidamente o Mucilon e o Ninho, alcançando um público de quase 5 milhões de
pessoas no Instagram. Todos os produtos promovidos nestes posts são
direcionados a crianças menores de dois anos. Os influenciadores que promovem
os produtos incluem mães, mas também profissionais de saúde.
Fonte: Por Nathália
Iwasawa, para The Intercept
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