Dowbor expõe os novos aspectos do rentismo
Os modelos de gestão
no mundo corporativo são estruturados para maximizar resultados, e estes são
definidos como meta principal, lucros financeiros e dividendos. Alguns chamam
isso de otimização e parece bom. Os resultados também devem ser alcançados no menor
tempo possível, prendendo o mundo corporativo numa corrida permanente. Os
resultados sistêmicos e de longo prazo são mantidos fora do horizonte do
processo de decisão e os impactos em maior escala são qualificados como
“externalidades”, lavando as mãos das empresas. Um exemplo clássico é a reação
da indústria de armas de fogo às críticas: produzimos armas, mas não puxamos o
gatilho. Outro exemplo interessante é o da indústria de alimentos
ultraprocessados: seria responsabilidade do consumidor ler os rótulos e
proteger sua saúde. Na verdade, isto levou a outra indústria em expansão, a
resposta farmacêutica à explosão da obesidade. Assim, temos duas indústrias em
expansão, uma que produz alimentos ruins, a outra que produz remédios, e
pagamos por ambas. Produzir alimentos saudáveis poderia
ser uma escolha melhor, mas não no interesse da maximização dos lucros, quer nos setores alimentar, quer no setor farmacêutico.
A concorrência na
época de Adam Smith poderia parecer boa e até continuar positiva nas pequenas e
médias empresas. Uma padaria tem que produzir bom pão a preços razoáveis, ou
outra padaria aparecerá. Mas se uma empresa produtora de chocolate na Bélgica
conseguir comprar cacau mais barato no Gana, fechando os olhos ao trabalho
infantil, o concorrente responsável que respeita alguns direitos humanos
básicos será ultrapassado. Se uma empresa da indústria de carne bovina na
Europa conseguir um acordo melhor com a JBS no Brasil, quaisquer que sejam os
custos externos para o Cerrado ou a Amazônia, isso forçará os concorrentes a
recorrer a práticas semelhantes, para não serem superados. Quando um algoritmo
da Pfizer fixa o preço do Paxlovid, comprimido para tratamento da covid-19, em
1.390 dólares, enquanto o custo de produção, segundo uma pesquisa da
Universidade de Harvard, é de 13 dólares, está apenas calculando que os muito
ricos pagarão qualquer coisa pela sua saúde, e este é o preço ideal em termos
de maximização de lucro. Não se trata de maximizar o impacto na saúde, vender o
produto com lucro razoável e torná-lo acessível a muitos.
O estudo de Max Fisher
sobre o impacto social, econômico e político dos meios de comunicação social
deixa as questões evidentes. Facebook, YouTube e algumas plataformas
semelhantes são basicamente empresas de marketing, vendendo nosso tempo de
atenção para corporações. O marketing, por exemplo, representa 98% do
faturamento da Meta. As taxas de marketing dependem de quantas pessoas são
alcançadas, por quanto tempo e de outros critérios de “engajamento”. Como os
algoritmos são estruturados para maximizar o engajamento, o que chega ao topo é
o que atinge mais profundamente nossas entranhas, não o interesse intelectual
ou cultural, a empatia ou a colaboração, mas motivações poderosas como o ódio,
a confirmação do preconceito, o sentimento de pertencimento (“nós” contra
“eles”) e outras emoções que maximizam a atenção. A profundidade disso pode ser
vista em tantos conflitos e polarizações políticas absurdas ampliadas
radicalmente pelas mídias sociais. O livro de Fisher é corretamente
intitulado The Chaos Machine (em tradução livre, A
Máquina do Caos).
A legítima otimização
do lucro pelo padeiro da época de Adam Smith, quando inserido em algoritmos na
era da revolução digital, com conectividade global e vieses de confirmação de
epidemias, tem impactos negativos dramáticos. Não se trata de sermos “bons” ou
“maus”, trata-se de ampliar instintos poderosos que existem em todos nós.
Tendemos a esquecer que ainda somos fundamentalmente primatas, com grande
inteligência, sem dúvida, mas com motivações profundamente problemáticas em
relação à finalidade para a qual utilizamos essa inteligência. Somos
parcialmente racionais, mas a capacidade cerebral acrescida não eliminou as
motivações mais profundas que herdamos. O estudo de Frans de Waal sobre Nosso
Macaco Interior mostra isso muito claramente. É assim que somos
feitos, em nosso DNA. As plataformas de comunicação podem aproveitar essas
emoções, e usar a tecnologia moderna para maximizar o comportamento dos
primatas é simplesmente errado.
As mensagens do
Facebook chegam a quase 4 bilhões, com horas de atenção, e têm custos
radicalmente reduzidos em comparação com os anúncios de jornal que já tivemos.
Somos apenas alimentados, e superalimentados, com mensagens tóxicas ajustadas
individualmente. Anúncios e mensagens simplesmente colam nos seus olhos e
filtram no fundo, gostemos ou não.
Lembremo-nos de que
estas são as principais corporações mundiais, vender o nosso tempo de atenção é
o grande negócio do presente. Também aqui a maximização funciona de mãos dadas
com a concorrência: se uma empresa utiliza este tipo de manipulação de envolvimento
emocional, outras vão segui-la, porque funciona, e estão lutando pela mesma
mercadoria, o nosso tempo de atenção pessoal. Que é, na verdade, o momento das
nossas vidas, o nosso capital pessoal mais precioso. Robert Reich resume:
“Aqueles que procuram a nossa atenção – anunciantes, profissionais de marketing
e políticos – enfrentam uma concorrência crescente para agarrá-la. Quando
conseguem, nossa atenção se desvia de todo o resto. É por isso que a
atenção está se tornando um recurso tão escasso.”
O sistema bancário
brasileiro é outro exemplo rico. Neste caso, não se trata de competição, mas de
conluio. Cinco bancos controlam 85% do crédito e cobram aproximadamente as
mesmas taxas de juros extorsivas para famílias, empresas ou eventos sobre a
dívida pública. Os juros da dívida de particulares durante 2023 oscilaram em
torno de 55%, para uma inflação de cerca de 4%. Isto levou a uma fuga
financeira para as famílias, equivalente a 10% do PIB, reduzindo drasticamente
o poder de compra e, consequentemente, o estímulo da procura à economia. A taxa
de juro média das empresas ronda os 23%, o que levou a uma redução do
investimento produtivo. Para quem tem capital, tendo em conta que a procura
está estagnada e as taxas de juro muito elevadas, se precisar de apoio
financeiro, simplesmente optará por investir na dívida pública, pagando 8%
líquido de inflação. Lucro sólido, sem risco, sem esforços de produção. Quando
a renda financeira paga mais do que o investimento produtivo, é para lá que vai
o dinheiro. Isto é simplesmente matar o ganso, com maximização a curto prazo. A
economia está estagnada.
Não se trata de altos
e baixos do mercado. É um sistema estruturado de extração de renda. Uma
dimensão é a desinformação. Antes de 1994, o Brasil enfrentava hiperinflação,
atingindo mais de 50% ao mês. Isso levou os bancos a apresentarem taxas de
juros mensais. A hiperinflação foi reduzida, mas os bancos continuam a
apresentar taxas de juro todos os meses, o que as torna semelhantes às taxas de
juro anuais do resto do mundo. A taxa de juros de 100% será apresentada, nos
bancos ou no comércio, como 6%, ou preferencialmente 5,9%. As pessoas pensariam
que as coisas não poderiam ser tão simples: seria uma usura escandalosa. No
entanto, isto é precisamente o que acontece, ao estilo do Mercador de
Veneza, num país onde muito poucas pessoas sabem calcular o equivalente
anual a uma taxa de juro mensal. Todos os bancos do Brasil, inclusive os
internacionais, como o Santander, utilizam esse esquema. Temos 72 milhões de
adultos na lista de incumprimento de crédito, cerca de metade da população
adulta.
O Banco Central não
deveria regular esse sistema de usura? Na Constituição de 1988, o artigo 192
estipulava que juros reais acima de 12% ao ano seriam considerados crime. Em
2003, com a entrada do recém-eleito Lula no governo, os bancos conseguiram
eliminar o artigo 192. A usura, atualmente, não é crime, nem sequer é
mencionada como questão legal. E o Banco Central, mais recentemente, foi
declarado autônomo, colocado de facto nas mãos dos bancos e do
sistema financeiro. O que levou a que a dívida pública pagasse as taxas de juro
mais elevadas do mundo, basicamente ao mesmo sistema financeiro. Em 2023, a
correspondente drenagem do orçamento atingiu o equivalente a 7% do PIB. O dreno
financeiro improdutivo global que apresentei numa audiência do Congresso em
Brasília é equivalente a 30% do PIB. Como grande parte dos congressistas tem
forte investimento financeiro e, portanto, quer manter as taxas de juros tão
altas quanto possível, isso se tornou uma deformação estrutural. É um drama
para a economia e para a sociedade, mas é politicamente sólido. Até que ponto a
democracia pode resistir quando a desigualdade atinge níveis absurdos?
A drenagem dos
recursos naturais é outro exemplo. A água é um bem público e está rapidamente
se tornando um recurso escasso. O The Guardian nos traz
comentários a respeito do Relatório sobre a Água Doce, mostrando o impacto da
privatização: “Mais de 30 anos depois da privatização da água, com a
urbanização generalizada e a intensificação agrícola, é necessária uma nova
abordagem – incluindo uma potencial reforma dos reguladores da água –”, diz o
relatório. “Com os níveis de confiança nas empresas de água afetados por
repetidos relatórios de poluição e especulação, tanto o público como os
profissionais da água querem mais transparência e garantia de que as empresas
estão agindo no interesse da sociedade e do ambiente.”
Apenas 14% dos rios no
Reino Unido estão “em bom estado ecológico”. A lógica é simples: quando a
gestão da água é privatizada, vender água é um bom negócio e o tratamento de
esgotos é um custo. Enfrentamos problemas semelhantes em São Paulo, onde a
Sabesp, empresa de gestão de água parcialmente privatizada, maximiza as vendas
de água, mas mantém baixo o tratamento de esgotos. Paris mostrou o caminho, com
a restauração da gestão pública de água e esgoto. Interesses equilibrados.
Estes são apenas
alguns exemplos. Mas o impacto geral é dramático. A Oxfam apresenta o impacto
na sustentabilidade: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo
duplicaram as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de
pessoas em todo o mundo ficaram mais pobres. As dificuldades e a fome são uma
realidade diária para muitas pessoas em todo o mundo. Ao ritmo atual, serão
necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso
primeiro trilionário em 10 anos. Uma enorme concentração do poder empresarial e
monopolista global está exacerbando a desigualdade em toda a economia. Sete em
cada dez das maiores empresas do mundo têm um CEO bilionário ou um bilionário
como principal acionista. Por meio da pressão sobre os trabalhadores, da evasão
fiscal, da privatização do Estado e do estímulo ao colapso climático, as
empresas estão promovendo a desigualdade e agindo a serviço da entrega de uma
riqueza cada vez maior aos seus proprietários ricos.”
No Brasil, para uma
população de 203 milhões de pessoas, temos 33 milhões passando fome e 125
milhões em insegurança alimentar. O que produzimos equivale a mais de quatro
quilos de grãos por pessoa por dia. Não poderíamos pelo menos alimentar as
crianças?
Todos esses magnatas
corporativos reivindicam a sua adesão aos princípios ESG, os principais
políticos assinam as sucessivas resoluções da COP, a OCDE é severa na sua luta
pelo BEPS, John Ruggie lutou durante uma década pelo respeito corporativo pelos
direitos humanos, mas como ele próprio escreveu, “para corporações
internacionais, são apenas negócios”. A verdade é que, a menos que as empresas
se organizem eficazmente para o bem comum sistêmico e aprendam a colaborar,
dado o seu poder global, as coisas não funcionarão. Estamos presos em um
processo autodestrutivo. Até que ponto devemos entrar nesta crise econômica,
social e ambiental crítica, até termos uma reação global? Fizemos isso depois
da Segunda Guerra Mundial, criando um mínimo de governança global. Isso foi em
outra época.
É claro que podemos
imaginar que fomos feitos à imagem de Deus. Stephen Jay Gould, em seu Wonderful
Life, é mais pé no chão, lembrando-nos que somos “meros macacos nus que
adotaram uma postura ereta”. Macacos nus de alta tecnologia. Eles não veem o
que está acontecendo? Devemos aprender racionalmente como lidar com a
irracionalidade. Entretanto, os políticos aprenderam a navegar com base nos
nossos piores instintos. Funciona.
Fonte: Por Ladislau
Dowbor, em Outras Palavras
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