O curioso “socialismo com mercado” no Laos
O Laos, conhecido como
país mais pobre da Ásia, é também o mais bombardeado da Terra. Os EUA lançaram
270 milhões de bombas em seu território, durante a guerra com o vizinho Vietnã.
Tem 7 milhões de habitantes. Sem litoral (o único nessas condições, no sudeste
da Ásia) e sobre uma superfície extremamente montanhosa, faz fronteira como
China, Vietnã, Camboja, Tailândia e Myammar. Lá se desenvolve um experimento
político singular.
O país consistia em
três reinos separados durante os séculos XIV a XVIII. Foi colônia
francesa entre 1893 e 1954, quando os reinos de Champasak, Luang Prabang e
Vientiane uniram-se. Tornou de fato independente em 1953, com uma
monarquia constitucional que durou apenas duas décadas.
Teve papel importante
na guerra da resistência vietnamita contra os EUA, por permitir que o exército
norte-vietnamita enviasse soldados e suprimentos para seu território, ao longo
da chamada “Trilha Ho Chi Minh”. Pagou caro. Além de se envolverem diretamente
na expansão da Guerra Civil Laosiana, os norte-americanos despejaram 2 milhões
de toneladas de bombas em seu território, mais do que todas as que caíram
durante a Segunda Guerra Mundial.
Quando os vietnamitas
derrotaram os EUA em abril de 1975, forçaram os EUA a sair de toda a região. Um
novo regime, o Pathet Lao assumiu o poder em dezembro de 1975, sete meses
depois de seus vizinhos vietnamitas. A União Soviética proporcionou a maior parte
da ajuda externa, especialmente às forças armadas. O país foi renomeado
República Democrática Popular do Laos (RDP do Laos), e o Pathet Lao foi
reorganizado como o Partido Revolucionário Popular do Laos (PRPL).
A jovem República
Popular do Laos herdou um conjunto de circunstâncias difíceis: 10% da população
morta como resultado das guerras colonialistas francesas e estadunidenses;
outros 20% feridos ou permanentemente incapacitados; cerca de 10%
refugiados no exterior e pelo menos 50% foram deslocados de alguma forma das
suas aldeias natais. A esperança de vida era pouco inferior a 46 anos, a
alfabetização era inferior a 25% e milhões de bombas americanas não detonadas
cobriam o campo.
Como Mao Zedong é o
pai do Partido Comunista da China e da Nova China, e Ho Chi Minn é o destacado
líder do Vietnam, Kaysone Phomvihane é o líder do Partido Revolucionário
Popular do Laos e do país. Assumiu o governo como primeiro ministro em 1975 e
conservou o poder até sua morte, em 1992.
No caso do socialismo
laociano, é necessário considerar seu pensamento como uma espécie de
“marxismo-leninismo adaptado às circunstâncias laocianas”. Phomvihane propôs,
após a independência do país e a saída da monarquia em 1975, que o país deveria
enfrentar cinco prioridades antes da construção do socialismo: 1. “normalizar”
a vida das pessoas (em termos de alimentação, vestuário e abrigo); 2.
consolidar o poder do Partido (enraizar-se nas zonas monarquistas); 3.
estabelecer instituições estatais e abolir instituições feudalistas e
coloniais; 4. projetar a governança do pós-guerra; 5. “construir” a nação e
integrar as minorias (mais de sessenta diferentes comunidades étnicas vivem no
Laos, das quais o grupo “Lao” é o maior, com cerca de 40% da população).
A força motriz
fundamental do pensamento de construção partidária de Kaisan Phomvihane é a
necessidade objetiva do partido dirigente proletário de melhorar sua capacidade
de governar e manter seu status de governante. Durante o período da
revolução democrática nacional, o Partido Revolucionário Popular do Laos
resolveu com sucesso o problema de construir um país com amplo caráter de massa
onde o proletariado era pequeno e os camponeses e a pequena burguesia
representavam maioria da população. Nos primeiros dias de reforma e abertura,
os membros do partido focaram em construir o socialismo de acordo com as
condições nacionais do Laos.
Uma de suas
singularidades da sua experiência é que, na esfera cultural, o regime é
protetor do budismo. Mais de 60% da população adere ao budismo Theravada,
enquanto o restaste é orientado para religiões étnicas locais. No Laos, o
marxismo sofreu diversas adaptações ao se fundir com esta religião, uma
experiência singular em que a liderança do partido assumiu o papel de protetora
do legado histórico e espiritual do Laos (traçada desde o reino de Lan Xang,
que existiu do século
XIV ao XVIII). Usando o simbolismo e a ideia budista de comunidade
(“sangha”), o Partido aumentou sua legitimidade. Construiu novas estátuas de
reis históricos. As crianças aprendem sobre Sidartha, o Buda. O partido mantém
o centralismo democrático como princípio de organização.
Em 1976, os militares
mais uma vez tomaram o poder na Tailândia, fechando a fronteira, intensificando
seu apoio tailandês às forças terroristas no Laos que atacaram fazendas
coletivizadas, sabotando a produção e assassinando funcionários comunistas. Ao
mesmo tempo, a deterioração das relações entre o Vietnã e o Camboja afetou o
Laos. Em 1977, o Vietnã e o Laos retomam as relações, assinando um tratado de
amizade de 25 anos, com assessores vietnamitas fornecendo conhecimentos
necessários nas políticas governamentais e econômicas.
Depois de se tornar
independente em 1975, o então Laos estabeleceu os controles sobre a economia
por meio do governo socialista centralizado até 1985. Fez-se um esforço para
estabelecer comunas agrícolas, mas as medidas foram abandonadas pelo alto grau
de impopularidade. Em 1981, o Primeiro Plano Quinquenal visava a
autossuficiência, mas o crescimento econômico “lento” (aproximadamente 5% ao
ano) foi julgado insuficiente. Durante esse período, o governo viu que o
desempenho da economia era incapaz de atingir os objetivos esperados A gestão
econômica era fraca devido à falta de técnicos qualificados.
Foi então que o
Segundo Plano Quinquenal de 1986-1990 implementou o Novo Mecanismo Econômico
(NME), estratégia que visava integrar lentamente partes da economia laosiana
com a economia mundial sem sacrificar a sua autossuficiência alimentar. Assim o
Laos deu início ao “socialismo de mercado com características laosianas”, com a
transição de uma economia de planejamento centralizado para uma “economia
multissetorial” ou híbrida, definida como uma “economia de mercado regulada
pelo Estado”. As restrições ao comércio interno foram removidas e um
mercado livre foi introduzido para os produtos agrícolas. O governo também
liberalizou o comércio internacional e buscou investimentos estrangeiros de
seus vizinhos. Como na adoção de reformas socialistas de mercado na China
e no Vietnã, essa transição ocorreu sem nenhuma liberalização política
correspondente, mantendo o partido leninista no poder. No final do segundo
plano quinquenal, a produção de arroz duplicou e a produção de açúcar aumentou
40%. Em agosto de 1991, a Assembleia Suprema do Povo (SPA) aprovou uma nova
Constituição – a primeira, desde que a anterior fora abolida em 1975. Entre
suas disposições está a afirmação do direito à propriedade privada e a
expressão “democracia e prosperidade” substituiu “socialismo” no lema nacional.
Em 2003, uma nova Constituição foi aprovada salientado que a economia opera de
acordo com o princípio da economia de mercado.
Em 1989, as relações
sino-laotianas voltaram ao normal. Durante a década de 1990 e 2000, uma série
de medidas à moda chinesa foram introduzidas: eliminação de restrições
microeconômicas que limitam a produção privada, legislação para encorajar o
investimento estrangeiro direto (IED), leis comerciais, maior atenção à
estabilidade macroeconômica com melhoria da política orçamentária e monetária,
privatização e fusão da maioria das empresas estatais, com exceção das vinte,
que foram designadas como “estratégicas para o desenvolvimento”.
O Laos busca usar o
capital estrangeiro para desenvolver indústrias estratégicas, como mineração e
hidrelétricas, além de prover necessidades da população. Graças às barragens de
seus rios, o país hoje produz muito mais energia do que precisa. Tailândia,
Vietnã e China são os maiores consumidores dessa energia.
Em 1998 e 1999, a
crise econômica asiática atingiu o Laos, resultando em aumento dos gastos do
governo, inflação repentina e desaceleração do crescimento que chocou a
liderança do partido, o que levou neste breve período as reformas em direção a
uma economia de mercado serem suspensas ou concordadas com
relutância. Porém, a partir de 2000, com a retomada gradual das reformas
houve um aumento constante do investimento, especialmente em energia
hidrelétrica, mineração, agricultura comercial e turismo, com crescimento
econômico em média 8% ao ano desde 2005.
Desde o início das
reformas, o país fez progressos consideráveis. Na boa e velha fórmula de Lênin
(Socialismo = soviets + eletricidade), fez um bem sucedido programa de
eletrificação. Em 1990, o acesso à eletricidade era de apenas 15%, indo para
99% em 2020. Nas áreas rurais, as famílias possuem direitos ao uso da terra
agrícola, que são transferíveis e herdáveis. Os preços passaram a ser fixados
pelo mercado. A moeda nacional, o Kip, é conversível e os lucros de
investimentos estrangeiros podem ser transferidos para o exterior. O Laos
tornou-se amplamente integrado aos mercados regionais, inclusive desenvolvendo
um mercado de capitais. O sistema bancário é relativamente forte e bem
capitalizado, porém altamente dolarizado e, portanto, vulnerável em caso de
crises financeiras.
O Laos seguiu seu
vizinho chinês na criação de Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) como parte do
novo motor econômico que permite políticas econômicas especiais e medidas
governamentais flexíveis que conduzem a negócios que não existem em outras
partes do país. Desde 2000, as ZEEs tornaram-se a principal estratégia
empregada pelo governo para direcionar a economia a sistemas econômicos
baseados no mercado e um atalho para a urbanização e o desenvolvimento de
infraestrutura por meio de investimento estrangeiro. Atualmente, doze ZEEs
foram concedidos a investidores estrangeiros, quatro dos quais são operados por
empresas chinesas.
A crise financeira
global de 2008 reduziu a quantidade de investimento originado do Ocidente, mas
foi logo substituído por um maior investimento de nações asiáticas,
especialmente Tailândia, China e Vietnã.
Na última década, a
China tornou-se um dos maiores investidores nos países do Sudeste Asiático,
sendo, em 2018, a fonte de quase 80% do investimento estrangeiro direto no
Laos. As doze zonas econômicas especiais já atraíram investimentos de quase US$
6 bilhões e criaram milhares de empregos para a população local. E o governo
está planejando até 40 ZEEs nos próximos 10 anos.
O socialismo com
mercado que está sendo praticado no Laos apresenta alternativas para países que
não são polos regionais e ainda profundamente agrários. O país espera
conquistar seus objetivos de longo prazo, pois continua preservando o atual
sistema político e desenvolvendo a economia, realizando seu potencial nacional,
elevando os padrões de vida, reduzindo drasticamente a pobreza,
industrializando-se de acordo com os interesses nacionais, com a meta de se
tornar um país de renda média até 2030.
China, Vietnã e Laos
compartilham um legado de abertura a capitais privados combinada com
planejamento econômico, coletivização da agricultura e empresas estatais
dominantes. Todos os três países introduziram reformas de mercado na
década de 1980, com Gaige kaifang (‘Reforma e abertura’,
1978/79), Doi moi (‘Renovação’, 1986) e Chin Thanakaan
Mai (‘Novo Pensamento’ ou ‘Novo Mecanismo Econômico’ , 1986)
representando o início oficial das transformações econômicas, respectivamente,
na China, Vietnã e Laos. Os três têm um desempenho melhor do que países com
nível semelhante de renda per capita em uma ampla gama de indicadores de
desenvolvimento social e material.
A China atraiu grandes
investimentos estrangeiros, especialmente em seu setor de exportação, mas
também conseguiu desenvolver um forte setor de indústria doméstica e está se
movendo em direção à alta tecnologia. O Vietnã enfrentou uma “transição
estagnada” e conseguiu desenvolver principalmente um setor industrial de
mão-de-obra intensiva liderado pelo IDE, que depende em grande parte da
tecnologia estrangeira. Laos é, a este respeito, parte de uma situação
mais desfavorável, com uma economia em grande parte agrária e exportadora de
recursos, porém com redução de vulnerabilidades externas e internas.
As diversas
iniciativas do Corredor Econômico da Península China-Indochina, um dos seis
pilares na Nova Rota da Seda, ou Belt and Road Iniciative (BRI), geram uma nova
sinergia entre os socialismos de mercado de China, Vietnã e Laos. São diversas
artérias terrestres, com diversas camadas de transporte, telecomunicações,
infraestrutura, indústrias, energias, finanças, comércio e projetos econômicos
conectando os três países socialistas.
A ferrovia de alta
velocidade que conecta Kumming, na província de Yunnan na China, até Vientiane
no Laos, tem 420km e valor de 6 bilhões de dólares. Ela foi iniciada em 2016 e
concluída em 2021, possui 72 túneis, 170 pontes e trens que circulam a 160km por
hora. Em seguida, ela vai unir o sudeste da Ásia Continental até Cingapura.
No setor de energia,
estima-se que o Laos tenha potencial para gerar 18.000 MW tecnicamente
exploráveis – 1,3 vezes a potência da Usina de Itaipu. Para desbloquear
esse potencial hidrelétrico, o governo do tem planos ambiciosos de construir 70
barragens ao longo dos afluentes do rio Mekong. Muitos deles estão sendo
ou serão construídos por empresas hidrelétricas chinesas.
Em um mundo com
extrema necessidade de novos modelos, as “economias de mercado socialistas”
asiáticas podem oferecer uma alternativa realista para outros países em
desenvolvimento? O modelo contém importantes lições para outros Estados, mas
devido às suas características distintas, bem como às variações locais entre
China, Vietnã e Laos, a economia socialista de mercado não representa um modelo
facilmente transferido e copiado. Todas as experiências de socialismo de
mercado são variações adaptadas às condições nacionais. Expressam um
ordenamento econômico mais flexível e diferenciado, no qual a propriedade
estatal dos recursos estratégicos e dos principais meios de produção – questão
não negociável – convive com outras formas de propriedade pública não estatal,
com empresas mistas nas quais alguns setores do capital privado se associem com
corporações públicas ou estatais, e com cooperativas ou formas de “propriedade
social” fora da lógica da acumulação capitalista.
A experiência do Laos
mostra que é possível iniciar transições socialistas de mercado, mesmo em
países onde inexistem as bases materiais para edificar o socialismo, com a
articulação de um governo centralizado e diferentes formas de propriedade. Isso
não está isento de problemas, mas é processo necessário para elevar as
condições de vida das classes populares e orientar a economia e a sociedade no
sentido socialista, o que exige uma elaboração mais audaz e rigorosa sobre o
socialismo hoje, considerando as experiências reais.
Fonte: Por Fernando
Marcelino, em Outras Palavras
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